Moraes Moreira

No princípio eram os Novos Baianos.

Moraes Moreira, baiano de Ituaçu, participou de quatro dos oito álbuns assinados pelo revolucionário conjunto de rock-samba em sua trajetória original. Membro fundador, ficou nos NB entre 1969 e 1975, e nesse período foi uma das (várias) almas de um supergrupo e comunidade hippie/futebolista de alma essencialmente coletiva.

Num primeiro estágio, Moraes, GalvãoPaulinho Boca de Cantor e a não-baiana Baby Consuelo (depois Baby do Brasil) lançaram, sob o nome Os Novos Bahianos, o disco É Ferro na Boneca! (1970), de sumo muito influenciado pela tropicália, especialmente pelo papel do também baiano Tom Zé dentro da tropicália (e fora dela). O carro-chefe era o rock psicodélico “Ferro na Boneca”, povoada pelo imaginário poético incomum de Galvão: “Não, não é uma estrada, é uma viagem/ tão, tão viva quanto a morte, não tem sul nem norte, nem passagem/ (…) necas de olhar pra trás/ o quente, o veneno/ é pluft, pluft, pluft, pluft, pluft/ é ferro na boneca, é no gogó, neném”.

Em 1971, um compacto duplo chamado Novos Bahianos + Baby Consuelo no Final do Juízo trouxe à luz a histórica “Dê um Rolê”, que seria pescada por Gal Costa para o show e álbum Fatal e modificaria para sempre o rumo dos NB: “Não se assuste, pessoa/
se eu lhe disser que a vida é boa/ enquanto eles se batem/ dê um rolê/ e você vai ouvir/
apenas quem já dizia/ eu não tenho nada/ antes de você ser eu sou/ eu sou/ eu sou/ eu sou amor da cabeça aos pés”. Estava aberta a fase pós-tropicalista, durante a qual os NB definiriam novos e geniais padrões de sonoridade para a música brasileira.

O próximo passo seria a revolução, consolidada nas composições de Moraes e Galvão e nos vocais de Baby e Paulinho, mas agora acrescida de um conjunto dentro do conjunto, uma comunidade dentro da comunidade: A Cor do Som, com Pepeu GomesJorginho GomesBaixinho Dadi CarvalhoAcabou Chorare (1972) surgiu incendiado por dois joões, o influenciador João Gilberto e patrocinador João Araújo (o diretor da gravadora Som Livre, que no futuro ficaria mais conhecido como pai de Cazuza), para o panteão dos maiores discos da história da música brasileira. “Brasil Pandeiro” (do patrono baiano Assis Valente), “Preta Pretinha”, “Tinindo Trincando, “Acabou Chorare”, “O Mistério do Planeta”,  “A Menina Dança”, “Besta É Tu”: tudo era exemplar em Acabou Chorare, desde a capa que exibia os restos do banquete da grande mesa tropicalista.

O sucessor do clássico, Novos Baianos F.C. (1973), goza de menos prestígio que Acabou Chorare, mas é tão perfeito quanto: “Sorrir e Cantar Como Bahia”, “Só se Não For Brasileiro Nessa Hora”, “Cosmos e Damião”, “O Samba da Minha Terra” (do patrono baiano Dorival Caymmi), “Com Qualquer Dois Mil Réis”, “Os ‘Pingo’ da Chuva”…

Novos Baianos de 1974 selou a despedida de Moraes, num tom menos luminoso, mas com belezas como “Ladeira da Praça” e “Linguagem do Alunte”. No mesmo ano, o primeiro álbum sem o guitarrista, violonista e vocalista, Vamos pro Mundo, veio ainda com composições inspiradas da dupla Moraes-Galvão, como “Guria”, “Escorrega Sebosa” e “Ô Menina”.

Em 1975, Moraes se reinventou em carreira solo, iniciada com um álbum homônimo que apenas insinuava o que o futuro reservava ao artista: uma trajetória mais pop e popular, menos experimental que a fase com os NB, mas toda baseada na reinvenção de uma tradição formulada nos anos 1950, a do trio elétrico. A instrumental “Guitarra Baiana” virou um tema central da novela Gabriela, baseada em Jorge Amado, e antecipou a axé music em uma década.

Em 1977, “Pombo-Correio (Double Morse)”, dos veteranos inventores Dodô Osmar Macedo com o discípulo Moraes, transformou o artista no primeiro cantor de trio elétrico: “Pombo-correio/ voa ligeiro/ meu mensageiro e essa mensagem de amor/ leva no bico que eu aqui fico cantando/ que é pra espantar essa tristeza que a incerteza do amor traz”.

