O professor Calasans (centro) ensinando in loco, no sertão de Canudos



“Faz pena um homem como eu morrer assim acocorado”, disse Pedro José de Oliveira, o Pedrão Porteiro, homem de estrita confiança de Antonio Conselheiro, sentado numa gamela em Cocorobó, paralítico das pernas, aos 90 anos.
Pedrão Porteiro disse isso a José Calasans, o grande historiador de Canudos. Calasans me contou a história na biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador, em 1996, quando o entrevistei frente ao único manuscrito de Antonio Conselheiro (Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo para Salvação dos Homens, 554 páginas copiadas do Novo Testamento e 256 páginas com ideias do Conselheiro sobre os Evangelhos). O notável historiador Calasans recolhera todos os fragmentos documentais e orais da história de Canudos em sua longa vida.
Pedrão Porteiro e seus homens derrotaram 1.300 soldados armados do sanguinário coronel Moreira César, em março de 1897, e enfrentaram despachos de juízes e desembargadores que representavam o poder instituído. Nem armas tinham. Mas chegou a velhice e o abandono e a pobreza e ele se preparava para morrer ali, anônimo, imóvel. “Nenhum amor lendário está baixando para encher esse quarto no final”, como cantou Lou Reed em Legendary Hearts.
Mas a frase de Pedrão Porteiro era ainda carregada de orgulho, não de capitulação. “Um homem como eu”. Carregava em si não a nostalgia do que fora, mas o valor presente e inalienável das cicatrizes de sua batalha. Pedrão não podia mentir a si mesmo, de algum modo ele sabia que mudara o mundo.
Pensei na frase de Pedrão Porteiro, que vive na minha cabeça, porque vivemos tempos de extrema covardia e, mais sombrio ainda, do elogio da covardia. Tocaiar, exterminar, difamar, mentir: tudo parece motivo de orgulho. Bravura é tida como idiotia, numa jornada de assombrosa inversão humanística. A deslealdade é tutelada pelo Capital, ganha coluna em jornal, assume postos de comando nas autarquias. Subiu à tona uma vaporosa consciência coletiva de negatividade, que é mobilizada conforme se quer abafar toda voz contraditória.
O que não parece mudar, no entanto, é a disposição dos Pedrões Porteiros. Eles estão aí, às vezes capengando, sentados em uma gamela, mas conscientes de que o mundo se muda a partir do enfrentamento, não da entrega. Que o servilismo, no qual se fundam quase todas as teses do desenvolvimento, não é o destino dos homens. Vi um documentário de Rose Panet sobre outra dessas figuras, Manoel Bernardino, o Lenin da Matta, guerreiro que viveu no início do século 20. Em pleno sertão maranhense, Bernardino organizou e emancipou homens do mato. Encanta, mais do que tudo, ver o poder da autogênese, do nascimento espontâneo de um líder em territórios quase esquecidos.
Ao final de Canudos, Antonio Conselheiro tornou-se aquela descrição de Euclides da Cunha ­- um “anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos…”. Essa imagem prevaleceu durante muito tempo, mas Antonio Conselheiro (em toda sua complexidade) emergiu lentamente do fundo do açude de Cocorobó e hoje já é maior do que todos os tempos.
Garimpeiro das grandezas do povo, o professor Calasans, que era sergipano, morreu em 2001 aos 95 anos, em Salvador. Meu artigo sobre sua partida tinha o título: “Calasans foi o primeiro a ouvir o lamento do sertão”.
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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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