Atrás do cabelo entre o grisalho e o lilás, Tetê esconde e mostra o rosto moldado em "Outro Lugar"
Atrás do cabelo entre o grisalho e o lilás, Tetê esconde e mostra o rosto moldado em “Outro Lugar”

Tetê Espíndola sempre habitou um lugar à parte nas gavetas em que se costumam guardar os valores da música popular brasileira. Fala sobre esse não-estar de um modo sutil no álbum mais recente, batizado Outro Lugar. Outro lugar, para a cantora e compositora de 64 anos, é a cidade onde nasceu, Campo Grande, localidade interiorana do Mato Grosso que mais tarde, em 1979, seria promovida a capital do desmembrado Mato Grosso do Sul. Outro lugar é Cuiabá, é a Chapada Diamantina, é o Pantanal – lugares da infância e a da primeira juventude, que a artista abandonou para vir ajudar a construir, na maior cidade do país, um outro-outro lugar: a vanguarda paulistana do início dos anos 1980.

Outros lugares de excentricidade onde mora Tetê são o instrumento de eleição híbrido e incomum (a craviola), a música de natureza que gesta (essencialmente aquática, floral, pantanosa) e a voz aguda, aguda, agudíssima. O álbum Pássaros na Garganta (1982) colaborou para consolidá-la como voz passarinheira, ainda que os lamentos muito humanos tragam à boca de cena outras mulheres esquecidas da terra brasileira e latino-americana: as indígenas, as fronteiriças, as inhanas da música caipira, as paraguayas guaranys, as circenses, as ciganas, as sem terra, as sem teto, as afrobrasileiras. Outros lugares, outras protagonistas.

Sobre esse universo anfíbio que ata pontas opostas dos interiores brasileiros (da raiz caipira latina no Centro-Oeste faroeste à urbanidade vanguardeira no Sudeste bangue-bangue), Tetê erige desde os anos 1970 uma obra que mora dentro (dentro de casa, da oca, da maloca, do quilombo, do pântano, do sem-céu) e frequentemente parece que nem está aqui – à medida que brasileiros de todos os quadrantes geográficos e intelectuais se preferem simular europeus em vez de indígenas, estadunidenses em vez de pan-americanos. É desse outro lugar (aqui) que Tetê fala na entrevista a seguir, em texto e vídeo, em loa de índia cujos cabelos negros como as noites que não têm luar hoje estão assumidamente grisalhos.

 

Pedro Alexandre Sanches: A música-título de Outro Lugar fala: “Não sou daqui nem sou de lá/ sou sempre de outro lugar”. Não é sua, é do Arnaldo Black, mas funciona como uma declaração de princípios bem forte, não?

Tetê Espíndola: Essa música foi composta pra mim, ele fez essa homenagem, de eu ter vindo do interior. Mas eu já sou uma mundana, uma urbana total. Estou morando em São Paulo já tem 35 anos. Ele fez essa música tão delicada no violão, e quando eu toquei na craviola parece que foi feita pra tocar na craviola. Eu acrescentei aquele suspiro (reproduz o som), que depois, quando fiz o primeiro show, descobri que é uma escala indiana, que o Tuco Marcondes me mostrou na cítara. Acabou ficando uma música muito forte.

PAS: O nome do disco.

TE: Do disco, um disco basicamente autoral, onde coloco uma música do Arnaldo, uma do Geraldo Espíndola e uma do Phillippe Kadosch, que é uma “triceria”. Eu poderia ter colocado o nome de uma música minha, e achei que não, achei que tinha tudo a ver eu voltar essa homenagem. Foi uma troca de amor.

PAS: Cabe como um discurso seu? Você se sente como uma pessoa que é de outro lugar, onde quer que esteja?

TE: É. E a proposta acabou ficando assim: vamos achar um outro lugar, um lugar dentro de si mesmo. Isso está pegando legal, as pessoas se interessam por esse papo. Eu uso um tipo de voz muito suave. Desde o início eu cantei assim, não podia ser gritada. E você vê o que é internet, as plataformas, em Recife todo mundo cantou essa música comigo da plateia. E não foi só essa, não, também cantaram “Aconchego”, “Luz e Anzol”, que é uma letra difícil. É louco fazer um show de música nova, e começaram a cantar, fiquei emocionada.

PAS: Estamos fazendo esta entrevista no Parque Ibirapuera, e já entrevistei você à beira de um rio em Bonito (MS). Você é uma cantora e compositora que tem a natureza como elemento primordial da sua música.

TE: Inspiração. Inspiração. Este parque é o bom de morar em Moema. Eu curto como se fosse meu quintal. É pertinho de casa, venho a pé, venho aqui quando quero sossego, faço minha caminhada. E, por mais que seja barulhento, é bom pra mim e para o Dani (Black, filho, cantor e compositor), porque a gente vive viajando e Congonhas é dez minutos da minha casa.

PAS: Esse Outro Lugar a que você pertence seria a natureza?

TE: Não, eu acho que não é. Todo mundo pergunta, “você mora na cidade?”, “um barulhão”, “você vem do Mato Grosso, como aguenta?”. Já estou há mais da metade da minha vida vivendo aqui. O que senti é que o lance lá do Mato Grosso foi tão forte, tão definitivo na minha vida do interior, como inspiração, que isso ficou, faz parte da minha raiz. É como se eu tivesse aquilo dentro de mim. Então, quando fecho o olho, eu vou pra esse lugar.

PAS: E aí faz músicas sobre ele, sempre. É como se fosse uma saudade, talvez?

TE: É como se fosse um ponto de memória, é quase uma saudade. É uma memória visual e sonora que tenho de tudo. Eu sempre gosto de lembrar dos sons da natureza que estão dentro de mim. Aquilo ficou fazendo parte da minha memória.