Moraes ainda trabalhou na clave dos Novos Baianos, como compositor de faixas dos discos solo de Baby Consuelo (como “Ele Mexe Comigo”, “Eu Sou Baby Consuelo” e “Sonho Alegre”, de 1978, e “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira”, de 1979, todas em parceria com Pepeu Gomes, as duas primeiras também com Galvão) e de Pepeu Gomes (“Eu Também Quero Beijar”, de 1981). Mas daí por diante ele pavimentou outro caminho, para o lugar pop de frevos elétricos para pular como “Eu Sou o Carnaval” (1979), “Meninas do Brasil” (1980), “Vassourinha Elétrica” (1980, lançada com o Trio Elétrico Dodô & Osmar), “Festa do Interior” (1981, lançada por Gal Costa), “Bloco do Prazer” (lançada em 1981 por Nara Leão e popularizada em 1982 por Gal), “Coisa Acesa” (1982), “Chame Gente” (1985, cantada com Caetano Veloso num disco de Armandinho e o Trio Elétrico Dodô & Osmar), “Boca do Balão” (1986, lançada por Elba Ramalho), “Por Que Parou, Parou Por Quê?” (1988). Essa última virou bordão de pedidos de bis em shows Brasil afora.

Obra de meio de caminho entre os dois Moraes, “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” comunicou Novos Baianos e carnaval, sob letra vivaz e otimista: “Quem desce do morro não morre no asfalto/ lá vem o Brasil descendo a ladeira”. O disco homônimo de 1979 contava também com o clássico carnavalesco “Chão da Praça”, uma das obras inaugurais da parceria feliz com o cearense Fausto Nilo. A receita de empatia era transformar a tristeza em alegria nos dias de folia (e mesmo fora deles): “Meu amor, quem ficou/ nessa dança, meu amor/ tem fé na dança/ nossa dor, meu amor, é que balança nossa dor/ o chão da praça”.

No início dos anos 1980, Moraes abriu nova frente, a de intérprete/compositor de temas infantis, bastante em voga naquela virada de década. Depois de cantar “As Abelhas” na Arca de Noé (1980) de Vinicius de Moraes, compôs “Pirlimpimpim” e foi um dos intérpretes do clássico “Lindo Balão Azul” de Guilherme Arantes, ambas para o especial televisivo e disco infantil Pirlimpimpim (1982), em que interpretou o Visconde de Sabugosa. Também entregou a alegre “Grande Final” para Gal cantar no especial e disco A Turma do Pererê (1983) e compôs para A Turma do Balão Mágico.

Outra picada aberta para a estrada pop foi a de autor de temas de aberturas de novelas da Globo, como “Vida, Vida” (1981) e “Promessas Demais” (1982), ambas interpretadas por Ney Matogrosso, e “Santa Fé” (1985), que o próprio autor cantou na abertura de Roque Santeiro (1985).

A veia romântica e radiofônica se acentuou em “Sintonia” (1986): “Escute essa canção/ que é pra tocar no rádio/ no rádio do seu coração/ você me sintoniza/ e a gente então se liga/ nesta estação/ aumente o seu volume que o ciúme/ não tem remédio”. Embora de perfil acentuadamente discreto, Moraes foi uma das caras brasileiras dos anos 1980, além de compositor de um sem-número de sucessos interpretados naquela década pelos mais diversos cantores.

Em 1990, Moraes se reuniu a um colega de Novos Baianos para o disco Moraes & Pepeu (1990), em plena voga da axé music. “A Lua e o Mar”, também tema de novela, foi a elétrica pedra angular do reencontro: “De Canoa Quebrada até Cochabamba/ ele dança lambada/ ela baila ‘La Bamba'”. O álbum Tem um Pé no Pelô, de 1993, reagrupou canções carnavalescas de Moraes, regravadas lado a lado com eletricidades dos Novos Baianos e com menções generosas à moderna axé music.

Moraes seguiu copiosa carreira discográfica nos anos 1990, 2000 e 2010, intercalando-a com reencontros episódicos com os Novos Baianos (em 1997, em 2009 e em 2017) e a concepção do belo Nossa Parceria (2015), um disco em dupla com o filho músico Davi Moraes. Com Marisa Monte, compôs “Palavras ao Vento” (1999), que Cássia Eller lançou. Dialogou com os novos nordestinos em canções como “Caranguejo Dance” (1996), prima do manguebit pernambucano, e “Forró Universitário” (2001).

A última obra que divulgou foi um cordel com referências ao coronavírus, publicado por ele menos de um mês antes de sua morte, em 13 de abril deste tempestuoso 2020, no mesmo momento em que os chãos de praça se esvaziaram, os shows pararam por todo o planeta e o Brasil vem descendo a ladeira, no sentido mais triste da expressão. Os comentários engajados, sempre discretos (mas sempre presentes), apareceram em canções como “Violão Solidão”, do disco Meu Nome É Brasil (2003). Do Brasil-pandeiro ao Brasil-guitarra, um dos nomes do Brasil foi, durante mais de cinco décadas, Moraes Moreira.

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