recebi muitos e-mails em resposta à minha despedida coletiva após dez anos de “folha”, a maioria nem consegui responder ainda. havia os divertidos, os tristes, os emocionantes (e os emocionados), os engraçados, os de fazer chorar, os sedutores, os amorosos, os formais, os exultantes, os provocativos, de tudo um pouco, às vezes várias modalidades em cada e-mail (“adoro quando tudo se mistura”).

havia, por exemplo, o do meu prezado marcelo castello branco, ex-presidente da universal (“a gravadora número 1 do brasil”) e atual presidente da universal espanhola e portuguesa, uau. marcelo dizia que entrou aqui no blog (oba!) e comentava o tópico sobre che guevara, dizendo que aquela minha coletânea imaginária devia ser aproveitada por alguma companhia, de preferência a universal, hahaha, cada coisa. que nada, marcelo, era só traquinagem – mas, bem, se alguma delas quiser copiar vai ter que pagar royalties pro pas (que, por sua vez, não vai se responsabilizar pelo prejuízo comercial), e tenho dito! (alô, taís), hahahaha.

não, que nada, é só brincadeira mesmo.

mas por causa da mensagem do marcelo fiquei pensando, ruminando, matutando. já briguei um bocado com esse cara, ele era presidente da universal numa época voraz, herdou a cultura monoteísta da axé music de seu antecessor, marcos maynard, e ainda ajudou a pronunciar o sucesso asqueroso daquele padre-(não-)cantor. impliquei muito, muito, muito com esses caras todos nos dez anos de “folha”, pretendo continuar implicando. mas, por estranho que pareça, penso no marcelo com afeto, com carinho.

marcelo era (não sei se ainda é) um cara afeito a atos falhos. para meu júbilo, colecionei na “folha” vários deles. quando a universal resistia em lançar o disco inédito dos mutantes (“tecnicolor”, gravado em 71 e só lançado em 98, após quilômetros de pressão impressos na imprensa), ele contornava e dizia algo como “os titãs são uma grande banda”. estava falando dos mutantes, evidentemente, mas se confundia e os chamava de titãs, citando sem querer os “rivais” da warner, que estavam bombando na época com um horrível “acústico mtv”.

quando fizemos uma reportagem gigante sobre melhoras que estavam sendo implementadas na universal (alô, belinha), demonstrou por vários detalhes ser um homem culto e informado, mas se atrapalhou quando quis citar heitor villa-lobos (“aquele do trenzinho, esqueci o nome agora”).

a melhor de todas não aconteceu comigo, mas sim no programa da marília gabriela. entrevistado pela loura, marcelo foi a certa altura instigado a escolher uma fantasia entre várias opções que a produção lhe oferecia. era tempo de altas polêmicas, a crise da numeração dos discos correndo solta (alô, lobão) e as grandes gravadoras se apegando nos malefícios da pirataria para apregoar uma suposta e temida “morte da música popular brasileira”. pois marcelo selecionou delicioso ato falho, escolhendo entre várias a fantasia do capitão gancho, o inimigo do peter pan, o pai de todos os piratas, corsários, bucaneiros & outros falsificadores de cds. não preciso dizer que a coluna “ruído” se esbaldou.

mas espere. parece que estou zombando do castello branco? não é o quero fazer. ao contrário, enquanto brigava com ele e criticava cada uma de suas opiniões de estilo tubarão em mar de sardinhas, fui tomando carinho, respeito e até mesmo simpatia pelo simpático “adversário” (que, estranhamente, parecia corresponder e continuava dando entrevistas mesmo sob o perigo do próximo ato falho). hoje sei que minha simpatia e respeito apareceram e cresceram na mesma cadência com que ele lançava seus atos falhos para o meu deleite. porque eles serviam não para zombaria, mas para denunciar que expunham na frente deles um homem de carne, osso e sensibilidade escondido por detrás dos dentes de tubarão. desconfio que marcelo também não concordava com algumas das decisões que tinha de tomar, e era então que o ato falho escapava por uma fresta, como a dizer que certos buracos não são tapáveis, que se você tentar cimenta aqui onde a cratera está evidente logo outro rombo vai se abrir ali adiante. ele sabia, perfeitamente, que a verdade estava na caspa, e não no xampu (alô, marcos valle, alô, paulo sérgio valle).

