imagem.aspxBurros ou inteligentes? Não está evidente na cabeça de ninguém, nem dos próprios golpistas, nem do sociólogo Jessé Souza, que ora define como inteligente, ora como burro o golpismo popular brasileiro que nos governa folgadamente neste início de 2018, sob nossa assustadora apatia. Jessé é um intruso nas listas dos autores mais vendidos no Brasil em 2017 no setor de não-ficção, oligopolizado por padres escritores, ídolos adolescentes do YouTube, obras de auto-ajuda e autobiografias pop. Sua mais recente obra ostenta o vistoso título de A Elite do Atraso da Escravidão à Lava Jato e se apresenta na capa como “um livro que analisa o pacto dos donos do poder para perpetuar uma sociedade cruel forjada na escravidão”. Foi escrito pelo sociólogo potiguar de 57 anos, cujo pensamento teórico tem ultrapassado os muros da academia desde 2015, quando ocupou a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sob o governo de Dilma Rousseff, até a interinidade de Michel Temer, em maio de 2016.

31694870._UY630_SR1200,630_ 2Com 18 mil exemplares vendidos em menos de dois meses (foi lançado em outubro), A Elite do Atraso consolida a aceitação dos provocativos A Tolice da Inteligência Brasileira ou Como o País Se Deixa Manipular pela Elite (Leya, 2015), com 28 mil exemplares vendidos até hoje, e A Radiografia do Golpe – Entenda Como e Por Que Você Foi Enganado (Leya, 2016), com 20 mil cópias, ambos produzidos no calor do processo político que virou o Brasil de ponta-cabeça. A Elite do Atraso é o único título à esquerda em rankings da situação como os da revista Veja e da newsletter PublishNews, e foi eleito livro de não-ficção de 2017 pelos consumidores do site Amazon, à frente de um guru de direitistas locais, o austríaco-americano Ludwig von Mises (1881-1973), em terceiro lugar.

Imodesto, Jessé admite o desejo de fixar um novo paradigma no pensamento sociológico brasileiro, que explique nossa histórica desigualdade social em função não mais da corrupção, como prefere o pensamento dominante nestes dias de Lava Jato, mas da herança escravista que tópicos como a chamada “reforma trabalhista” de Temer trouxeram para a mais gritante atualidade. “O que fiz nesse último livro foi ligar a escravidão à continuidade dela no ódio ao pobre, que está marcada no golpe de 2016. O golpe foi um golpe de escravocratas”, afirma, numa linha de provocações que o faz divergir – de modo que alguns pares acadêmicos classificaram como “bruto”, mas ele afirma ser respeitoso – de pensadores como o pernambucano Gilberto Freyre, o paulista Sérgio Buarque de Holanda e o gaúcho Raymundo Faoro, entre outros. O ponto de vista das camadas populares é o que ele diz procurar.

 

Pedro Alexandre Sanches: Seus livros são best-sellers para os padrões locais, não?

Jessé Souza: Este novo foi o que vendeu mais. Nos primeiros 20 dias ele vendeu a primeira edição de 10 mil exemplares. Saíram mais 10 mil, não sei se já acabaram.

PAS: Olhando as listas de mais vendidos, A Elite do Atraso é o único livro que fala de política, da realidade atual do Brasil. Como se fura esse bloqueio? Como conseguiu ser best-seller com a abordagem que você dá, num momento adverso como o atual, sob golpe?

JS: O golpe, em termos teóricos, foi perceptível num nível mais concreto, e os agentes que estavam operando, Lava Jato, a grande imprensa, tudo redundou num golpe parlamentar. Mas não existia uma leitura mais abstrata, mais ampla e mais aprofundada sobre o processo à medida que ele estava sendo realizado. Embora as pessoas não percebam normalmente, as ideias dominantes sobre o que é o Brasil e como ele funciona, que estavam por trás disso, sempre dominaram a direita e a esquerda entre nós. Tem uma mistura muito grande, o PSDB e o PT, numa cidade como São Paulo, são muito misturados, as pessoas são amigas. As ideias também são misturadas. Eu vinha desenvolvendo desde a juventude, comecei a trabalhar sistematicamente como investigador e intelectual aos 19 anos, em 1979. Eu sou de 1960. Na segunda parte da década de 1990, eu pus na minha cabeça uma teoria interpretativa sobre o Brasil distinta das que existiam.

PAS: Essa ambição sempre existiu?

