O site Sul21 traz notícia de suma importância: o Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) aprovou na sexta-feira, dia 17, a entrega do título de Doutora Honoris Causa à cantora Elza Soares, de 81 anos, pelo conjunto de sua obra. Em atividade discográfica há exatos 60 anos, Elza torna desnecessário explicar os porquês da concessão do título – mas, OK, chovamos no molhado, em tempos de horror.

“A entrega do reconhecimento a Elza Soares é um momento histórico também para a cultura brasileira, em razão de ser a primeira vez que uma artista mulher e negra, ligada à música popular, recebe a distinção. Somente Maria Bethânia recebera tal título pela Universidade Federal da Bahia, em 2016”, afirmou em nota a UFRGS. É a ponta de um iceberg colossal.

Elza é honoris causa desde que sobreviveu à lata d’água na favela, à gravidez adolescente, a maridos abusivos, ao sensacionalismo na cobertura de seu romance com o jogador de futebol Garrincha, aos indestrutíveis preconceitos da cultura brasileira (e da MPB) contra o samba e a negritude, a diversas mortes e ressurreições.

A face militante de Elza é, no entanto, o maior merecimento. Está muito em evidência em anos recentes, mas é longa, virtuosa e corpulenta. Em 1961, Elza já cantava o samba antirracista “Branca, Não Bota Banca”, de uns tais João Negrão e Herolt Miranda. A resiliência e a resistência se manifestaram desde sempre, em sambas valentes como “Eu Sou a Outra” (1963), de Ricardo Galeno, “A Banca do Distinto” (1963), libelo de Billy Blanco, “Volta por Cima” (1963), de Paulo Vanzolini, “Deixa a Nega Gingar” (1966), de Luiz Cláudio, e “Tributo a Martin Luther King” (1970), libelo de Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli.

Elza sempre tentou se desvencilhar das amarras do samba, e sempre foi silenciosamente rechaçada por isso. Álbuns híbridos como Somos Todos Iguais (1985) atestam a vocação para a asa livre, com a inclusão de blues de Cazuza e Frejat e dueto de “Sophisticated Lady” com Caetano Veloso. O “deus-mercado” sempre a atirava de volta aos pagodes de fundo de quintal (de fato, uma de suas grandes veias de potência, mas jamais a única).

A libertação das amarras começou em 2002, com Do Cóccix Até o Pescoço, seguido pelo álbum de electro-samba Vivo Feliz (2004), e se consolidou na associação com os vanguardeiros paulistas Kiko Dinucci, Douglas Germano, Rodrigo Campos, Cacá Machado, Tulipa Ruiz e Romulo Fróes (entre outros), nos discos de contra-samba A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus É Mulher (2018).

Nesse intervalo, Elza pulsou afinada com alguns honoris causa (não reconhecidos) da política. Militou pelo “fora Temer“, reinterpretando o “Canto de Ossanha” traidor de Baden Powell e Vinicius de Moraes no palco mundial das Olimpíadas de 2016. Fez-se corpo e voz da Lei Maria da Penha, por intermédio da brava canção “Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é brava,/ imagina a da Vila Matilde)”, do paulistano Douglas Germano: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.

No combo atual, a artista octogenária tem militado bravamente contra a homofobia, a misoginia, o racismo, o classismo – ela compreendeu, como ninguém mais, que nenhum desses combates existe se não vier acompanhado dos outros todos. É o suficiente para que as hienas do proto-fascismo queiram distância máxima de Elza Soares. E desta vez as hienas perderam para, ora veja só, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Viva Elza!

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