e isso me fazia gostar dele. naquela mesma reportagem do autor sem nome do trenzinho do caipira (alô, brasil), eu o pressionava por causa da mania (burra, a meu ver) das gravadoras de criarem galinhas dos ovos de ouro, que se estrebucham de tanto colocar discos de ouro pela cloaca e rapidamente acabam na granja, em forma de canja (alô, miúcha saltimbanca!!!). o exemplo mais completo de galinha dos ovos de ouro, na ocasião, era cássia eller, também no fulgor de seu “acústico mtv” bancado e amplificado pela universal.

para meu profundo choque (e também do marcelo, tenho absoluta certeza), cássia morreu pouco depois do sucesso universal, do “acústico mtv”, da reportagem.

isso me incomodou e me incomoda muito, não só porque se tratava, para mim, de uma das maiores artistas brasileiras de todos os tempos, amplamente comparável a elis regina se a importância política da música pop houvesse sido tão grande nos anos 90 como foi nos 60 e 70. lá se vão cinco anos da morte de cássia, e hoje consigo ver com clareza os elos entrelaçados daquela corrente de amores & horrores: o artista genial à flor da pele; a gravadora sensível, voraz e poderosa que o contrata e amplifica; o sucesso; a fase de galinha dos ovos de ouro (todo mundo, do próprio artista à gravadora e, no caso, a mtv, entra no moto contínuo que mistura produtividade, resultado financeiro, desgaste, auto-sabotagem); o crítico ranzinza do grande jornal que vem denunciar os “vícios” do processo, muitas vezes carregando as tintas na carga moral contra tais “vícios”; o artista que não segura a barra daquela palhaçada toda (a que, afinal, ele mesmo deu partida) e resolve partir desta para melhor, nem que ainda seja cedo. cássia morreu moça demais, aos 39 anos, e deixou uma curta, sólida e quase redundante trajetória musical, toda ela gravada na única casa discográfica que a abrigou do começo (tardio) ao fim (precoce), a universal.

a responsável pela morte prematura de cássia eller foi cássia eller, isso é evidente e inegável. mas cada vez mais acredito que não podemos, gravadora, imprensa, mídia e seus agentes, nos eximir de nossa coadjuvância de parceiros em dramas shakespearianos (alô, elis regina). tropicalistas radicais, como tom zé, rogério duarte e torquato neto, chamariam isso de “parceria da faca com a ferida”, “paixão entre o torturador e o torturado” ou coisa que os valha (alô, itamar assumpção). assim como começo esse texto denunciando os atos falhos do chefe da gravadora, quero terminá-lo falando que me dói imensamente ter participado da história de cássia eller como criticador da galinha dos ovos de ouro, na mesma medida como me orgulha enormemente ter participado dela apontando com rapidez (alô, sérgio dávila) a grandeza de seus discos e sensacionais aparições ao vivo (alô, waly salomão).

tento, com isso tudo, querer dizer que o crítico que julga e acusa os “vícios” do sistema como se vivesse apartado desse mesmo sistema e de seus “vícios” está embotado, anuviado, empacado, burro, cego dos óios – agindo assim, ele se faz tão “ruim” quanto a “ruindade” que aponta, vê o fundo do poço de dentro das próprias entranhas do poço e não o percebe. a faca e a ferida se fundem, perdidamente apaixonadas uma pela outra. e lá fora, ar livre que os poços não alcançam, o céu continua azul ou chuvoso, mas sempre repleto de vida (& morte).

(volta depois, marcelo, vem devolver ao brasil tudo que está aprendendo na ibéria. a gente aqui tem umas coisinhas para te ensinar também.)

(obrigado, piky, pela inspiração involuntária. acabei de ler seu e-mail, chorando também.)

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