PAS: É muito bonito que quando você surgiu artisticamente, pra um público maior, foi associada à tal vanguarda paulistana, que era hiper-urbana, então você une as duas coisas, surge artisticamente como uma fazedora de sons urbanos, mas ao mesmo tempo cada vez mais você vai se consolidando como uma artista, essa de que estamos falando, que volta à natureza sempre.

TE: É, eu saí disso, comecei minha carreira cantando a ecologia com os meus irmãos, antes dessa história da vanguarda paulista. Falam paulista, mas Arrigo Barnabé é de Londrina (PR), um bando de gente também é do interior. Mas a gente se encontrou aqui, logo depois, uns dois ou três anos, que eu tinha chegado do Mato Grosso. Estava na batalha e aconteceu de eu conhecer o Arrigo, e aí começou a ficar uma coisa mais aberta nesse sentido. Foi tão engraçada essa troca, porque o Arrigo me acrescentou uma coisa urbana forte, de intérprete., mas ele veio pro meu lado como compositor, fazendo letras que lembravam a natureza. Fez até música especial pra eu cantar, que não tinha nada a ver com o urbano. Então a gente trocou, ele mexeu comigo nesse sentido e eu mexi com ele, pra vir à tona a natureza dele, do interior lá do Paraná.

PAS: Na real eram dois interioranos, um do Paraná e outra do Mato Grosso do Sul.

TE: Dois interioranos, que é a tal da vanguarda paulistana. A gente trocou bastante naquela época, de 1980, 1982, até mais pra frente um pouquinho. Depois a gente ficou um pouco separado, meio longe, mas retomamos de um tempo pra cá nossa amizade, e continua como se fosse a mesma. Amizade de verdade é assim, né?

PAS: Saudades do Itamar Assumpção ajudaram?

Itamar Assumpção estreou em 1980, como Beleléu, com a banda Isca de Polícia
Itamar Assumpção estreou em 1980, como Beleléu, com a banda Isca de Polícia

TE: Nossa, muita, muita saudade do Itamar.

PAS: Esse era paulista do Tietê, mas também passou pelo Paraná.

TE: Uma menina da USP fez um documentário sobre a minha voz, falando de voz, uma coisa que nunca ninguém fez – sempre me colocam junto com a vanguarda, ou pegam no ponto de festival da Globo, e ela foi fundo nesse negócio. Está ficando pronto, eu fiquei tão chocada quando vi. Aí tem o festival da Tupi de 1979, e o Itamar tocando baixo, a primeira vez que ele apareceu, tocando baixo e falando “sabor de quê?”, e o público vaiando.

PAS: Você não estava junto?

TE: Estava. Eu, Suzana Salles Vânia Bastos, na Banda Sabor de Veneno. E o público baiano e a Neuza Pinheiro cantando. Foi muito, muito forte. Era “Sabor de Veneno” concorrendo, e o público vaiando, e Itamar bravo, novinho, a primeira vez que estava aparecendo na televisão. Ele falava, furioso, “sabor de quê?”(ri).

Na estreia de Arrigo Barnabé com "Clara Crocodilo" (1980), Arrigo Barnabé era acompanhado da Banda Sabor de Veneno, com participação de Tetê
Na estreia de Arrigo Barnabé com “Clara Crocodilo” (1980), Arrigo Barnabé era acompanhado da Banda Sabor de Veneno, com participação de Tetê

PAS: Você já foi vaiada também?

TE: Olha, teve um acontecimento que pareceu uma vaia, mas não foi, no festival MPB Shell 81. Eu fui cantar “Londrina”, o Arrigo entrava com a flor, o arranjo maravilhoso, com uma orquestra de verdade. Era a primeira vez que eu cantava com orquestra. Fomos pro Maracanãzinho, 20 mil pessoas. E tinha uma trama ali, que eu não podia ganhar nenhum prêmio. A música podia ter ganhado, eu podia ganhar melhor intérprete, e acabou ganhando melhor arranjo, porque fizeram um auê ali. Ameaçaram, fizeram umas ameaças comigo, “aconteça o que acontecer não pare de cantar”, antes de eu entrar pra enfrentar pela primeira vez 20 mil pessoas.

PAS: Isso quem?

TE: Ah, não sei. Pessoal da produção, da gravadora, de coisa assim. A gente era independente.

PAS: Você está dizendo que tinha um lobby contra vocês, ou porque vocês eram independentes?

TE: É, porque a gente era independente. Foi uma barra. O que eles fizeram? Cortaram o som. A gente entrou pra cantar, era transmitido ao vivo pro Brasil todo. Eu não tinha retorno nenhum de nada, e a orquestra enorme, ainda bem que escutei a orquestra acústica do meu lado.

PAS: Esse é o maior Outro Lugar do mundo…

TE: Nossa. E o público não ouvia nada. E, na TV, o público de casa ouvia a gente cantando. E o público gritava e fazia “não, não, não”.

PAS: E você achou que era uma vaia.

TE: Eu tinha certeza, porque fui ameaçada antes de entrar. Toda a armação era para “puxa, coitadinha, eles foram vaiados”. Não podia ganhar nada. Aí ganhou melhor arranjo, porque não tinha por onde, era um arranjo de orquestra do Cláudio Leal Ferreira. Aconteceu isso, que deu uma sensação de vaia, porque teve uma reação do público, e era muita gente. O som era muito forte. Não foi fácil, foi um desafio pra mim. Quem viu não acreditava, porque a gente estava super-afiado, eu afinada com as cordas, tudo cronometrado, a gente tinha ensaiado muito. Era uma música muito difícil. Mas vaiada, não me lembro de ser vaiada…

PAS: Os grandes artistas são vaiados uma vez na vida…

TE: Então, pode ser que tenha tido uma vaia como essa, uma vaia armada. Quando tem um som desse, uma reação, a gente que lida com a música se concentra muito no ouvido, tem uma coisa que acontece dentro da cabeça. “Como você conseguia cantar, afinar, com 20 mil pessoas gritando e falando ‘para, para’?” Não era “sai”, era “não, não, não” e “para, para, para”.

