Quando, aos 25 anos, Egberto Gismonti inventou uma canção “encrencada” chamada Janela de Ouro (A Traição das Esmeraldas), ele provavelmente não sabia que estava prefigurando a própria trajetória no mundo. “A janela do mundo é o Carmo, rapaz”, diz, de volta à palavra recorrente e ao Carmo, a pequena cidade fluminense onde nasceu, na divisa com Minas Gerais, filho da combinação improvável de um migrante libanês com uma migrante italiana, ambos acostumados a “dar ordens”.

Em fevereiro, no palco paulistano do Bourbon Street, Egberto comemorou discretamente 70 anos de vida e 50 anos desde que debutou no Festival Internacional da Canção, sob o pesadelo da iminência do Ato Institucional No 5, como autor de uma composição denominada “O Sonho”, que abriu a janela de sua obra para as vozes de Elis Regina, Maysa, Flora Purim, Johnny Alf e incontáveis intérpretes mundo afora. De lá para cá, a palavra perdeu volume no todo de sua obra e, a exemplo de outros instrumentistas e arranjadores brasileiros como Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Eumir Deodato, Naná Vasconcelos etc., a janela do mundo se tornou mais aprazível para Gismonti que a janela lateral do quarto brasileiro de dormir.

Curiosamente, a palavra é mote do projeto em que ele hoje trabalha, o de musicar oito letras entregues nos anos 1960 pelo escritor João Guimarães Rosa à então cantora Dulce Nunes, e mantidas até aqui desconhecidas. Outro sonho em forma de janela que ele acalenta é o de abrir uma fenda na internet para entregar aos “malucos” que amam sua música, gratuitamente, tudo que criou e cujos direitos de comercialização reconquistou das garras da indústria fonográfica internacional. Museu Ativo seria, ou será, o nome da próxima janela. “Eu tenho morado muito mais na floresta amazônica do que na Europa ou nos Estados Unidos”, afirma pelo telefone o criador que, embora dono de uma obra cigana e nômade por excelência, conta ter vivido em apenas duas casas fixas nos últimos 30 anos, ambas no Rio de Janeiro.

Foto Ziga Koritnik/Divulgação
Foto Ziga Koritnik/Divulgação

Pedro Alexandre Sanches: O que havia na cidade de Carmo que explique sua trajetória musical?

Egberto Gismonti: Eu venho do Carmo por uma razão, que é a semente de tudo. Meus pais migraram para o Brasil, ele de Beirute, no Líbano, e ela da Catânia, na Itália. Meu pais resolveram, pelo destino, abandonar seus países, o que é sempre uma história muito emocionante. Eles sempre tiveram a consciência de que abandonaram seus próprios países, e teriam tido a sorte extraordinária de se encontrarem no Carmo, um lugar que nem sabiam que existia. Sou fruto dessas duas realidades, por parte de mãe dos italianos que gostam de ficar rindo, falando alto e tocando violão, e por parte de pai dos libaneses silenciosos, autoritários, machistas, que tocam piano.

PAS: Eles se encontraram já no Carmo?

Em 1972, Água & Vinho, o primeiro álbum pela Odeon
Em 1972, Água & Vinho, o primeiro álbum pela Odeon

EG: Chegaram ao Rio de Janeiro e se encontraram no Carmo, saíram em grupos naquelas carroças, ou ônibus, sei lá eu como era. A migração era meio assim no estado do Rio, não foi planejada como foi a dos europeus que foram para o Sul do Brasil porque ouviram falar que plantando tudo dá. A imigração no Sul teve pessoas de países inimigos que ficaram amigas a ponto de fazer a agricultura do Brasil. O lado machista da família dizia: “O Camilo deu muita sorte, porque encontrou uma moça que não é árabe, mas é uma boa moça”. O lado materno dizia: “Não vai dar certo, porque os árabes são machistas”. Mas a gente aprende que toda forma de amor vale a pena. Teoricamente não daria certo um pai machista que dá ordem com uma mamma italiana que dá ordem também. Mas eles criaram três filhos sob princípios malucos que nunca vi na vida e que tentei repetir com meus filhos. Meu pai dizia que os filhos desde muito cedo deveriam aprender música, idiomas e contabilidade. O idioma seria o francês ou o italiano, e acabou sendo o francês por causa do lado árabe do meu pai. “Minha filho tem que ter liberdade para escolher o que quer”, meu pai dizia. Graças à contabilidade, eu administro três editoras, duas gravadoras, sou conhecedor das leis. Eu queria administrar, ou ter o direito de comercializar meus discos na Odeon. Ninguém tinha conseguido sentar com o inglês que administrava a Odeon para negociar isso, e eu tive a alegria, há 20 anos, de me encontrar com o superintendente em Londres e negociar com ele. Ficou relutante no início, pediu que eu desse uma razão para que eu negociasse meus direitos, que pertenciam a ele, para vender minha música no território dele.

PAS: Qual foi a resposta que convenceu ele?

Em 1977, com Dança das Cabeças, a estreia no selo ECM
Em 1977, com Dança das Cabeças, a janela aberta e a estreia no selo ECM

EG:  Eu tinha sido treinado por dois advogados, que passaram um mês me orientando. As respostas melhores são as mais simples, apesar de difíceis de descobrir. Ele certamente já conhecia a resposta, absolutamente já conhecia. Ele conhecia meus discos para o selo ECM e sabia que vendiam sob aquele aspecto do “de grão em grão a galinha enche o papo”. Vendiam cerca de 100 mil exemplares cada um, mas eram 100 mil em 42 países. Ele sabia disso. Eu respondi com uma pergunta, prevista pelos advogados que me orientaram. Quando ele iniciou a conversa com essa pergunta eu pensei: “Ih, ele tá lascado”. Respondi tremendo feito vara verde, mas respondi: “Meu caro senhor, tenho que lhe fazer uma pergunta. O senhor prefere receber 100% de nada ou 2% de uma cotinha mínima? O senhor tem vários discos meus com média de vendagem de 80, 100 por ano. Do outro lado, na ECM, eu faço vender 80 mil exemplares por ano de cada disco. Música é igual, as da Odeon ou as da ECM. Vocês não gostam dessa música e não sabem vendê-la. Eu gosto e sei”. Fui embora, três meses depois chegou a carta dele com os termos do acordo. Eu não sou proprietário dos meus discos na Odeon, mas sou proprietário dos direitos de comercialização deles. Pratico com minha obra algo que chamo de gratuidade. Reconheço que cheguei a certos números – 70 discos, 32 trilhas de filmes, 30 de peças de teatro, não sei quantos bales – porque tem gente me patrocinando. Quem vai para o teatro ver uma apresentação de um artista e o recebe com um sorriso está dando a ele o que tem de mais caro, que é o seu tempo de vida. Sou partidário de que só um gesto é revelador de fato. Para tal, o meu processo de corrida pela gratuidade chega a que ponto? Ano passado fui ao Japão, como vou anualmente, e pude fazer uma coisa graças às leis japonesas, que tornaram o projeto possível. Tenho 18 discos pela Odeon, e como tenho o direito de comercialização deles, resolvi imprimir 4.00o caixas com 18 discos cada, para serem vendidas pelo preço de dois discos de lançamento, e não de 18. O Japão possibilita isso, o Brasil não possibilita. Passei tempos correndo atrás para mandar imprimir caixas dos meus discos aqui e dar de graça ou vender baratésimo, mas a lei brasileira do direito proíbe isso, porque tenho de pagar impostos sobre a criação dos discos, mesmo que eles não tenham sido criados no Brasil. É uma história muito longa, vai cair como bitributação, complica muito. Mas onde quero chegar é que no Japão 4.000 caixas foram vendidas em três horas. Não é porque eu seja bonzinho, não, é porque aquelas pessoas estão me sustentando, estimulando que eu continue sendo músico, há 15 anos.

