fotografia: sergio silva

Às 23h30 do dia 18 de julho de 1968, na sala O Galpão, do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, assim que terminou a apresentação da peça Roda Viva, os atores foram surpreendidos por um ataque brutal e covarde. Integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) começaram a bater nos atores e na equipe do espetáculo.  Cerca de 90 homens, armados com cassetetes, facas, bombas de gás, dois revólveres e socos-ingleses, agiram dentro do teatro, e 20 ficaram fora. Espancaram as atrizes Marilia Pera, Jura Otero, Eudoxia Acuña, Margot Bird (Walkiria Mamberti estava grávida e berrava isso aos agressores), tiraram suas roupas, tocaram seus corpos, morderam-nas.

A peça, de Chico Buarque de Hollanda, tinha direção de Zé Celso Martinez Corrêa.

Na segunda-feira à noite, 50 anos depois daquele dia, Zé Celso e Chico Buarque voltaram a se encontrar num teatro em São Paulo, em uma nova circunstância de afirmação libertária. Chico não veio pessoalmente, mas seu texto estava de novo presente. Zé Celso compareceu de corpo e alma, vestido com um poncho do México: dançou, cantou uma canção moçambicana e insuflou os presentes a fazerem a rebelião da alegria, a tomar o poder pelo humor, pela consciência da Justiça, a abandonarem a sisudez da militância tradicional.

Foi no Teatro Oficina, abrigo das liberdades democráticas, como discursou Eduardo Suplicy durante o sarau. Sim, um imenso sarau de poetas, em prol da liberdade do presidente Lula.

Estava totalmente lotado; eu, desde a reunião de poetas para levantar fundos para o tratamento de Roberto Piva, nunca mais tinha presenciado algo do tipo. Não havia, apesar das presenças de Suplicy, Adriano Diogo e outros políticos, uma conformação partidária no encontro (não que haja algo errado nisso, não vivemos tempos de clandestinidade partidária – ao menos ainda). Mas expressava-se ali uma rara unanimidade política: a consciência de que se vive um momento de arbítrio; que se criou no País, além de um bloco de retrocessos políticos e comportamentais, um ambiente de censura, de restrição às liberdades individuais, de ataques subterrâneos à democracia travestidos de legalidade jurídica.

Me chamou a atenção, além dos textos de qualidade excepcional que foram lidos por seus próprios autores (apenas Carlos Rennó deixou que um vídeo de seu texto, gravado como música por Paulinho Moska, rolasse no telão), a amplidão etária dos presentes. Zé Celso e Sérgio Mamberti, octogenários de entusiasmo adolescente, juntavam-se à vulcânica verve da poeta e rapper Roberta Estrela D’Alva. O humor debochado de Manoel Herzog e a lírica contraída de Chico César e a presença sólida de Paulo Lins. 

Mas confesso que pirei mesmo foi no poeta Carlos Moreira, de Rondônia. Magnético, com seu chapéu de Crocodilo Dundee, a segurança irônica de sua figura, o sotaque de alguém que vive num mundo que se integra ao nosso mas não o alcançaremos nunca totalmente e a profundidade de sua leitura do linchamento moral, da interdição existencial. Seu poema Sete Lições para Estripar um Homem nasceu clássico. Tomo aqui a liberdade de reproduzi-lo, espero que o Moreira não se importe.

primeira lição para estripar um homem:


estripa-se o seu nome em praça suja

sua língua na lama sua sombra na sombra
em cada passo um golpe de medo
e no segredo que nunca houve
as larvas de milhões de segredos

segunda lição para estripar um homem:


para saber sua altura usar a régua do porco
a régua do rato a métrica do nojo
a balança do fogo: cada quilo valerá
menos que o outro e cada centímetro
um corpo a menos: a menos que o corpo
se jogue da ponte ou do porto 
e poupe o inútil trabalho da vila 
de matar um homem morto


terceira lição para estripar um homem:

não se estripa um homem só:
estripam-se os avós e netos
amigos silêncios e objetos
que cercam o homem a ser estripado
e tudo deverá caber no mesmo saco
um mundo inteiro reduzido
ao suposto fato de que tudo
retornará ao nada de que foi originado

quarta lição para estripar um homem:

estripa-se a palavra do homem
o dito o não dito o interdito
naquilo que sendo fala também cala
o que o torna homem: sua palavra
de homem que agora estripada
vale nada ou menos o que a pele
diria à faca: bem-vinda, senhora
sinta-se em casa

quinta lição para estripar um homem:

após estripado lança-se tudo
no fosso do fundo do calabouço
entre outros tantos estripados
carcaças de sonhos pedaços de loucos
para que até o fim dos tempos
de nenhum corredor possa brotar
o vivo reflexo de seus olhos

sexta lição para estripar um homem:

a vila inteira deverá lavar a praça
as ruas as casas as igrejas as estradas
e a própria vila deverá mergulhar
e manchar o rio com o vermelho
que escorrer de suas roupas pálidas
e queimá-las numa fogueira imensa
e caminharem nus e em silêncio
cada um em direção à cova de sua casa

última lição para estripar um homem:

verificar com exato cuidado
se a baleia não quer vomitá-lo
se não possui uma flauta de pedra
ou uma antiga lira afiada
que faça arrepiar a terra:
neste caso foi inútil estripá-lo:
multiplicado milpartido libertado
ele rompe a corrente do tempo
e atinge maior o outro lado:
inútil o sono da vila enquanto

canta o estripado



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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

5 COMENTÁRIOS

  1. Tenho o privilégio de ser amigo "pendamental e etilice" de Carlos Moreira. Um grande pensador destes tempos sombrios. Corrijo apenas uma palavra do belo texto: Carlos Moreira é paraibano de "nascença", mas rondoniano e não roraimense de "pensamentação". Somente isto. O resto é poesia e resistência democrática!

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