PAS: É um fenômeno cultural isso, Tetê.

TE: Eles não estavam estavam escutando.

PAS: Mas pode ser tudo misturado, porque vocês também faziam um som que era novo e provavelmente incompreensível no momento.

TE: Foi, foi tudo junto. Esse MPB Shell de 1981 foi o último festival que teve uma trama, uma coisa de gravadora. Quando chegou no de 1985 já não tinha mais isso.

PAS: Então 1985, com “Escrito nas Estrelas”, teria sido um resgate desse momento pra você, ou mesmo pra eles?

TE: Foi um outro momento, porque foi um outro tipo de coisa. Eu estava já com um pezinho numa multinacional. Tive dois momentos em multinacional, um no comecinho da carreira e depois esse. Coincidentemente, eu já ia fazer um disco, já estava fazendo, quando rolou a história do festival. Aí o selo abraçou a história e fez um mix. Aí eles aproveitaram bastante, porque, olha, o que vendeu isso aí…

O disco mix de 1985 saiu apenas com "Escrito nas Estrelas"; logo a seguir chegou o LP "Gaiola", sem a canção vencedora do festival
O disco mix de 1985 saiu apenas com “Escrito nas Estrelas”; logo a seguir chegou o LP “Gaiola”, sem a canção vencedora do festival

PAS: E aí você venceu o último festival da longa era dos festivais.

TE: Foi a longa era.

(Devido aos barulhos de tratores, mudamos a entrevista para outro local, agora num fundo de flores lilases, talvez orquídeas. Tetê comenta que a rinsagem que usa no cabelo “desbotado” se chama orquídea.)

PAS: Já conversamos sobre isso, você está assumidíssima como grisalha, não?

TE: Nossa, estou adorando. Não dá mais trabalho nenhum. Não sou mais escrava.

PAS: Voltando um pouco lá pros primórdios, você, ainda em Mato Grosso, tinha primeiro o grupo LuzAzul, que virou Tetê e o Lírio Selvagem. Isso era em Campo Grande?

TE: Em Campo Grande. Essa fase foi uma junção de tudo que estava acontecendo. Cada um fazia seu som, eu por exemplo estava em Cuiabá, em 1974, e Alzira (E) foi passar umas férias lá e a gente criou um grupo com Marta Catunda, que a gente chamava Arco da Lua.

PAS: Não existia Mato Grosso do Sul ainda.

TE: Não existia, era Mato Grosso. Estávamos lá no norte. E o Geraldo e o Celito (Espíndola) estavam compondo lá em Campo Grande.

PAS: Seus irmãos.

TE: Os irmãos. Aí teve esse encontro, quando eu e Alzira voltamos de Cuiabá a gente estava querendo fazer um grupo. A gente não queria ser dupla, queria ser um grupo, porque sabíamos que Geraldo e Celito estavam compondo muito. Eu sempre fui apaixonada pelas músicas do Geraldo, e ele tocando craviola, a craviola me fez a cabeça. Voltei de Cuiabá já com uma craviola que me deram de presente lá. De repente os irmãos se encontraram, eu e Geraldo tocando craviola, Alzira tocava violão de 12, um violão enorme, que ela mal conseguia pegar, e Celito tocava baixo acústico, mas não de orquestra, um baixo acústico paraguaio. E a gente começou a fazer um som, por que não?, vamos chamar de LuzAzul, foi ideia do Geraldo. Começamos a fazer esse som acústico, e em São Paulo era o auge da discoteca.

PAS: Novamente o contrário…

TE: Nós estávamos num outro lugar mesmo, vivíamos intensamente a pureza de falar sobre o amor com a natureza. E aquele vocal maravilhoso, eu era solista, Geraldo fazia músicas agudas pra eu cantar. Corremos em alguns lugares, em universidade, nunca fomos tocar em barzinho. Não tenho nada contra barzinho, mas não foi assim, a gente foi pra universidades do Mato Grosso (pitangas “chovem” sobre a entrevista). Foi tão chocante quando a gente chegou em São Paulo, eu e Alzira.

PAS: Aí o Lírio já tinha acabado?

TE: Não, não, quando saímos de Mato Grosso ainda existia o LuzAzul, mas a gente não aguentava mais ficar em Campo Grande, a gente queria fazer a coisa acontecer. Ela foi pra Campinas, foi a época que ela teve a Iara (Rennó, cantora e compositora), e eu fui pra São Paulo, e logo depois já encontrei o Arrigo. Em Campinas até pintou uma oportunidade pra esse grupo ser apresentar, saiu matéria, “a LuzAzul do Mato Grosso”. Aí os meninos voltaram pra Mato Grosso, já Mato Grosso do Sul, porque foi nessa época que o estado separou. E aí pintou a oportunidade pra mim, pra eu gravar na PolyGram. Acostumada a ter grupo, eu quis fazer o grupo com os meus irmãos. Mandaram buscar eles, Alzira veio de Campinas. Aí os caras falaram: “Vocês vão ter que mudar o nome desse grupo, pra fazer disco aqui não pode LuzAzul”. Nós inconformados, como?, por quê?

Em 1978, "Tetê e o Lírio Selvagem" reuniu quatro dos irmãos da família Espíndola, com Alzira, Celito e Geraldo
Em 1978, “Tetê e o Lírio Selvagem” reuniu sob visual psicodélico-pantaneiro quatro dos irmãos da grande família Espíndola, com Alzira, Celito e Geraldo

PAS: Qual era a explicação?

TE: Porque estavam lançando a rainha da discoteca, Lady Zu. Estava sendo lançado junto com Tetê e o Lírio Selvagem, falaram pra arranjar outro nome. Lembro direitinho, a gente passando na avenida 23 de Maio, Celito falou: “Já sei o nome, Lírio Selvagem”. Já gostamos. Levamos pra gravadora, que falou “tudo bem, mas a gente que que seja Tetê e o Lírio Selvagem, porque alguém tem que ser responsável pelo contrato, por isso tudo”. Era um contrato de quatro anos, eu assinei.