PAS: Então não é exatamente gratuidade, mas vender a preços muito baratos?

EG: É gratuidade porque tem coisas que são gratuitas. Quando fui a Buenos Aires, há sete ou oito anos, fiz um concerto no Teatro Colón, para 4.100 pessoas. Três anos depois, consegui o direito de comercializar a gravação daquele show, fiz um outro concerto, as pessoas não sabiam, compraram ingresso, assistiram ao concerto e na hora de sair pedi que fizessem fila e tinham lá 3.500 discos do concerto para dar de graça para as pessoas. Quando pode ser de graça é porque a lei permite. Quando a lei não permite a gratuidade, o mínimo possível…, 18 discos pelo preço de dois eu estou chamando de gratuidade, porque, tenha a paciência…

PAS: Há discos seus que são raros no Brasil a ponto de só serem acessíveis se roubados via internet. Essa modalidade entra no capítulo da gratuidade? Como encara isso?

A árvore imensa na capa de Egberto Gismonti, de 1973
A árvore imensa na capa de Egberto Gismonti, de 1973

EG: Eu sou absolutamente liberal com tudo. Essa tecnologia, se por um lado cria uma série de novas questões financeiras, e cria, por outro lado cria novas questões altamente positivas. Por exemplo, é muito raro pensar que um artista hoje crie um disco que conte uma mesma história em dez, 11, 12 faixas. Os discos de hoje, diferentes dos da década de 1970 – não estou falando dos meus, digo todos -, contavam uma história que tinha princípio, meio e fim. Como hoje lê-se muito menos e presta-se muito menos atenção, ninguém tem uma sala com sistema de som muito bom em que se possa sentar e ficar em silêncio para ouvir música. Todo mundo ouve da pior maneira que tem, com fone enfiado dentro do ouvido andando no trânsito, no ônibus, no avião, no diabo que seja. Isso determina que raríssimas pessoas, exceto os chamados discófilos, que continuam existindo, parem para escutar com atenção. Isso faz com que, no meu caso específico, muito mais que um disco com 70 minutos de ideias musicais, eu prepare fonogramas, uns atrás dos outros. Como faço muito cinema, balé, teatro etc., tenho uma produção constante que me possibilita utilizar composições, gravações, coisas ao vivo etc. Porque continuo tocando e continuo negociando direito de comercialização dos fonogramas. Então o projeto maior que eu fiz, que não consegui colocar ainda à disposição, é um negócio que se chama Museu Ativo. Esse processo iniciou-se tem quase três anos. É um negócio que envolve quase mil músicas, que é o que eu compus e registrei. Não esquecer também que eu sou editor das músicas, seja na América do Sul, do Norte ou Europa. Eu tenho editoras, não sou editado por ninguém. Então eu posso usar e flexibilizar o que eu quero pelo preço que eu quero, porque sou detentor do lucro ou do prejuízo. A ideia era – e continua sendo, eu só não consegui meios ainda para minimizar um pouco o prejuízo ou o gasto que eu teria – disponibilizar àquele que procurasse o meu nome na internet uma página sem nada escrito exceto uma janela, onde se pedisse para que o usuário escrevesse o nome de uma das músicas do Gismonti de que ele gosta. No que ele escreve uma música, esse negócio processa e aparece na frente dele uma árvore imensa, dizendo “esta música de nome X foi gravada por tantas pessoas”, abre uma árvore mostrando os links para essas pessoas todas, “foi usada nos discos A, B, C, D”, abre outra árvore, nos filmes, teatro, balé etc. E tudo que me pertença está disponível para baixar gratuitamente.

PAS: Que lindo isso.

EG: Não tem nada de streaming para ouvir, não. É para baixar gratuito. A ideia era essa, e no final das coisas tinha partituras, porque eu também, sendo editor, tenho a possibilidade de ter, como já fiz alguns livros de música, a editora que trabalha com papel, que imprime livro. E os livros são partituras, sejam songbook ou peças para orquestra. A minha intenção era disponibilizar isso tudo gratuitamente. E onde entrou o primeiro problema, que eu desconhecia?, descoberto por aqueles que estão forjando esse… Não é um site, seria classificado de site se tivesse venda de alguma coisa. Como não quero vender nada, tenho que correr por fora e pagar mais caro do que as pessoas que estão vendendo. Porque se eu não quiser vender, aquele canal não dará lucro a ninguém dentro da internet. Por isso é mais caro, ou seja, o barato sai caro pra danar nesse caso. A conclusão a que chegaram os técnicos, coisa que não sou, é que, para que eu considerasse que até 50 pessoas pudessem estar ligadas num certo momento naquele canal chamado Museu Ativo, eu precisaria do que eles chamam de três máquinas de aceleração, que são as máquinas de processamento da internet, para não congelar, o cara não parar de ouvir no meio etc. E essas três máquinas pelos próximos dez anos custariam 3.120 dólares por mês, o que significa 40 mil dólares no final do ano, 400 mil dólares em dez anos. Até aí eu fui e não pude continuar porque é muito dinheiro. Mas estou procurando maneiras vinculadas a ONGs internacionais e tal, e vou conseguir, espero. Minha ideia é disponibilizar absolutamente tudo, para que quem goste da coisa que eu faço tenha acesso a tudo, e acabou, seja show ao vivo, gravação que não tem em disco… Tem um processo que vem acontecendo há muitos anos. Independentemente das casas em que morei nos últimos 30 anos, que na realidade foram duas, em cada casa dessas tem uma pequena sala que funciona fechada com desumidificador 24 horas por dia. Tenho gravações de 30, 35 anos atrás, que soam perfeitamente bem e que não quero lançar em discos, quero dar de presente. Disponibilizar para as pessoas simplesmente baixarem o que quiserem, e se não quiserem não baixa, escuta, assiste ao show, enfim. Eu sou muito adepto da coisa do computador, gosto muito. Não tenho nada de rede social nem de site, porque detesto isso. Meu problema não é com computador, eu sei escrever aplicativos. Estudei para poder escrever os aplicativos de que precisava e me diverti com isso, mas não gosto de rede social. O ensinamento que vem lá do Carmo…