JS: Essa ambição sempre existiu. Não a coisa da reinterpretação do Brasil, mas a partir dos 30 e poucos anos sim. E essa ideia de longo prazo foi que me veio, porque foi a ideia que presidiu todas as coisas que eu iria estar fazendo, as pesquisas empíricas sobre as classes. Essa parte era uma forma de esclarecer sobre o arcabouço teórico que eu estava montando. Quando o golpe aconteceu, eu tinha isso tudo muito claro na minha cabeça.

PAS: Já entendia o golpe? Ou o golpe explicava tudo que você tinha estudado a vida inteira?

JS: Exatamente isso. No golpe, as ideias inteiras que no fundo fizeram com que o golpe acontecesse e eram o pressuposto do golpe perderam a validade. A crise tem isso, aquilo tudo que parecia sólido de uma hora para a outra não é mais sólido. A realidade estava aberta para ser explicada de um outro modo, e eu vinha desenvolvendo esse outro modo. A minha vida inteira foi desenvolver esse outro modo. Então eu tinha isso articulado, pesquisado, não em um aspecto apenas. Eu tinha o quadro inteiro, digamos assim: como funcionava o poder, como as classes se relacionavam. Eu tinha construído uma nova relação sobre as classes, que não era nem liberal, nem marxista, ou seja, não era só econômica, embora obviamente levasse em conta o dado econômico. Não só o jogo do poder e a justificação desse poder, como também o mais importante, que é como as classes agiam e por que elas agiam do modo como agiam. Por que a classe média atuou contra os seus próprios interesses, como lacaia da elite? Essa é uma questão fundamental sobre o que aconteceu.

PAS: Dizendo de uma outra maneira, o sucesso mesmo comercial do livro é porque ele dá uma explicação para o que está acontecendo que não está em nenhum outro lugar?

JS: Exatamente. No caso, o que eu percebi, e a ocasião me permitiu isso, foi a passagem da linguagem acadêmica para uma linguagem da esfera pública. As ideias estavam refletidas de muitos anos, mas eu queria mostrar a eficácia das ideias. Tive muita crítica dos meus colegas da academia, como se fosse uma coisa de bons tratos, “você não critica alguém desse modo”, “você foi muito bruto” etc. No fundo tem duas questões aí. O jogo entre ideias não é um salamaleque de salão, não é um chá das cinco. Essas ideias humilham, desempregam, produzem extraordinário sofrimento e miséria. Nada acontece só por imposição, as ideias sempre legitimam, justificam, senão uma ação não se reproduz no tempo. Uma ação tem que estar sempre justificada, mesmo que seja pelo fato de a mídia reverberá-la de outro modo, distorcê-la, mentir, fraudar. Mesmo com fraude e mentira, toda ação tem que ser justificada, tem que se reproduzir no tempo. As ideias são muito importantes para isso. E o outro ponto, e aí foi o treinamento que eu fiz, acho que fui melhorando nos três livros.

PAS: Por que esse interesse em adotar uma linguagem mais universal? Geralmente seus pares não procuram isso.

JS: Porque eu queria falar para as pessoas. A academia não quer. Classicamente, ela só recebe o que é novo quando ou está muito velho ou morreu.

PAS: Quando não é mais novo.

JS: Todo o campo social é montado assim, para se reproduzir, para viver mil anos. Então ele é contra o que é novo, é claro. Qualquer mensagem nova encontra todos os interesses ideais e materiais já montados para sua reprodução, o que é uma contradição, porque obviamente o campo científico vive da novidade. Ao mesmo tempo, ele silencia a novidade, ele age contra a novidade. Tem as estratégias: silenciar, ridicularizar. Nas redes sociais, eu fui chamado de Olavo de Carvalho da esquerda por um de meus colegas, que depois me ligou pedindo desculpa. Recebi críticas muito mais à forma, não houve crítica efetiva ao que eu defendo.

PAS: Você mesmo aborda em vários momentos que a reação esperável ao seu pensamento poderia ser o silêncio, porque a estrutura, como está montada, se perpetua inclusive não permitindo a fala de quem pensa diferente. Como você furou esse bloqueio?

JS: Em grande medida, eu tinha uma voz heterodoxa dentro do campo científico, mas não era uma voz dominante. Ao mesmo tempo, com minha saída do campo científico para o debate público…

PAS: É quando vai para o Ipea?

41cEdKgqb2LJS: Exatamente. A partir do Ipea, com o lançamento de A Tolice, eu fiquei alguns meses como uma voz de defesa ao que estava acontecendo, porque o governo, o próprio PT, estava metido nessa coisa, dava apoio à Lava Jato em 2015. Dá até hoje. E eu achava aquilo já um circo, para mim sempre foi um embuste, uma máscara nova do jogo velho, porque afinal eu tinha estudado isso. Aquele negócio de junho de 2013 também, tinham me pedido análises.