PAS: Eles na verdade já estavam de olho em você. Fizeram com Mutantes e Rita Lee, é um pouco praxe da indústria.

Em 1980, a estreia solo, com "Piraretã"
Em 1980, a estreia solo, com “Piraretã”
Em "Doma" (1982), Almir Sater trazia o lado pantaneiro do Mato Grosso do Sul, com "Trem do Pantanal", "Sonhos Guaranis" e "Varandas"
Em “Doma” (1982), Almir Sater trazia o lado pantaneiro do Mato Grosso do Sul, com “Trem do Pantanal”, “Sonhos Guaranis” e “Varandas”

TE: É, e foi assim, não durou nem um ano Tetê e o Lírio Selvagem. Os meninos fecharam a cara e voltaram pra Mato Grosso, E eu fiquei sozinha. Aí eu e Alzira não queríamos, ela já estava compondo, a gente não queria essa coisa de grupo. Alzira não era o Lírio Selvagem, Lírio Selvagem eram os três. E aí ficou Tetê, e eu fiz o primeiro disco, Piraretã (1980), que na verdade é uma passagem. A gente chegou a gravar o segundo disco, umas três ou quatro músicas, com participação do Almir Sater já. Usei duas músicas dessa gravação com eles, que tiveram uma participação especial no Pireratã, com “Aratarda”, com Alzira, e “Refazenda” (de Gilberto Gil, 1975), um arranjo que a gente fez com Almir. Peguei algumas coisas que já estavam engatilhadas, porque com gravadora tem que cumprir o contrato, e já estava na hora de fazer o outro disco. Então foi isso que aconteceu, não foi que (imposta a voz) eu acabei o grupo. O grupo acabou.

PAS: E nem eram todos os irmãos, tinham outros ainda, dava pra fazer vários grupos.

TE: Não, o grupo era só nós quatro. O Jerry (Espíndola) ainda era muito criança, tinha 10 anos. Eu tinha 20, sou dez anos mais velha. Ele era impressionado com negócio de Lírio Selvagem. Lá em Mato Grosso ficou todo mundo muito triste, arrasado. E os meninos voltaram e nunca mais voltaram pra São Paulo.

PAS: Foram as moças que vieram ganhar a cidade grande, a capital brasileira.

TE: As moças continuaram aqui, eu em São Paulo e Alzira em Campinas. Depois, mais pra frente, a gente se encontrou. O que ficou de mais forte desse encontro foi  quando eu e ela gravamos Anahí, ao vivo, em 1998.

Com a raiz pura de "Anahí" (1998), as irmãs Tetê e Espíndola produziram seu trabalho mais pantaneiro-fronteiriço-caipira
Com a raiz pura de “Anahí” (1998), as irmãs Tetê e Espíndola produziram seu trabalho mais pantaneiro-fronteiriço-caipira

PAS: Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso.

TE: Está fazendo 20 anos esse disco. A gente vai comemorar. Ainda é segredo.

PAS: Aí é um reencontro não só com a natureza, mas com as canções caipiras, fronteiriças…

TE: De raiz, né? Música de raiz lá do Mato Grosso, as coisas que mamãe cantava pra gente. É um negócio muito forte. O repertório cresceu um pouco, colocamos outras coisas, música minha, música dela. E estamos há 20 anos, vai fazer 20 anos que a gente não para de fazer esse show, nunca. Paralelo a tudo que está acontecendo na minha vida e na dela, chamam a gente pra fazer. E aí a gente vai, as duas irmãzinhas, de mão dada.

PAS: Tem um mistério aí, que é muito a raiz de vocês, o passado.

TE: A gente viveu a infância junto. Eu vi Alzira nascer, ela foi minha bonequinha. É uma coisa muito forte. A família toda tem isso, os irmãos são muito unidos, graças a Deus.

PAS: Estou aqui sonhando, essas flores bem poderiam ser lírios selvagens (a assessora de imprensa de Tetê, Tati Pugliesi, conta que pesquisou e são flores de íris, e que ao redor há um pé de jacarandá com flores também roxas, além da pitangueira carregada).

TE: Você podia fazer uma entrevista reunindo todo mundo, e cada um contar a sua versão.

PAS: Sabe que é o meu sonho, né?

TE: Essa é a minha versão dessa época, vai saber a versão deles. Cada um tem a sua.

PAS: Isso daria um livro. Por sinal, você me apresentou o livro do Rodrigo Teixeira sobre a história da música sul-matogrossense.

O jornalista e músico gaúcho-sul-matogrossense Rodrigo Teixeira escreveu livros sobre os fundadores da música local e sobre a geração "prata da casa", da qual Tetê fez parte antes de migrar
O jornalista e músico gaúcho-sul-matogrossense Rodrigo Teixeira escreveu livros sobre os fundadores da música local e sobre a geração “prata da casa”, da qual Tetê fez parte antes de migrar

TE: Estou lendo um livro de uma menina de lá também, que agora é secretária da fundação cultural. É uma mulher fantástica, chama-se Lenilde Ramos, ela fez parte da nossa adolescência, ia na mamãe, na casa dos Espíndola. Estou apaixonada por esse livro, se chama História sem Nome, olha que nome. É a história de uma menina quase gêmea, e ela tem uma irmã que fez som comigo e com Alzira, que canta pra caramba, a Lenilce – até hoje confundo as duas, elas são quase gêmeas mesmo. A Nega – a gente chamava ela de Nega – está vivendo na Itália há muitos anos. É sobre a infância delas, estou viajando, tudo acontece em Campo Grande, mexeu muito com a minha memória.

PAS: Tetê, como foi chegar em São Paulo e fazer a vanguarda paulista, com essa história de cachoeira e flor e árvore e pássaro que você tinha?