PAS: Sim! Demos a volta ao mundo começando ali…

Carmo, LP de 1977 pela EMI-Odeon
Carmo, LP de 1977 pela EMI-Odeon

 

EG: A janela do Carmo é o mundo, rapaz. Essa conversa toda é para dizer que o Carmo é a melhor janela para o mundo, você não está entendendo.

PAS: Os seus pais ficaram lá e você saiu, ou eles saíram também?

EG: Não, eu saí junto com eles, quando eu tinha 6 ou 7 anos. Meu pai era coletor federal, além de árabe, que gosta de vender coisas e comprar coisas. Então ele vendia pianos, afinava pianos junto com outros parentes, irmãos que tinham armarinhos que vendiam fazenda, calça, botão, agulha, essas coisas. E por conta disso nós saímos do Carmo, que é quase fronteira com Minas Gerais, altura de Poço Novo do Cunha, Além Paraíba.

PAS: Você é nitidamente muito mineiro, além de fluminense…

EG: É, eu brinco com isso, porque a gente tem o sotaque de Minas lá no Carmo, e a gente teima em dizer que “nóis num somo minêro, não, uai”. Mas é tudo evidente, a cultura mineira está toda lá, aquelas ruas de pedras coloniais, está tudo lá.

PAS: Está muito na sua música também.

EG: É, de certa forma sim.

PAS: Penso especificamente no disco com Wanderléa, que é uma mineira, e ali muita coisa se tornou evidente.

Vamos Que Já Vou (1977), disco de encontro de Wanderléa com Gismonti
Vamos Que Já Vou (1977), disco de encontro de Wanderléa com Gismonti

EG: Ah, a Léa é uma delícia. Eu me sinto, claro que sobre o direito que ela me deu, eu tenho uma relação com as duas filhas lindas que ela tem. A gente tem uma intimidade como se eu fosse uma espécie de pai delas também, coisa que não sou, mas aceitei a comenda, sabe como é?, de um pai ficcional. De vez em quando elas me ligam, vêm cá para casa, passam um dia, dois. Gosto muito das duas, e Léa então, nem se fala, aquilo ali é uma beleza de pessoa. Foi feito um belo livro agora sobre a vida dela.

PAS: Fala de você.

EG: É, fala de mim e pediu que eu escrevesse a orelha. Acabei escrevendo, porque ela insistiu. É uma grande amiga.

PAS: É uma ponte muito legal, porque ela é tida como muito popular e você, como muito erudito, e não existem essas fronteiras, né?

EG: Na realidade, quando nós vivemos juntos e fizemos disco juntos existia um pouco essa divisória. Hoje em dia, não. Hoje, a Léa, que lá pela década de 1970 e 1980, quando a gente ficou casado, juntos,  namorava muito e tal, muita gente do chamado meu lado da história não era muito simpatizante, “puxa vida, jovem guarda”, não sei o quê. Aí passam-se esses anos todos, e a Léa, só em São Paulo o espetáculo sobre a vida dela ficou dois ou três meses em cartaz. Volta e meia vem ao Rio e faz casas lotadas, e pelo Brasil inteiro. É uma figura que marcou uma época, e sobretudo é uma mulher muito reta, uma coisa de uma dignidade absoluta, correção total. E no fundo isso é que vale, né? E teve o peito de fazer aquele disco, que é fundamentado em paixão, só. A gente estava inteiramente apaixonados, e tudo parecia normal.

A trupe de Wanderléa em 1977
A trupe de Wanderléa em 1977

PAS: E é o trabalho mais mineiro dela, não é curioso?

EG: Você acha? Nunca tinha pensado sob essa ótica de Tiradentes.

PAS: Mudou aquele momento para os dois, tanto para você quanto para ela. Você a rigor não é mineiro, mas ajudou ela a fazer aquilo.

EG: É, aquilo ali foi feito com muita alegria. O disco todo tem essa característica, da primeira à última faixa. Tem sempre uma alegria de todo mundo que está tocando, cantando, é tudo uma alegria danada. É muito bonito. Infelizmente o disco não teve, digamos, um resultado que se desejava. Mas não quer dizer nada, porque historicamente ele está aí, marcado, visto.

PAS: E ele saiu pela Odeon, assim como os seus. Se fosse pela ECM talvez a história fosse outra?

Academia de Danças, de 1974
Academia de Danças, de 1974

EG: Aí é uma coisa completamente diferente, isso aconteceu porque naquela época a liberdade que tínhamos – e estou falando em nome de artista – era imensa. Eu, quando paro e olho os discos que gravei na Odeon, são discos cada um mais encrencado que o outro. E aí discos como, por exemplo, Academia de Danças, que foi um disco que levou todo tipo de crítica da superintendência do Brasil, que na época era inglesa, que disse para os vendedores: “Esse disco não tem jeito”. Antigamente tinha reunião de vendedores, e eu estava presente numa dessas. Não precisava me disfarçar porque o superintendente não me conhecia. Eu parecia mais um vendedor, e ouvi literalmente ele dizendo “esse disco não tem sequer uma música para se fazer trabalho”.

PAS: Você estava nessa reunião como espião de si mesmo?