PAS: Você já estava entendendo aquele momento de 2013?

JS: Quando a esquerda entrou e logo depois a direita, o que a esquerda estava querendo com aquilo não tinha ficado claro na minha cabeça. Mas foi uma coisa muito pequena, quando a esquerda entrou eram 20 mil, 30 mil pessoas.

PAS: A esquerda logo foi expulsa das ruas.

JS: Foi expulsa. Quando a direita entrou, eu disse: esse jogo eu conheço. Aquilo obviamente era a fração da classe média que sempre votou contra e agora está sendo chamada de povo.

PAS: Você entende por que a esquerda entrou, ou está obscuro até hoje?

JS: O que eu entendi tinha muito mais a ver com uma espécie de aprofundamento do que vinha ocorrendo. Várias coisas eu fui perceber depois, ao estudar o fenômeno. No Rio de Janeiro teve passeatas contra a Rede Globo, ataques contra a Rede Globo inclusive, mas eram grupos, não era a massa. Eram grupos mais politizados, que estavam tentando aumentar a velocidade do processo que estava acontecendo, uma parte desencantada da esquerda. Mas era uma atividade que não era popular. Quando o povo, entre aspas, entra, é o povo da classe média, o povo da classe média mais conservadora, que é sempre o povo que a elite bota nas ruas. A elite é muito pequena. Esse é o povo da elite, desde 1930. É a leitura que faço agora. É o povo para combater o povo, o arremeto de povo que botam na rua, branco, mais de 20 salários mínimos etc. É uma corja conservadora. Não é nem a classe média como um todo, é a parte mais conservadora da classe média, a parte que foi instruída por essa elite, que pensa que é elite em grande parte.

PAS: Por isso é importante o fracionamento da classe média que você propõe?

JS: Sim, você é classe média, eu sou classe média. A classe média é muito pulverizada, é onde há mais diferenciação interna de visões de mundo. São as pessoas que estudam mais, é uma classe muito mais pulverizada que as outras.

PAS: Isso está consolidado em A Elite do Atraso quando você coloca o procurador Deltan Dallagnol, o ministro do STF Luís Roberto Barroso e o ex-prefeito petista Fernando Haddad como representantes da classe média que, embora diferentes, usam os mesmos referenciais teóricos para justificar suas visões de mundo.

JS: Sim, são as mesmas ideias. Esse é o ponto principal, terminam usando o patrimonialismo com um sentido completamente distinto, mas como é que você vai usar? O seu sentido, a sua intenção é distinta, mas isso vai chegar igual ao público, porque a palavra é igual, a ideia é igual, o recobrimento é igual. A academia é um negócio muito pequeno, um jogo para pares, e a saída disso, de mostrar o meu trabalho, não para pares, onde uma meia dúzia tem ouvidos para isso, mas efetivamente para a sociedade que precisava disso. É a sociedade que precisa. É uma bobagem, briga-se por coisas muito pequenas, é uma lógica muito amesquinhada, que tem a ver com pequenas vaidades, tudo muito pequeno, quantos orientandos se vai influenciar, qual é o acesso a financiamento que se vai ter, coisas ridículas de tão pequenas. É uma vida pequena. E a oportunidade de poder falar para a sociedade como um todo foi extremamente motivante, foi o que fez com que eu trabalhasse como quando era jovem.

PAS: Que medidas você tem disso? Como percebe o alcance dos seus livros? Quem está lendo?

JS: Percebo que muita gente está me lendo, seja de esquerda ou não, até.

PAS: Dentro de um Estado de exceção.

JS: Dentro de um Estado de exceção. E ao mesmo tempo a minha respeitabilidade é porque meu capital é acadêmico, é científico. As pessoas até podem dizer que eu tenho simpatias políticas, mas eu tenho críticas mesmo aos partidos e políticos aos quais tenho simpatia. Esse tipo de coisa me dá respeitabilidade, e verdadeiramente é o que é mais importante para mim. Quando estou falando, pensando ou escrevendo eu procuro me distanciar, e nunca traí esse papel. Desde jovem, para mim, essa coisa de buscar a verdade, mesmo que não seja uma coisa boa nem aquela que você quer ouvir, é o valor principal. Para mim, é um valor impessoal, é mais importante do que eu. Acho que é isso que dá respeitabilidade, não só porque as pessoas sabem que tem a ver com pesquisas de muito tempo, buscando efetivamente a compreensão daquele fenômeno, não de uma forma defendendo um ponto de vista ou interesse qualquer.