TE: Na verdade surgiu junto. Quando entrei nessa onda, nessa tchurma, foi através do Cláudio Leal Ferreira, que me apresentou o Arrigo, e o Carlos Rennó em Campinas com Alzira. A primeira coisa que fiz com Arrigo, encontrei ele na Cardeal Arcoverde, “quer cantar comigo nesse festival?”, era um festival universitário do Tuca. E ele começou a tocar (faz ruídos com a voz). Fiquei chocada, o que é isso, meu Deus?, como é que eu vou cantar isso? e eu, que adoro desafio, você acha que eu ia dar pra trás com esse louco que eu tinha acabado de conhecer, esse cara incrível que fazia aquele som estranho? Aquilo era muito estranho pra mim. Falei “não, eu vou sim, vou participar do festival com você”. Fiquei estudando a tal da música, difícil, difícil, e fomos cantar nesse festival. E fui também, já com a minha craviola, cantando “Viver Junto”, uma música argudíssima que gravei no Piraretã. Desde essa época eu comecei a viver os dois lados, aprendi a viver. Hoje eu chamaria, sei lá, de fase. Virou a fase, é a fase Tetê cantando Arrigo, depois vira aqui, é a Tetê com a craviola, que tem aquela ligação com os irmãos, por causa das composições, que eu continuei cantando. Era muito chocante pra mim e pras pessoas entrarem na casa da Eliete Negreiros, onde fui hospedada, e eu estava cantando com a minha craviola, “essa é a cantora do Arrigo agora, que vai cantar no festival”. Era muito diferente. A partir dali eu achei a coisa mais normal do mundo, que eu tinha que viver os dois lados, que eu não ia largar de nenhum. Eu tinha largado dos meus irmãos, estava sozinha, sozinha pra fazer um disco solo, e eu estava numa multinacional, e tudo que estava acontecendo era vanguarda, era considerado underground. Eu estava nos dois, foi muito louco pra mim esse começo de carreira. Eu sempre vivi esses dois lados da minha arte, a coisa da composição com a craviola, de cantar as músicas dos meus irmãos, essa coisa ligada com a paisagem do Pantanal, do cerrado, e essa coisa de cantar, de ser intérprete de coisas diferentes, que me desafiavam. Aquilo foi muito bom pra mim, porque eu cresci muito musicalmente. E eu não sabia ler música, até hoje não sei. Às vezes me pergunto, ai, meu Deus, será que vou estudar? Mas até Hermeto Pascoal falou pra mim, “não, não faz essa besteira, você já é assim, não tem que mexer, está bom assim”.

PAS: Conselho de Hermeto não se despreza.

TE: É. Como eu conseguia cantar aquelas coisas com partitura, bicho? Então é isso, daquele tempo em diante eu comecei a viver os dois lados intensamente. Por isso surgiu a história da música do Arnaldo Black com Carlos Rennó, que não era minha composição.

PAS: “Escrito nas Estrelas” (1985).

TE: Eu estava concorrendo também com uma composição minha com letra de Rennó, mas a que entrou no festival foi a do Arnaldo. Era assim. E agora continuo vivendo essas duas facetas, mas estou mais envolvida mesmo com a minha craviola.

PAS: A gente simplifica fazendo esses contrapontos, mas sempre me parece que no geral você ficou mais com a natureza e a Alzira, com o lado urbano.

TE: É, parece, sim. Mas acho que o lance de a gente ter gravado música de raiz juntas no Anahí uniu a gente nos dois lados. Considero uma música de raiz contemporânea, porque nós demos nossa visão pra aquela música tão dentro do esquema da fronteira, que querendo ou não era aquilo ali, polca, guarânia. E a gente reeditou tudo isso, então acho que aí Alzira veio pra cá e eu veio pra cá, e a gente ficou com os dois lados. Por mais que Alzira seja muito mais urbana, porque ela é muito louca, uma figura forte de viver na cidade. Ela é meio roqueira, tem esse espírito roqueiro.

PAS: Apesar que você também é, né?

TE: Eu também. Eu tenho, porque sou intérprete. Alzira é muito mais compositora, tem muito mais parceiros, compõe muito mais que eu. Eu posso ser roqueira, ser música popular brasileira, ser instrumental, fazer world music como fiz com Kadosch. Tenho isso desde cedo e desenvolvi, e quero continuar isso, por mais que esteja vivendo agora muito mais o momento de colocar as minhas coisas pra fora.

PAS: Outro Lugar é impressionante, não tem uma música que não fale de passarinho, água, verde ou tudo ao mesmo tempo.

TE: É, fala tudo. Elas têm uma coisa, falam de luz (Tetê põe nos cabelos uma flor de jacarandá trazida por Tati).

PAS: O contato com a natureza é muito feminino também, já que você está colocando uma flor aí. É interessante como as mulheres em geral cantam mais sobre água, por exemplo. Luli & Lucina

TE: É, água, luz, cachoeira. Mas eu sinto que esse disco fala da natureza de uma outra forma. Por isso ele tem essa capa cheia de linhas. Não é aquela natureza estampada, não estou falando “lá no Pantanal tem esses bichos”, “canta, seriema”. Não é isso. Procurei um repertório mais aberto nos meus guardados, falando de um jeito mais universal.

PAS: Acho que os versos do Manoel de Barros refletem isso, não?

TE: É, ainda entrou essa do Manoel de Barros no final de tudo. Falei “não, está faltando Manoel de Barros, tem que ter”. Sinto que Outro Lugar é um jeito de natureza mais urbano. Porque gravei minhas músicas consideradas mais pop – vai seguir uma guarânia (ilustra com a voz), tudo no contratempo. Tem uma guarânia, uma polca, nesse disco. Por ter Sandro Moreno na percussão, ele entende muito  aminha música, a base foi essa, craviola e percussão. A percussão deixa mais pop, todo mundo ouve mexendo o pezinho. Eu não acredito, as pessoas estão dançando com a minha música.