O eletrônico Trem Caipira, de 1985
O eletrônico Trem Caipira, de 1985

EG: Não, eu fui convidado pelo chefe da divulgação, o sujeito que inclusive anos depois bateu o pé na Odeon que eu tinha que fazer uma turnê de divulgação para lançar o disco Trem Caipira, com músicas do Villa-Lobos. Rodamos sete ou oito estados do Sul até a Amazônia, pela costa toda, e quando chegamos no último estado, depois de um mês, ele disse: “Quer uma notícia?”. Quero. “Pronto, o disco já chegou a 100 mil cópias.” E não tinha sido lançado o disco. Mas ele me chamou para essa reunião porque ele queria que eu visse como era o negócio dos vendedores. É curioso, viu?, porque a minha música sempre foi considerada muito complicada, mas é a música que inaugurou de certa forma o Circo Voador com casas lotadas, e inaugurou o bondinho do Pão de Açúcar. Hoje em dia fica até brincadeira se eu falar que tenho um disco – claro que ele já tem quase 40 anos – que está colado a 1 milhão de cópias, que é o Dança das Cabeças. É engraçado, né? Porque continua sendo aquela mesma música confusa de sempre. Só que o mundo mudou e tem 1 milhão de malucos aí que gostam de ouvir aquilo, pronto. O meu respeito pelas pessoas, daí o negócio da gratuidade – e aqui não tem demagogia nenhuma, porque se não precisei disso até hoje não é agora que vou brincar de demagogo. Eu nunca na vida, se tivesse que imaginar a melhor coisa do mundo, poderia imaginar que fosse tocar todo ano por tantos países pelo mundo afora, ser reconhecido em tantos lugares, e sempre com uma generosidade muito grande. Quem gosta dessa música não gosta porque é fanático, arranca cabelo, arranca camisa, nada disso, não. É tudo muito tranquilo, mas é uma fidelidade que é um negócio impressionante.

Visto por uma janela enclausurada, na capa do inaugural Egberto Gismonti (1969)
Visto por uma janela enclausurada, na capa do inaugural Egberto Gismonti (1969), lançado pelo mítico selo Elenco, com vocais e “O Sonho” como carro-chefe

PAS: Você surge para o público nos festivais, com O Sonho”, e no início você cantava.

EG: Cantava também porque não tinha quem cantasse. Nunca gostei, não. Eu cantava no início porque não tinha quem cantasse.

PAS: A pergunta que eu ia fazer é por que a voz com o tempo foi desaparecendo e você foi deixando de ter a palavra como uma referência na frente.

EG: Na realidade, fazer canções é uma coisa que volta e meia eu faço, porque faço muito cinema, teatro, essas coisas. Faço porque gosto, mas eu particularmente aprendi na minha vida que devo fazer aquilo que faço com muita alegria e facilidade. E cantar não é uma dessas coisas. Você não imagina o sofrimento que era para mim o momento em que chegava no estúdio, estava tudo pronto, orquestra, tudo gravado, uma beleza. Quando eu ia cantar, era um sofrimento…

Sonho 70 (1970), o segundo LP, com vocais de Dulce Nunes
Sonho 70 (1970), o segundo LP, com vocais de Dulce Nunes

 

PAS: Por que, Egberto?

EG: Medo. Medo de cantar. Medo, é. Mas não preciso tratar disso, não, estou me sentindo muito bem.

PAS: Mas é curioso, as outras coisas não davam medo? Só cantar?

EG: Não, nada. Eu não tenho medo de nada, nem cantar, hoje em dia, não. A gente vai adquirindo a chamada casca de sem-vergonha. Não tenho vergonha de nada. Mas hoje em dia não me comprometo com nada com negócio de cantar, nada. Tem um monte de amigas minhas, do Brasil e fora, que já gravaram discos inteiros com músicas minhas e me convidaram, “vem participar”, “vem cantar”. Eu digo: “Não, não vou não. Posso ir aí tocar um pandeiro, qualquer coisa, mas cantar eu não vou, não”.

PAS: Mas lá no começo você usou muito outras vozes, de Elis Regina e Dulce Nunes a Wanderléa muitas pessoas interpretaram canções suas.

EG: Isso foi acontecendo, e quando foi acontecendo, seja Elis, Regininha, Alaíde Costa, Agostinho dos Santos, Johnny Alf, tem gente como o diabo que gravou coisa minha. Quando começaram a gravar, aí eu relaxei, porque dizia: então posso continuar fazendo minhas canções, sobretudo com Geraldinho Carneiro e Paulo César Pinheiro, que sempre vai aparecer alguém para cantar. O que eu não queria era fazer coisas que não fossem ser tocadas ou gravadas nunca. Na medida em que apareceram pessoas cantando – me lembro de Maysa, que gravou quatro de uma vez num disco, e também Agostinho dos Santos, Johnny Alf também -, eu disse: não preciso mais me meter a isso, porque não sei fazer. Deixa eu tratar do que eu sei fazer e gosto.

PAS: Há uma série de artistas – você é um deles, mas Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Eumir Deodato –  que são mais musicais fora do domínio da palavra, e isso coincidiu com aquele momento de repressão que o Brasil estava vivendo. E ao mesmo tempo, mesmo sem usar a palavra, vocês meio se exilaram, foram ser conhecidos musicalmente mais fora do Brasil que no país de vocês. Não sei se você entende o que estou querendo dizer…

EG: Entender eu entendo, eu só não concordo.

PAS: Me explica?

EG: Eu entendo perfeitamente, mas não concordo, não. Acho que cada um de nós, não só os citados, mas quantos outros você queira, passou por momentos de dificuldade em relação ao processo político que tivemos, de sistema militar e tal. Cada um de nós passou. Eu particularmente participei de muitos grupos que corriam de lá para cá, daqui para lá, procurando consertar o mundo. No início das década de 1970, a repressão existia, já estava determinada, mas não se vivia 24 horas por dia o sentido e o sentimento dela. Repressão militar. Até porque foi o AI-5 que determinou que a guerra iniciou para todos, e acabou, tchau.

PAS: Exatamente quando você estava compondo e apresentando a canção “O Sonho”.

EG: Exatamente. E aí eu assisti, nesse finalzinho de tempos antes de eu ir embora para a Europa, mas eu fui contratado para ser arranjador de uma atriz francesa, Marie Lanforêt. Não tinha nada a ver com fugir do Brasil, nada disso. Ela era atriz daqueles filmes com aqueles atores como Alain Delon, Jean Paul Belmondo etc. Eu cheguei a assistir, na Ilha do Fundão, numa das reuniões que os jovens marcavam e eu lá estava, de vez em quando chegava a polícia com cavalo, sem cavalo, com o diabo que seja, baixando o porrete e atirando. E eu tive momentos do grupo em que pessoas foram baleadas, e o diabo a quatro. Eu fui levado ao Dops várias vezes, por conta de ter participado de coisas. Por exemplo, tem um filme, que hoje é historicamente considerado um dos marcos, que é uma decisão do diretor Roberto Farias, quando ele fez Pra Frente, Brasil (lançado em 1982). Ele reuniu um grupo de pessoas, me incluiu porque eu já tinha feito algum cinema, e disse claramente para todo mundo: “Olha, tem um projeto que vou começar a filmar e quero saber quem está disponível a ficar, e certamente para levar pancada, ser levado para lá e para cá, sumir de vez em quando, porque é um filme que não tem espaço nenhum para ser lançado, mas nós vamos lançar”. Eu fiz a música desse filme e por causa dela eu fui levado várias vezes. Eu morava ali na rua Artur Araripe, perto da praça Sibérius, da Marquês de São Vicente, numa época que não tinha aqui no Rio aquela avenida que passa dentro de um prédio e vai para a Barra da Tijuca. O Tom Jobim morava por ali, e duas vezes nós fomos apanhados em casa para irmos para o Dops no mesmo camburão. Eu nunca me esqueço, quando entrei no carro tinha o Tom sentado.

