É possível contar nos dedos de uma mão os artistas que, no pico de suas carreiras, pararam tudo por um momento para produzir um espetáculo exclusivo para crianças. Chico Buarque (Os Saltimbancos), Vinícius e Toquinho (Arca de Noé), Pato Fu (Música de Brinquedo), Adriana Calcanhotto (Adriana Partimpim). Há projetos que surgiram especializados unicamente nessa seara, como Palavra Cantada (de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik), Pequeno Cidadão (de Edgard Scandurra, Taciana Barros e Antonio Pinto); o Fera Neném (de Peri Pane e Gustavo Cabelo).

Tudo isso para dizer que o show Zoró Zureta, que Zeca Baleiro estreou neste 17 de agosto, no Sesc Consolação, em São Paulo, não é um espetáculo ordinário. Pelo contrário: é extraordinário, há pouquíssimos do tipo na história da MPB. Em geral, é a experiência da paternidade ou da maternidade que leva os artistas a descobrirem que há um vácuo nessa produção para um dos maiores públicos da música, o infantil. Zeca, por exemplo, para fazer o filho dormir, se viu na contingência de criar sua própria canção de ninar: “O Pardal”.
O que Zeca Baleiro propõe em Zoró Zureta é uma cisão na tradição de musicais do tipo Broadway, substrato da maioria dos espetáculos do gênero. Em vez de cortejar a dramaturgia antropomórfica típica de tais espetáculos, ele recorre à coreografia de festa junina, aos jogos de trava-língua e de adivinhação da infância nos interiores do Brasil, às artimanhas de caipiras ladinos e suas trapaças inofensivas para ludibriar sem ferir.
Outra grande sacada do espetáculo de Zeca é que ele alista os pais presentes sem que estes se deem conta de que estão engajados no show. Como as brincadeiras são atemporais e “ageográficas”, vêm de gerações antes das nossas, há um momento em que todo mundo está confessando seus personagens preferidos de desenhos animados extintos, numa interatividade que não se percebe como estratégia.

Com cinco cantoras na linha de frente, ao seu lado, formando o coro, entre elas Tata Fernandes (voz e violão), Nô Stopa (voz e violão), Simone Julien (voz, flauta e sax) e Vange Milliet (voz e percussão), Baleiro pode se dar ao luxo de manter apenas dois músicos na cozinha: Rogério Delayon (guitarras, violão e bandolim) e Pedro Cunha (teclados, sanfona e programações). Todos eles são “atores” do show, mas suas falas são suas próprias experiências.

As canções “para crianças” de Zeca não são só para crianças, esse é um dos segredos. Elas às vezes partem de um dito popular, de um aforismo de boteco, uma coisa de suave nonsense e que desfruta de certa unanimidade. “Deu Zebra”, por exemplo, é uma canção sobre a ideia nacional que sobreveio com os prognósticos da loteria esportiva, que é quando um time presumivelmente mais fraco vence o mais forte, surpreendendo o apostador. Com camisas de times de futebol pendentes do teto, uma projeção audiovisual de pequenos desenhos animados ao fundo, tudo vira uma festa de estádio para uma torcida ecumênica.

Nomes viram música, e a música vira reconhecimento de uma sonoridade nacional, uma conjunção de divindades que vieram da poeira dos campinhos, das várzeas:

Canhoteiro, Rivelino
Casagrande, Jairzinho
Serginho Chulapa, Gérson Caçapa
Caçapava, Waldomiro
Ataliba, Robinho, Andrade, Adilio
Cláudio Adão e Biro-Biro
Ademir da Guia, Domingos da Guia
Didi, Dadá, Vavá, Mané, Pelé

Da serpente que queria ser pente ao ornitorrinco que foi ao otorrino, se extrai a melhor viagem por um universo que mostra o que de fato aproxima pais & filhos: a cultura.

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