PAS: Tanto o Mato Grosso do Sul, o Mato Grosso, a música de lá, o Pantanal, quanto a vanguarda paulista são um outro lugar em relação ao que o mainstream brasileiro compreende facilmente. Você e sua música não estão sempre num outro lugar?

TE: É, por causa da coisa geográfica mesmo do Brasil. O Brasil é muito grande. Essa onda que fica no centro do Brasil, esse Centro-Oeste que envolve Mato Grosso, Goiás, o Pantanal, tem uma coisa muita forte de influências artísticas, por ser um lugar muito cheio de raízes, como vários, o Nordeste também é. Mas saiu um pouco dessa coisa de São Paulo e Rio, que era mais ligada à MPB, à tropicália, à bossa nova. Nós saímos um pouco disso, trouxemos pra cá essa coisa fresca. Quando chegamos em São Paulo todo mundo falava “nossa, como? esses caras estão cantando o Pantanal, os bichos”. Era diferente, era vanguarda, ninguém cantava isso na época. E o Arrigo trouxe do interior essa coisa diferente de fazer uma música popular brasileira de uma outra forma, usando mais as coisas eruditas e a mistura que dá essa coisa que Arrigo conquistou, esse negócio urbano, essa história em quadrinhos. Tem esse paralelo. E nós, lá, falávamos e cantávamos o Pantanal, e a pessoa via o que a gente estava cantando, aquela paisagem. Era muito diferente do que estava rolando em São Paulo, e até hoje é.

PAS: Vale ainda a respeito de vocês e de tudo que estamos falando, aquela canção em que Elis Regina falava que o Brasil não conhece o Brasil.

TE: É, é isso aí. Até o Nordeste chegou mais rápido aqui. Não sei qual é o problema.

PAS: Não é uma coisa litoral versus interior, talvez?

TE: Talvez. Acho que é por causa do interior mesmo. A maioria das pessoas acha, “é do interior, então canta música caipira, sertaneja”. Não, a gente tem uma boa dose de pop, que Alzira não deixa mentir, e agora o Jerry, com o pop Pantanal.

O caçula Jerry desenvolve trabalho solo autoral a partir de Campo Grande, desde "Pop Pantanal" (200)
O caçula Jerry desenvolve trabalho solo autoral a partir de Campo Grande, desde “Pop Pantanal” (200)

PAS: Polca-rock.

TE: Polca-rock, todas essas coisas. O negócio evoluiu bastante de quando a gente começou. Tem um monte de gente fazendo um som.

PAS: Um outro elemento no seu caso é a sua voz voz, aguda, incomum, pros padrões não só pop, mas pra todos os padrões.

TE: É, isso acho que foi uma das coisas que mais chamou atenção quando eu cheguei cantando no Lírio Selvagem. Eu cantava realmente muito agudo. Porque a gente não afinava no diapasão, a gente não sabia nem o que era isso. A gente era realmente um bando de caipira hippie que não sabia nem que existia diapasão. Chegamos aqui, tivemos que afinar pra tocar com outros músicos no tal do diapasão, aí aumentamos meio tom. Eu cheguei à conclusão de que a gente se afinava mesmo pela natureza, que é o inhambu.

PAS: A voz dos pássaros.

TE: O inhambu dá o tom (imita com a voz). Como vamos afinar o instrumento? Ia de ouvido, e era meio tom abaixo. Então quando cheguei aqui cantei mais agudo do que já cantava, e aquilo foi chocante, porque como uma voz aguda, que é só da música erudita, pode cantar uma música de raiz ou uma música pop? Tanto pode que eu estou aqui, né?, cantando (ri).

PAS: E tem a voz dos índios, quando se ouve as mulheres indígenas cantando elas têm essa voz. E a gente também quer se distanciar dos nossos nativos, da nossa origem, a todo custo.

TE: Pois é, legal isso que você falou. Não são só os pássaros, tem essa coisa ancestral do meu canto, que vem desse choro da índia (imita o choro com a voz). Eu convivi com isso também, quando fui pra Cuiabá eu ia nas aldeias indígenas, ouvia música indígena. Essa influência misturou com o som dos pássaros, e ficou uma voz como se fosse uma flecha, uma coisa mais pontuda. As vozes das índias são mais redondas, e a minha sempre foi mais pra frente.

PAS: Esse é um outro lugar completo em relação a um país que no fundo queria ser Europa, não América.

TE: É verdade. É muito grande. E a coisa de a gente estar lá no centro dos centros, das fronteiras, fascinava muito a gente. A gente prestava muita atenção.

PAS: A fronteira fascinava vocês, fala mais sobre isso.

TE: A gente conviveu com serenatas paraguaias, já nasceu ouvindo a harpa paraguaia, aquele baixo paraguaio, que era diferente. O Celito apaixonou por aquele baixo. Era tudo rústico. A gente queria fazer um som assim, como os nossos ancestrais. O pai da minha mãe era indígena, veio dos índios, e a mãe do do meu pai era paraguaia, da fronteira. Então a gente convivia com esse caldeirão, no centro do Brasil. Quem era do centro tinha essa convivência com a fronteira. Isso soou na minha música como a coisa mais natural do mundo.

PAS: Não é especialmente o seu caso, mas o cara que é da fronteira é aquele que acaba não sendo assimilado direito por nenhuma das duas nacionalidades?

TE: Não… Eu acho que o artista sempre diz “eu sou do Paraguai”, “eu sou do Peru”, “eu sou da Bolívia”, fica bem claro isso através do som. E a gente ficou mais como pantaneiro. A polca, por exemplo, chama chamamé. Quando ela veio pro Brasil e foi pro Pantanal, o povo do Pantanal tocava nas rodas de fogueira, já assumiu esse lado brasileiro, esse jeito brasileiro de ser chamamé. Mas era polca. Aí, quando vai pro lado da fronteira, conviver com os músicos de lá, vai tocar polca mesmo, verdadeira, uma pegada que vai indo cada vez mais rápido, tem que segurar senão ela dispara. E no chamamé a gente aprendeu a segurar, joga pra trás, joga pra trás, joga pra trás.