PAS: Que ano foi isso?

Com Rejane Medeiros na capa de Em Família (1981)
Com Rejane Medeiros na capa de Em Família (1981)

EG: Ué, é 1971, no máximo. E Tom vira-se para mim e diz assim: “Ô, Gismonti, mas que prazer em revê-lo”. Eu digo: “Você não sabe que prazer tenho eu de te ver, porque eu, com você, estou com o papa. Sumir eu não vou, posso ficar lá num lugar bem frio, mas com você não sumo”. Mas enfim, o que quero dizer é que acabei passando por essa dificuldade toda que muita gente passou. Participei de movimentos como Musicanossa, fui a São Paulo, no Tuca, participei de muitos shows onde o coro comia. Quem tem hoje 60, 70 anos em diante sabe que que é sair correndo porque a polícia está chegando, sabe como é?, sem razão específica nenhuma. Você não deve ter vivido uma coisa que a geração a que eu pertenço viveu, que era reunir-se todas as noites em botequins. Aqui no Rio a gente tinha feito quase que uma eleição surda e elegemos dois bares no Baixo Leblon, um deles chamado Diagonal, onde a gente encontrava diariamente, todo mundo com 20 anos, para consertar o mundo. Isso é uma coisa normal, todo mundo é imortal quando tem 20 anos. E a gente consertava o mundo todo dia, ia para casa meio bêbado, acordava de manhã, tomava uma cerveja, tomava um banho e voltava para o bar. Nós consertávamos o mundo sem nenhuma objetividade, mas isso era um exercício de direito à liberdade. Não por coincidência, aparecem Leila Diniz e outras mulheres, inclusive a mãe dos meus filhos, Rejane Medeiros, que também participa de movimentos de liberação, da forma que cada um podia fazer. Lembro Leila Diniz com uma barriga de não sei quantos meses, da Janaína, filha dela e do Ruy Guerra, indo para a praia de biquíni com a barriga exposta, isso há 50 anos era um absurdo. Era caso de polícia. Nesse momento eu conheço Ruy Guerra e vou conhecer todo mundo no meio de cinema, de teatro, a Fernanda e o Fernando Montenegro (Fernando Torres), Mauro Mendonça, Naum Alves de Souza, enfim. Vou conhecendo a todos, os coreógrafos, e eu que sempre tive disponibilidade a experimentar música, seja com uma pessoa ou com uma orquestra grande. Me adaptei muito a um sistema dos anos 1970, em que o Brasil dava a possibilidade de se experimentar coisas. Mesmo a indústria, a Odeon no Brasil foi uma das portas mais importantes para se experimentar coisas. Milton Nascimento, Gonzaguinha, Taiguara

PAS: Paulinho da Viola, Marcos Valle

EG: …Pode falar 20 nomes, a Odeon sempre experimentou. E às vezes não dava certo, e eles insistiam, insistiam. Era muito bacana de ver. Infelizmente, isso é uma questão financeira, hoje em dia já não existe mais essa possibilidade da experimentação, o que eu acho muito prejudicial, porque só evolui aquele que tem boas críticas. Você ter como crítico você mesmo, compra um espelho, olha para o espelho e pergunta se existe alguém mais bonito que você, isso é o pior exercício de liberdade que existe, né? Eu sinto que isso está muito impregnado hoje de uma maneira geral, não por culpa de ninguém, mas pela situação de dificuldade.

PAS: Uma pergunta inevitável: tendo vivido 1968, que paralelo você faria com o tempo atual, que está sinistro de novo?

EG: Sim, está um horror. Só que a dificuldade de hoje não é pior nem melhor. Ela é completamente maléfica, a de hoje, porque não se luta por uma melhora. Se luta por uma destruição dos piores. A gente tinha um sonho de liberdade, de compor, de escrever. Hoje em dia eu conheço muita gente que tem 20, 30 anos de idade, até porque trabalho muito com muita gente, e as pessoas ficam loucas correndo atrás de projetos que podem financiar uma apresentação, uma gravação, e ficam muito dependentes de um pai, entre aspas, inexistente, que é a indústria fonográfica. Acabou isso, acabou. Se por um lado a tecnologia facilita, por outro lado o exercício de quem faz hoje… Tem muitas coisas que eu penso sobre o século XXI, uma das coisas é que o músico de maneira geral tem que tocar é a vida, não é um instrumento. Instrumento é obrigação, já que ele é músico. Se você espremer a imensa maioria dos músicos – e aí não é uma questão brasileira, é quase que geral -, o conhecimento, o interesse, o estudo do exercício profissional é muito raro. Já não existem mais formações nesse quesito chamado música no Brasil. Formação. Uma coisa é você estudar para ser um concertista, tocar repertórios europeus etc. Outra coisa é você estudar para escrever orquestras, reger orquestras ou tocar numa orquestra. E outra coisa é você estudar para evoluir o seu pensamento musical, porque você não quer fazer curso acadêmico e prefere o autodidatismo. Isso não existe no Brasil mais. O autodidatismo antigamente no Brasil era assistir shows de Baden Powell, Tom Jobim. Eu ia em Copacabana a várias boates ver os pianistas tocarem, os organistas tocarem. Hoje não tem mais isso. E não é porque não tem músico, não, que se você sair de noite no Rio de Janeiro você vai desaparecer, vai morrer, vai levar um tiro. A situação hoje é muito maléfica. Não acho que seja pior nem melhor, não, mas é diferente da que eu vivi. Eu não acho que a que vivi seja melhor, de jeito nenhum, mas eu consigo me lembrar de que os anos se passaram e eu continuo com uma chama acesa, de querer descobrir coisas. E isso me foi dado, me foi imposto por uma sociedade quando eu tinha 20, 30 anos.

