A autoridade de Francineth

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Uma grande voz do samba canta a canção que enfureceu o general, Cambão, em show no Sesc Pompeia

Plantei arroz, plantei feijão/De sol a sol eu trabalhei que só um boi ladrão/E a safra, vai vendo irmão, a maior parte ficou toda com o patrão

Essa música de fundo de reforma agrária, Cambão, composição do pernambucano Luiz Vieira, ouvida num remoto compacto de 1966, anunciava uma voz emancipatória, independente, de incontestável autoridade. Era a cantora potiguar Francineth, soltando um grito de liberdade que se tornava nervosamente jazzístico no som do grupo que a acompanhava, o Banzo Trio, com Nelson Racy (piano), Ditinho (baixo) e Howard França (bateria). “Nas minhas costas ninguém vai viver mais não!”, decretava Francineth.

O compacto de 1966, que continha ainda a canção Viola do Moreno, enfureceu o então mandatário do País, o general Castelo Branco, que mandou recolher todos os discos. Luiz Vieira já antevia aquele reboliço. Tanto que, ao convidar Francineth, ele a advertiu. Mas ela ouviu e disse: “Vamos gravar!”.

Francineth era então crooner da orquestra do saxofonista, produtor e maestro mineiro Moacyr Silva, com quem tinha gravado seu primeiro disco em 1963. Também integrava o conjunto vocal As Gatas (que aparece em uma infinidade de discos de samba dos anos 60 até o final dos anos 80). As Gatas estão em coros de discos de Clara Nunes, Luiz Gonzaga, Chico Buarque, Paul Simon, João Nogueira, Roberto Ribeiro, Conjunto Nosso Samba, Simone, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Gonzaguinha, Zeca Pagodinho, Ivan Lins, Beth Carvalho

 53 anos depois daquela gravação de Cambão, será possível ouvir mais uma vez a canção que enfureceu o general. No coração da pauliceia, Francineth Germano se junta a outro grupo de jovens, Os Batuqueiros e sua Gente, para um show na noite desta sexta, dia 7 de junho de 2019, às 21 horas, no Teatro do Sesc Pompeia.  Vai cantar a célebre canção que emputeceu o regime, além de gemas do samba que ela se acostumou a gravar desde o primeiro disco, de 1963 (no qual ela gravou Donga).

Aos 79 anos, nascida em Santa Cruz do Inharé, no interior do Rio Grande do Norte (a umas duas horas da Capital, Natal), Francineth Germano criou gerações de cantoras – ela e suas filhas, ainda hoje, colocam vocais em discos que vão do Trio Nordestino a Sandro Becker.  Sua trajetória artística começou nas rádios de Natal quando ainda era menina. Seu pai era safoneiro, Manuel  de Elias. Sua irmã, Chiquinha do Acordeon (que depois casaria com o lendário Rei do Xaxado do Nordeste, o paraibano Zito Borborema), tocava no Regional da Rádio Poti. Um dia, pediram duas garotas para completar uma seleção de calouros. Ela venceu o concurso e vieram com um contrato de carteira assinada com a rádio. Aos 14 anos, criou um trio de forró com suas irmãs, As Irmãs Ferreira (o sobrenome é inventado).

Mas quando o horizonte na rádio começou a minguar, Francineth tinha 19 anos e não teve dúvidas: rumou para o Rio de Janeiro. Ela conta, em um vídeo, como foi a virada.

 “Depois de um certo tempo, larguei o Rio Grande do Norte e vim pro Rio de Janeiro. Fui atrás dos músicos, dos pontos dos músicos, em busca de trabalho. Mas não encontrei. Alguma coisa na minha cabeça me disse: vai à Rádio Nacional, vai em busca do programa Calouros do Ary. E eu fui. Ganhei a nota cinco, que era a nota máxima”.

Logo em seguida, empregou-se como cantora da noite numa boate chamada Au Bon Gourmet, em Copacabana. Ali se apresentava gente do naipe de Dóris Monteiro, Dolores Durán, Tom Jobim, João Gilberto, Os Cariocas. Uma noite, alguém foi lá e me pediu: ‘Francineth, canta uma música aí!’. Ela escolheu cantar Fim de Comédia, sucesso de Elizeth Cardoso, a Divina. “Esse amor quase tragédia/Que me fez um grande mal/Felizmente essa comédia/Vai chegando ao seu final”. Mas justo quem estava na plateia? Elizeth Cardoso. Depois de ouvi-la, Elizeth a chamou ao camarim.

“O que você acha de trabalhar em orquestra, em vez de toda noite numa boate?”. Francineth estava de fato achando a vida meio puxada naquele ritmo. Topou a proposta. A orquestra para a qual Elizeth a levou era a de Moacyr Silva, com quem ela ficou 6 anos. “Você tem uma voz muito bonita, eu acredito em você”, lhe disse Elizeth. E tornou-se sua madrinha artística.

Em 1965, Elizeth escalou Francineth na seleção do disco Viva o Samba! (Copacabana), que contava ainda com os talentos de Cyro Monteiro e Roberto Silva, além da própria Elizeth. Cantavam os sambas de quadra das maiores Escolas de Samba do Rio de Janeiro: Portela, Mangueira, Império Serrano, Salgueiro e a extinta Unidos de Lucas.

Há uns 20 anos, Francineth decidiu reduzir o ritmo da carreira para cuidar da filha mais nova, então garota. Continuou trabalhando, mas mais esparsamente. Há 15 anos, por conta de sua constância no estúdio, resolveram lhe presentear com um novo disco. Ela gravou então o CD Francineth Canta Sucessos Populares. Isso já faz uns 15 anos. O novo disco, com os Batuqueiros e Sua Gente, ela já mostrou em um show na Casa de Francisco, no dia 1º. Tem participações de João Camarero, Nailor Proveta e Zeca Pagodinho. Chamá-la de Dama do Samba seria um clichê: ela é uma verdadeira guerrilheira do samba.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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