PAS: Por que desde Chitãozinho & Xororó até, hoje, essa música sertaneja moderna, esses são os artistas que conseguem pular essa barreira e se tornam os mais ricos do Brasil?

TE: Que coisa, né?

PAS: Ao mesmo tempo que parece que a gente não aceita muito, eles têm aceitação total pelo grande público.

TE: Total, pelo grande público. Não sei, eu não consigo explicar isso. Acho que talvez seja realmente uma coisa de mídia. O povo é muito aberto. Se começa a escutar, então a mídia vai lá, investe naquilo e fica tocando aquilo em tudo quanto é lugar, vai entrando na cabeça das pessoas, aí elas querem ouvir. A nossa música, não só eu, mas vários artistas,  tem uma dificuldade de tocar na rádio, de entrar no esquemão da mídia, e por isso as pessoas escutam menos. Quem sabe se elas escutassem mais a nossa música ia ser mais popular, ia estar no ouvido de todo mundo. É uma questão de ouvir muito e achar que aquilo é o bom. Se é bom, se não é, cada um sabe o que está ouvindo. Não sei o que fazer com isso. Mas acho que é uma questão mesmo de acostumar a ouvir, massificar.

PAS: Pensando lá no começo, Cascatinha e Inhana também pertencem a esses dois universos, e foram muito populares. E é uma coisa sofisticada, se prestar atenção.

TE: É lindo. Naquela época estava nascendo a música sertaneja pura. Era aquele sertanejo que tinha em vários lugares, Mato Grosso, São Paulo. Era uma coisa do interior, que conseguiu ganhar audição, a entrar na rádio. Tocava na rádio, que é um meio importantíssimo.

PAS: São Paulo é o estado mais caipira e que mais ofuscou isso com o passar o tempo. E aí vêm artistas como vocês para ganhar a vida aqui.

TE: É, aí vem, a próxima geração era nós, e a gente pegando agora as músicas desses caras. Foi tão bom o que eles fizeram que aquela música perdura até hoje, um monte de gente canta.

PAS: Clube da esquina é uma grande referência pra você?

TE: Total, total.

PAS: É muito parecida essa coisa ao mesmo tempo urbana e moderna e caipira e interiorana.

TE: Pois é, e a gente conviveu com essa música lá em Mato Grosso. Não sei se em Minas eles conheciam a nossa música, mas a gente conheceu a música deles, porque tocava no rádio. A gente se interessou, foi comprar o LP Clube da Esquina (1972). E tinha uma interferência, uma influência no que a gente estava compondo, porque a gente gostava daquelas harmonias caprichadas do Toninho Horta, aquela letra maravilhosa, aquela poesia. Aquilo inspirou a gente a compor. Essa abertura dessa parte musical veio pra nós como se fosse o grande cerrado, o Pantanal, lá eram as grandes montanhas, os espaços enormes. Tinha essa coisa em comum, e aí claro, a gente foi apaixonado por aquilo, ouvia direto.

PAS: Qual é a importância de Outro Lugar na sua trajetória? Não tenho autógrafo da Tetê, mas tenho autógrafo da pitangueira (mostro a capa do disco com uma pitanga esmagada em cima).

TE: Ah, esse disco foi uma surpresa, como ele foi acontecendo. O fato de eu estar envolvida com várias épocas da minha trajetória, quando eu compus a música começou a vir tudo muito à tona, mexeu muito com meu interior. Por isso fiz questão de chamar de Outro Lugar, porque mexeu muito comigo. Eu não tinha ideia de como seria o objeto, fiquei em dúvida se ia lançar como objeto. Fiquei com preguiça, o meu selo bancou tudo, e meu selo é eu e Arnaldo, então a gente teve que dar jeito em tudo, em estúdio. Mas comecei a ficar animada quando fui mixar em Paris, porque o Kadosch ficou impressionadíssimo com o som. Ele é um puta produtor, falou: “Tenho que mixar isso, vai pra lá”, pro estúdio dele, onde a gente tinha todo o tempo do mundo. Aí a Pat, minha filha, Patrícia Black, me pediu: “Mãe, eu posso fazer a capa desse disco? É a primeira capa sua que vou fazer”, e é meu 18º CD. Confiei tanto nela, porque tem um bom gosto muito grande, que deixei, vamos ver no que vai dar. No começo não era foto, “nós não vamos fazer fotografia de você, não é assim, é um outro lugar”. De repente teve essa sessão de foto que ela tirou, só eu e ela, com ventilador, altas luzes. Quando a gente viu o resultado, na mesma hora ela mudou de ideia: “Vai ser a foto”. E ficou essa coisa, eu ao mesmo tempo estou mostrando algumas coisas que nunca mostrei e estou escondendo o meu rosto, isso deixa um mistério. Ficou muito bom pra mim, eu gosto muito, porque é o lance da maturidade, poder fazer uma coisa dessa sem ter que pedir pra ninguém. Entreguei totalmente minha intimidade pra ela, fiz toda a performance pra ela, e ela pegou o movimento da performance. Isso foi uma coisa muito legal entre mãe e filha também, fiquei muito feliz com o resultado.

PAS: A família Espíndola continua produzindo artistas.

Nas linhas de "Outro Lugar" (2017), canções sobre andorinhas, correntezas, pés de vento, aconchegos
Nas linhas de “Outro Lugar” (2017), canções sobre andorinhas, correntezas, pés de vento, aconchegos e outros lugares

TE: E tem o Uibirá Barelli, que fez toda a parte gráfica. Ele trabalha com a Pat, já fizeram várias capas juntos. Ele veio com essas linhas. Ela falou: “Mãe, a natureza está noutro lugar agora, não precisa por cachoeira e árvore na capa. A natureza está nesse movimento das linhas, que são os rios, as montanhas, chapadas”.