PAS: Politicamente você acha que estamos de novo perto de uma ditadura, ou dentro de uma?

EG: Eu não chamaria de ditadura porque ditadura a gente conhece. Acho que neste momento nós não temos sequer algo para admirar em contrapartida ao que a gente odeia. Nós só queremos que a maioria de tudo que a gente está vendo em nome de políticos, de atitudes, de leis que não são votadas, de compras de voto, de enrolação, dessa mentira generalizada… O único desejo que eu tenho hoje é que o Brasil melhore para que meus filhos, que têm 30 e poucos anos e daqui a pouco vão me dar netos, tenham a alegria e a esperança de que este país vale a pena. Não paro de rodar o Brasil, porque estou procurando razões para continuar. Você pode imaginar que tem uma hora, para quem tem facilidade de rodar o mundo todo ano muitas vezes, que eu poderia morar fora, como já fiz. Mas estou brigando para não sair do Brasil., Há uma semana cheguei de Caruaru, João Pessoa, Recife. Fui passar uma semana em companhia do João do Pife, com a Banda de Pífanos de Caruaru. Fui para a feira de Caruaru vender pife com ele, ver a realidade desse negócio. E só estou encontrando coisas realmente estimulantes no Brasil relacionadas a pessoas que são sementes ou raízes de fato. A coisa que está mais recente, notícias de política, eu ouço e fico com tanta vergonha de tanta safadeza, em saber que estou dentro desse bolo, porque sou brasileiro. Cada vez que saio do Brasil e baixo na Europa, em países que sempre foram muito críticos… E aqui não estou concordando que eles sejam, não, mas eles têm como princípio serem críticos. A França é um país detestável sob o ponto de vista do julgamento do outro, eles nunca admitem o próprio erro, todo mundo está errado, e o Brasil voltou a ser a bola da vez da França, o que eles chamam de imprensa marrom. Você abre o jornal Le Monde, ou um jornal não interessa qual, eles o tempo todo falando e generalizando. Não tem ninguém que diga “um grupo de políticos do Rio de Janeiro fulano e beltrano” ou “o grupo do governador tal roubou isso”, dizem “os brasileiros”. Eu leio aquele troço, me dá um nojo. E ao mesmo tempo não posso descreditar o que eles estão falando, porque eu sou brasileiro. Então a atitude política que eu hoje consigo ter é partir para o absolutamente contrário a isso, como por exemplo a coisa que te contei rapidamente chamada gratuidade.

PAS: Política pura.

EG: É, não é para ter público maior, para ganhar dinheiro, para fazer gracinha para ninguém. Quando eu chego em Paris, Japão, muitos da Europa e da América do Sul e falo em gratuidade, você não imagina o quanto de emoção fica estabelecido, de ver que as pessoas não estão me qualificando, estão despertando em si aquela janela que às vezes se fecha por causa do cotidiano da gente, que ninguém quer admitir nada além de afeto puro, todo mundo tem que ter um troco em alguma coisa. Isso é um negócio que me deixa muito revoltado, e eu tenho lutado contra isso. Acredito que eu possa conseguir em mais seis meses ou um ano, eu continuo tentando descobrir fórmulas para poder operabilizar esse negócio. A política de que estou correndo atrás é essa, a política de correr menos riscos. Não vou a todos os lugares que gostaria. Tem lugares que ficaram proibitivos de fato, você pega as Linhas Amarela e Vermelha no Rio de Janeiro, tem que escolher um horário xis que dura, sei lá eu, duas ou três horas, nas quais o risco é de 5 ou 10% só de levar uma bala. Não é possível. Não é possível imaginar que a vida tem que ser assim. Eu não sei o que fazer, porque eu não sou político. Eu não sei. Agora, a única coisa que posso fazer é radicalmente ser contra e não admitir que na minha casa entre, nem que seja por um sopro de vento sudoeste, nenhuma dessas pessoas que já estão mais que conhecidas, a gente sabe nome e sobrenome, endereço, CPF, tudo, dessas pessoas que são safadas e destruíram um estado inteira e por consequência a saúde, a seguridade social, o transporte, a educação, a alimentação. Você fica olhando os chamados velhos brasileiros, as pessoas de idade, carregando coisas, morrendo em fila, esse troço me dá uma sensação de desesperança que não tem fim. Não tem fim. O que eu posso, do meu lado, fazer, é isso que eu tenho tentado fazer: faz shows e não cobra, dá discos de presente, viabiliza, facilita. Tem um monte de coisas acontecendo no Brasil que eu cedi fonogramas para servir de fundo musical para peça de teatro, exposição, balé. Não estou querendo colocar o meu negócio para o meu nome estar presente, não. Aliás, ninguém sabe disso que estou te falando, e eu prefiro nem citar nomes, porque fica parecendo que estou fazendo jogo de demagogia. Não gosto disso, daquelas coisas de pessoas que sobem em palco e dizem “boa noite a todos, vocês são a razão da minha vida”. Não gosto disso. Mas não estou criticando quem fala, não, eu não falaria um negócio desses de jeito nenhum. Não considero que sejam os princípios que me foram passados como princípios de respeito ao ser humano. Não é assim.

PAS: Agora há pouco você falou que em 30 anos morou só em duas casas. Ouvindo sua música, eu juraria que você morou em 500 mil lugares. Sua música é nômade por excelência.

EG: O mundo é pequeno hoje, né? Você tem razão com a sua observação. Na realidade, no Rio de Janeiro, eu morava na rua Artur Araripe, depois viajei para fora, quando voltei morei um pouquinho numa rua chamada Maria Angélica e em seguida na rua Itaipava, que é tudo Jardim Botânico. E daqui não saí. Só que eu saio daqui. Em 2017 fiz sete viagens para fora do Brasil, sem incluir América do Sul. Porque hoje em dia você vai a Porto Alegre e já está no Uruguai, vai no Uruguai já está na Argentina, vai na Argentina já está no Chile, pronto. É tudo muito próximo. Eu viajo muito.

PAS: Muitos instrumentistas foram morar fora, como estávamos dizendo, mas esse não foi o seu caso. Você ficou no Brasil.

EG: Mas eu não tenho essa capacidade, quem eu conheci que tem são pessoas como Naná Vasconcelos, que já se foi, João Gilberto, o próprio Airto Moreira. Essas pessoas têm a capacidade de não se deixarem influenciar pela cultura estrangeira. Eu não tenho essa capacidade. Já morei fora um pouco, na Europa e nos Estados Unidos.

PAS: Isso foi mais no começo?