PAS: Qual é o paradigma de Brasil que precisa se excedido, no seu ponto de vista?

JS: O paradigma que precisa ser excedido, que no fundo está em todos os lugares, tem a ver com a nossa noção de patrimonialismo. Ela tem ligação direta com o poder, todo mundo fala de patrimonialismo, da esquerda à direita. E é uma bobagem, sob todos os aspectos. Não tem o menor sentido. Se você pegar patrimonialismo, personalismo e populismo, esses três elementos, é uma visão do Brasil. E não é uma visão que fica só nas universidades e nos livros. É aí que muitos dos meus colegas de academia não compreenderam. Não estou interessado em fulano, como ele viu aquela ideia. Estou interessado no efeito social das ideias, na eficácia social delas. É isso que importa, não é se o cara tinha querido dizer isso ou não, para mim isso é praticamente uma fofoca. Eventualmente pode ser importante, um drama que o escritor teve, mas isso é um dado secundário, não importa, não tenho o menor interesse por isso.

PAS: Está falando de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro?

JS: Exatamente. O que me interessa é o destino dessas ideias, para depois legitimar e justificar coisas que vão ser feitas para centenas de milhões de pessoas, 200 milhões de pessoas. Essas ideias estão decidindo essas vidas. As ideias decidem vidas, isso é o que normalmente as pessoas não percebem. Todo mundo tende a ver como se funcionasse a partir de dinheiro e poder. É claro que dinheiro e poder importam no mundo, mas as ideias vão dizer como se vai unir e exercer dinheiro e poder. Isso é muito difícil de ser percebido: as ideias são extremamente importantes quando estão associadas a interesses econômicos e políticos. Então é destrinchar essa relação entre ideias e interesses econômicos e políticos, que é onde vejo a minha atividade central. É explicitar isso. Eles estão montados sobre uma forma mentirosa, é uma fraude. O mundo é uma fraude.

PAS: Isso explica por que tem golpe a toda hora?

JS: Exatamente, o mundo é uma fraude porque ele diz de si mesmo que ele é justo, e ele é obviamente injusto. Então ele é sempre uma fraude, às vezes maior, às vezes menor. A nossa é uma enorme fraude. Destrinchar essa fraude é como vejo a minha atividade. Como até agora, de esquerda e direita, viviam sob uma mesma ideia – mas acho que isso está começando a se modificar, a gente está num instante muito histórico disso -, vejo assim minha função neste instante: essas ideias não servem para moldar uma sociedade que seja efetivamente mais igualitária. E o fato de a esquerda ter sido dominada por essa ideia mostra a fragilidade da atuação da esquerda quando ela está no poder.

PAS: Basta dar um sopro e ela cai?

JS: E não só isso. Se você pensar, a esquerda aparelhou os seus inimigos no Estado. É uma coisa incrível. Pensou um Estado republicano, como se o Estado não já estivesse aparelhado.

PAS: A sua ambição é criar um novo paradigma?

JS: A minha ambição é, sim, criar um novo paradigma. Porque acho que não existe nenhum que seja das classes populares. Não tem nenhum paradigma da esquerda, de compreender sob a visão dos interesses da maioria. Não existe.

PAS: Até hoje sempre foi a elite que estabeleceu os paradigmas?

JS: Sempre foi a direita.

PAS: Mesmo os nomes citados antes?

JS: Eles servem à direita.

PAS: Não quer dizer que sejam? Eles poderiam ser a esquerda como Lula é?

JS: Se a gente pensar, os grandes pensadores de esquerda, os que vêm à minha cabeça, Florestan Fernandes, Celso Furtado, o que eles fizeram? Tiveram ideias importantes, mas localizadas. Eles não montaram uma ideia de Brasil. A ideia de Brasil não foi montada em 1500, foi montada em 1930, em São Paulo.

PAS: Não foi Gilberto Freyre?

JS: Gilberto Freyre deu o pontapé inicial, mas não foi a ideia de Freyre que venceu. Tem uma ideia de Freye, que vem seguida por Darcy Ribeiro, mas não são ideias de esquerda. Freyre foi apropriado pela direita de São Paulo. Essa apropriação se dá com Sérgio Buarque.

PAS: Um pernambucano apropriado pelos paulistas? Como Lula?