PAS: Fazemos entrevista pra falar de disco novo, mas teus dois discos mais recentes antes desse, Água dos Matos, que é pouquíssimo conhecido, lindo, gravado no Pantanal…

TE: É que nem foi lançado ainda, você acredita?

PAS: Asas do Etéreo (2014), que tem participações especiais, só pra citar dois nomes, de Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal.

Em "Asas do Etéreo" (2014), passarinhões, acácias, acauãs, crisálidas-borboletas, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e a reedição de "Pássaros na Garganta" (1982)
Em “Asas do Etéreo” (2014), passarinhões, acácias, acauãs, crisálidas-borboletas, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e a reedição de “Pássaros na Garganta” (1982)

TE: Esse foi o mais recente. Água dos Matos é antes, né?

PAS: E nem saiu ainda oficialmente?

TE: A expedição da Água dos Matos foi antes desse álbum duplo. No álbum duplo, eu estava fazendo 30 anos de Pássaros na Garganta (leia mais aqui) e recuperei esse disco, ele era do Som da Gente e voltou pra mim, voltou a ser LuzAzul, por uma série de coisas da vida que aconteceram. Então eu queria festejar isso, e quando falei com o pessoal do Sesc, com o Danilo Santos de Miranda, contei que estava gravando um disco e que estava com ele praticamente pronto. Quando falei das participações do disco, ele enlouqueceu, “por que a gente não faz um duplo então?”. Poxa, é mesmo, um Pássaros na Garganta ao mesmo tempo com um show Asas do Etéreo. E o Asas do Etéreo apoiou o Pássaros, por isso tinha que ser Asas do Etéreo, não poderia ser outro nome. Foi um show incrível, porque envolveu dois discos, dois repertórios. Recuperei todo o repertório de Pássaros na Garganta, e esse repertório inédito, de minhas músicas com parcerias de vários queridos e queridas.

PAS: Água dos Matos, com Alzira, Jerry Espíndola e Lucina, sai quando?

Em "Água dos Matos" (2015), com Alzira E, Lucina e Jerry Espíndola, povos de beira-rio, olhos de jacaré, vagalumes, danças de camalotes...
Em “Água dos Matos” (2015), com Alzira E, Lucina e Jerry Espíndola, povos de beira-rio, olhos de jacaré, águas do Mato Grosso, tempestades, vagalumes, ariranhas, aracuãs, cantos de emas, danças de camalotes…

TE: Então, ele foi consequência dessa expedição chamada Água dos Matos, em que a gente percorreu os rios Cuiabá e Paraguai. Ficamos 22 dias flutuando. A gente parava a barca e fazia show pros ribeirinhos. Paramos em lugares de gente muito humilde, a gente fazia tipo um churrasco, com pé no chão, cantava numa roda com todo mundo. Em muitos lugares eles não sabiam nem quem eu era, não tinham nem televisão. Quando comecei a cantar, um velhinho e uma velhinha se cutucaram e “quaquaquá”, “olha a voz dela, parece de siriema, de criança imitando bicho”. Aí eu vi que ninguém sabia do meu passado. Nesse percurso, a gente ficou oito dias diretos nesse Pantanal que parece um mar. E essa turma que foi junto pra fazer o show, claro que a gente começou a compor loucamente dentro da chalana. Fazia parceria, “triceria”, cada hora era um, “nasceu mais uma!”, todo mundo corria pro camarote, “vamos no camarote de fulano porque nasceu uma música agora”. De repente, quando chegou a Corumbá, tínhamos feito 15 músicas. Fomos direto pro estúdio e gravamos, porque estava tudo quente, só craviola, voz, violão. Foi a sorte, porque depois chegou em Campo Grande, cada um foi pra sua vida, e a gente tinha aquele tesouro ali. Aí o Jerry, que é danado, conseguiu um jeito da gente gravar esse disco em Campo Grande mesmo, fomos todos pra lá e gravamos o disco em uma semana. Eu gosto muito desse disco, gosto muito de ter ele na minha trajetória. Por mais que a gente não tenha tido um lançamento oficial, esse disco uniu nós todos que participamos dessa expedição pra sempre. A gente se encontra, vem tudo à tona, o que a gente passou lá.

PAS: Vou falar como ouvinte, fã de todos…

TE: Você curtiu?

PAS: …O melhor de cada um está presente, em termos de lirismo. São coisas que vocês não fazem sempre, sozinhos.

TE: Que coisa, né? Porque nós estávamos vivendo aquilo. A gente estava vivendo intensamente só aquilo. A gente vivia na natureza, fomos vivendo uma viagem especial, aquele céu estrelado do Pantanal. Não tinha uma luz em parte nenhuma. E os bichos?

PAS: Será que lá é o seu lugar, Tetê? Lá é o outro lugar?

TE: Lá é. Já está. Eu não vou mudar pra lá, é isso que você quer dizer (ri)?

PAS: Não, não, mas digo, é onde você se sente em casa de alguma maneira?

TE: Total, esse Pantanal inteiro está dentro de mim há muito tempo, mas eu nunca tinha visto ele tão intenso. Fiquei muito tempo com ele. Quando a gente voltou foi difícil, viu? Quando nós todos nos encontramos, vem aquele espírito, “ai, vamos tocar as músicas”. Essas músicas que fiz aqui estão presentes, nos shows solo que faço canto sempre canto elas.

PAS: Cantou uma delas com Alzira em Bonito.

TE: Canto com Alzira, a gente sempre pega alguma coisa, Lucina também canta nos shows dela. São músicas de que a gente gosta muito, são muito importantes.

 

(Leia aqui entrevista de Tetê Espíndola sobre Pássaros na Garganta.)

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