Expressão infartada em Corações Futuristas (1976)
Expressão infartada em Corações Futuristas (1976)

EG: Sim, mas foi o suficiente. Se você pegar o disco que fiz voltando dos Estados Unidos, quando passei lá oito ou nove meses, é um disco chamado Corações Futuristas, e dentro do LP tem a foto de um coração infartado, aberto. Repara. Aquilo ali não é à toa, em Corações Futuristas. Depois de 30 ou 40 anos, formei um grupo no Rio de Janeiro, dos meninos da Proarte, que se dispuseram a fazer um grupo comigo de 17 músicos tocando flauta, saxofone, essas coisas. Eu chamo de Corações Futuristas com uma outra expectativa hoje, não é mais a do coração infartado. Quando eu voltei da França, a primeira coisa que fiz no Brasil foi um disco que tem uma árvore na capa.

PAS: O célebre disco da árvore.

EG: É um disco que ficou sem nome, mas tem um poema do Geraldinho Carneiro sobre queimadas. Aí eu me pergunto: como é que em 1972, 1973 eu tinha consciência disso? Eu morava na Europa, e a crítica contra o Brasil era feroz. E eu percebi, quando cheguei aqui, que tinha muito de verdade. E ao mesmo tempo fiz um disco que tem uma influência europeia muito grande, tem até homenagem a Ravel.  Ou seja, depois disso achei bacana que tivesse feito, porque quando a gente faz uma coisa em homenagem a quem a gente conhece muito a gente está aprendendo. Depois fiz homenagens a João Gilberto, a coisas brasileiras, e fui me voltando, fui parar dentro da floresta amazônica. Eu tenho morado muito mais na floresta amazônica do que na Europa ou nos Estados Unidos.

PAS: Você chegou a morar na floresta?

EG: Eu fui três vezes. A primeira vez fiquei 42 dias morando na aldeia iaualapiti.

Em 1989, Egberto assina a trilha sonora de Kuarup, de Ruy Guerra
Em 1989, Egberto assina a trilha sonora de Kuarup, de Ruy Guerra

PAS: Foi quando fez a trilha para Kuarup, do Ruy Guerra?

EG: Não, bem antes, quando fui fazer um projeto de um filme que seria feito pela Tânia Quaresma. Ela elegeu cinco ou seis músicos brasileiros de que ela gostava muito e fez uma pergunta comum a todos: “Qual é a região do Brasil que melhor pode representar você?”. E eu disse para ela que era o Xingu, porque nessa altura eu lia muito Darcy Ribeiro, irmãos Villas-Bôas, então sabia da existência de um mentor espiritual chamado Sapaim, na aldeia dos iaualapiti, no Alto Xingu. Eu disse: é para lá que eu quero ir. Mas isso eu tinha, sei lá eu, 20 e tal anos. Na época a gente desejava tudo, mas não acreditava que ia dar certo. Passado um mês no máximo a Tânia Quaresma ligou e disse: “Está na hora da vacina”. E todos nós envolvidos fomo para a Praça 15 aqui no Rio fazer a vacina. E o balé Stagium, de São Paulo, foi convidado e topou, todos nós fomos para o Xingu, que é uma maravilha de experiência. Esse filme existe, o balé Stagium se vestindo dentro de um descampado da aldeia iaualapiti, e os índios, que não estavam entendendo bem o que era aquilo, começaram a se preparar para a festa também, se pintando e tal. Quando o Stagium acabou de dançar, eles usaram o mesmo espaço e dançaram também. Foi uma coisa maravilhosa. E eu, que deveria ficar lá uma semana, fiquei 42 dias. A segunda vez eu fui por causa do Ruy Guerra, para fazer o Kuarup, e passei umas três semanas. Aí eu já tinha amigos morando, os kalapalos, os xavantes. E depois, a terceira vez, eu fui por causa do Raoni. E agora, mais recentemente, eu fiz a trilha do filme do Ailton Krenak, que é uma figura maravilhosa, a gente é muito amigo. Então eu diria que quando eu saio do Brasil eu vou para um país melhor, que é o Xingu.

Samba do Escritor (1968), de Dulce Nunes
Samba do Escritor (1968), de Dulce Nunes

 

PAS: Uma das vozes iniciais da sua música era da Dulce Nunes. Por onde ela anda, que é feito de Dulce Nunes?

EG: A Dulce continua sendo uma pessoa próxima demais, que hoje em dia é uma das responsáveis pelas autorizações dadas pela Carmo Produções Artísticas.

PAS: Ela trabalha com você então?

A capa do LP Pobre Menina Rica, de 1964
A capa do LP Pobre Menina Rica, de 1964

EG: Não, ela faz tudo de casa, tranquila. É uma pessoa que sempre esteve do meu lado, me ensinou muito qualidade da vida, e não só isso. Para você ter uma ideia a Dulce fez discos que são marcos da coisa literária no Brasil. É a primeira pessoa que grava músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, quando acaba o disco ela presenteou à Elizeth Cardoso, e a Elizeth fez o tal disco com Tom Jobim inspirada nisso. A Dulce faz a primeira gravação de Pobre Menina Rica, do Carlinhos Lyra e do Vinicius de Moraes, e quando termina entrega na mão da Nara Leão. Estou te contando coisas que já são escritas dentro da biografia dela. A Dulce entrega nas mãos da Maria Bethânia a música Carcará, e convence Bethânia que ela tem que gravar. Tanto que, nos shows da Bethânia no Canecão aqui no Rio que fui e Dulce estava presente, Bethânia do palco parava e dizia: “Eu quero aproveitar para agradecer aquela que me colocou na estrada da música, Dulce Nunes”. É lindo de ver. E sem falar nisso, ela recentemente, há seis meses, disse: “Egberto, você lembra do disco que eu fiz, chamado Samba do Escritor?”. É um disco em que até Carlos Drummond de Andrade está sentado na capa com ela, imagina. Drummond, né? Disse “é claro que lembro”, até porque participo desse disco como arranjador em duas ou três faixas. Ela disse assim: “Eu tenho um presente para te dar. Você lembra que na época você fez arranjos para duas músicas com letras do Guimarães Rosa?”. As músicas eram Adamúbies e O Aloprado. Ela disse: “Pois é, o que eu nunca te falei é que ele me deu dez letras, e autorizou que eu fizesse tudo que quisesse. Eu estou te dando de presente oito letras”. E eu agora estou trabalhando, meu próximo projeto, que tem que ser gratuidade total, é fazer oito músicas e chamar um monte de cantores e cantoras para cada um fazer uma versão, gravando, e disponibilizar tudo para poder falar em Guimarães Rosa.

PAS: Que maravilha. Pode-se dizer que esse será seu próximo disco?

EG: Próximo disco não, porque acho que não vai ter formato de disco, mas meu próximo sonho é esse, que está sendo realizado devagar e que vai chegar à gratuidade. Eu quero demais isso.

PAS: A Dulce parou de cantar, depois de cantar em vários discos seus?

Dulce, o disco de estreia pela Forma em 1965, com músicas de Baden, Jobim e Vinicius
Dulce, o disco de estreia da cantora pela Forma em 1965, com músicas de Baden, Jobim e Vinicius

EG: Parou, chegou uma hora que ela disse: “Não quero mais, pronto”. E ela cantava também, quando penso que ela fez um disco maravilhoso com Baden Powell acompanhando no violão e Guerra Peixe escrevendo para cordas, isso nos anos 1960, eu nem estava aqui no Rio ainda, estava morando em Friburgo. É muito espetacular, uma pessoa muito competente, e competente na amizade, em tudo, dessas pessoas que se a gente tivesse uma meia dúzia de umas 30 dela no Brasil o Brasil estava melhor. É verdade.

PAS: Hoje os festivais dos anos 1960 são vistos como o lugar onde se revelaram dez entre dez grandes artistas da música brasileira que estão aí até hoje, e você é um deles. Como era o clima, como você sentia aquele clima de competição?

No III Fic, de 1968, "O Sonho" aparece na voz de Agostinho dos Santos; a passeata de Geraldo Vandré foi a predileta do público, e o "Sabiá" de  Tom Jobim e Chico Buarque saiu vencedor
No III FIC, de 1968, “O Sonho” aparece na voz de Agostinho dos Santos; o “Caminhando” de Geraldo Vandré foi o predileto do público, e o “Sabiá” de
Tom Jobim e Chico Buarque saiu vencedor

EG: Olha, eu cheguei no Rio de Janeiro, conheci pessoas que são muito mais elas do que eu próprio, responsáveis para que eu entrasse no festival com O Sonho. Cheguei meio desinformado, não sabia de praticamente nada, não sabia bem o que ia fazer da vida. E quando vi, um monte de amigos me empurrando, o Geraldinho Carneiro, que é meu grande parceiro e hoje é imortal na Academia, o pai dele, Geraldo Carneiro, era assessor do Juscelino Kubitschek. Na casa do Geraldão frequentavam todos os poetas, todos os escritores, como bom mineiro que era ele era muito ligado. De formas que de repente estou lá e na casa do Geraldo frequentavam não só Tom Jobim e todos os outros como também Augusto Marzagão, que era diretor do Festival Internacional da Canção. E por conta disso disseram para mim: “Não, menino, faz uma fita aí, bota uma música aí no seu gravador cassete”. Eu escrevi e, por uma razão ou por outra, a música foi selecionada e, pronto, comecei minha vida profissional assim.

PAS: Sérgio Ricardo é um que fala que aquele clima de competição era horrível, que ele não se adaptou. Alguns se adaptaram melhor do que outros?

EG: Eu não sentia esse clima, não. Eu sentia muito divertido. Mas também, 20 anos, né? Imagina, com 20 anos, chega de Friburgo, escreve um arranjo para a orquestra OSB, a Orquestra Sinfônica Brasileira, para tocar a música para 15 mil pessoas no Maracanãzinho.

PAS: Eram cem músicos na orquestra?

EG: Devia ter uns 60 ou 70. Mas foi a possibilidade de chegar, e a primeira coisa profissional que fiz foi colocar em prática o que eu tinha estudado na teoria. Eu tinha estudado isso, escrever para orquestra, tudo isso eu já tinha estudado. E claro que não tinha prática, mas fui aprendendo. Então eu nunca senti essa coisa de competição, não, pelo contrário. Aquilo ali é que me movia. Fazia arranjo, não dava certo, procurava um arranjador para ajudar, ele dava uma opinião, discutia, uma coisa muito viva. Claro que o Sérgio deve ter suas razões para achar que a competição era horrorosa.

PAS: Ele é o célebre cara que quebrou o violão…

EG: Eu sei que ele é, eu sei. Tanto que eu não ganhei o festival, sequer fui classificado, e quando terminou o festival fui convidado, essa é a coisa mais louca que existe. Eu tinha participado da parte nacional, não fui classificado. Aí tinha a parte internacional na semana seguinte, e muita gente que participava, inclusive arranjadores como Henry Mancini, Radamés Gnattali, uma série deles, brasileiros e Henry Mancini, que estava no Brasil, bateram o pé e fizeram um movimento tão bacana que fui convidado a ser jurado da parte internacional. Eu, que não tinha me classificado, não tinha recebido prêmio nenhum. E em seguida, quando termina o festival, a Marie Lanforêt, que tinha vindo como convidada, me encontra e diz: “Eu quero que você vá escrever arranjos para mim na França”. E aí eu fui, sem experiência nenhuma. Fui adquirindo experiência na prática, e pronto, acabou. Foi isso.

Circense, de 1980
A janela vira cortina em Circense, de 1980

PAS: Tem uma série de referências na sua música, Circense, Palhaço, Sanfona, que apontam para uma coisa cigana em você ou na sua música, ou não sei se em ambos – uma coisa nômade, e aí voltamos para os seus pais chegando no Carmo.

EG: Tem uma coisa cigana mesmo, tem sim. Aliás, de todos os filmes de que participei um dos que me deixou mais emocionado está dentro das três fábulas, dos ês filmes que fiz sobre fábulas do García Márquez, que é o Candida Erêndira, que conta a história de uma cigana.

PAS: Também de Ruy Guerra.

EG: Eu tenho uma relação absoluta com essa coisa nômade, de vai para lá, vem para cá, fica não sei onde, fala outra língua. É uma confusão danada. Eu fui chamado pelo meu pai a vida inteira de “minha filho”, por causa dos árabes que trocam os artigos, por causa dos franceses e tal, de forma que vivi muito isso. Vivi a vida inteira com uma educação que a gente tinha que aprender a lavar, cozinhar, passar e fazer conta com 5, 6, 7, 10 anos de idade. Isso é coisa meio de nômade, né?, que as crianças têm que participar de tudo, saber de tudo.

PAS: E a música também é nômade por natureza…

EG: Também, claro. É isso aí.

Sempre em busca de liberdade, a Dança dos Escravos, de 1989
Sempre em busca de liberdade, a Dança dos Escravos, de 1989

(Entrevista publicada originalmente, em versão resumida, na edição 990 da revista CartaCapital.)

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