JS: É claro. É muito interessante isso. É o paradigma no qual supôs-se, até agora, que Sérgio Buarque seria uma oposição ao Freyre. É uma bobagem, porque os dois compartilham de todos os pressupostos. Houve uma ruptura superficial. Aquilo que Freyre definia como o brasileiro, como sendo ambíguo etc. e que Buarque vai colocar só como negativo, essa ruptura, positivo em Freyre e negativo em Buarque, essa característica do brasileiro como sendo positiva em Freyre e negativa em Buarque, é uma falsa oposição. Por quê? Porque no nível dos pressupostos, que é o principal e foi Freyre que construiu, os dois estão trabalhando com os mesmos pressupostos, com a vinda de Portugal, que o brasileiro é emotivo, o animalizado nessa hierarquia, que os europeus e os americanos então são a racionalidade, o espírito. Isso é que é o ponto principal. O que eu estou atacando é o pressuposto. Estou dizendo que todas essas teorias vêm de um pressuposto que não vale um vintém, que no fundo não é científico. São pressupostos que já têm uma hierarquia. Um vai dizer que o americano é mais inteligente, menos corrupto, veja que coisa idiota, dizer que o americano não é corrupto, quando montou o maior esquema de corrupção do mundo. Você se vê já como um ser inferiorizado, então você é o corrupto.

PAS: A nossa suposta corrupção sustenta a suposta honestidade do mundo rico?

JS: Acho que é mais complicado. Tem a ver mais com a questão de que, por exemplo, existem hierarquias que são inconscientes na nossa cabeça. Essa hierarquia tem sempre a ver com a oposição entre corpo e espírito. O homem é percebido como espírito, a mulher como corpo. O branco como espírito, o negro como corpo. As classes superiores como espírito, as classes inferiores como corpo. E aí as culturas do norte como espírito, as culturas do sul como corpo. Tudo que você vai dizer no nível explícito está obedecendo a esse nível implícito. Então tudo que você disser aqui é uma bobagem no fundo, porque não vai mudar esse nível implícito. Por exemplo, aqui em cima estão Gilberto Freyre e Sérgio Buarque brigando no nível explícito, mas tudo que eles já dizem já está manchado por essa oposição anterior. Tudo que a ciência diz, a ciência central também, o que (JürgenHabermas diz, não importa nesse nível implícito. O que estou querendo dizer é que tem que tocar nesse nível, tem que fazer uma ruptura real.

PAS: É preciso desnaturalizar ele?

JS: Desnaturalizar ele. Pegar esse nível que estava implícito, torná-lo explícito e dizer: todas as nossas avaliações sobre o mundo, e sobre a política especialmente, dependem desse nível que tem que ser explicitado, porque é ele que nos faz de imbecis. É ele que faz com que ao fim e ao cabo se possa dizer na televisão, sem ser ridicularizado, que, olha, é melhor a gente entregar a Petrobras, porque nós somos um povo de corruptos, e então a gente tem que entregar aos povos que são superiores à gente. No fundo é isso que está sendo dito. É isso que está sendo dito. E as pessoas dizem isso sem que ninguém ridicularize. Por que ninguém ridiculariza, quando o cara chega na televisão e tem a pachorra de dizer uma bobagem dessas, uma coisa ridícula e imbecil dessas?

PAS: Por que ninguém ridiculariza?

JS: Ninguém ridiculariza porque existe, nesse nível inconsciente, uma avaliação sobre o que é a cultura brasileira e o sobre o que é o Brasil que está manchada por essas avaliações que são irrefletidas e inconscientes. Então a gente tem que pô-las à luz do dia, e é exatamente isso que estou tentando fazer. O que acho que estou fazendo é uma ruptura em relação a isso.

PAS: Quanto ao lugar de São Paulo nisso, em outras palavras você está dizendo que no campo da cultura e das ideias a Revolução de Constitucionalista de 1932 venceu?

JS: Exatamente, perfeito. Eu nunca tinha pensado nesses termos. É muito trágico. E aí não é a elite de São Paulo como sendo pior ou melhor, não é o estado de São Paulo. O estado de São Paulo tem muita coisa boa. Estou falando da elite de São Paulo. Eu, que moro aqui há seis meses, estou adorando a cidade. Eu morava no Rio, estava morando em Niterói. Eu nunca tinha compreendido São Paulo antes, quando você vem em visita não tem a dimensão. Aqui é a cidade onde se decidem todas as lutas, todas as brigas, sejam políticas, econômicas ou intelectuais também. Aqui se decide tudo, e depois se espraia pelo Brasil. Eventualmente essas lutas se decidiam no Rio de Janeiro no século XIX, mas no século XX é São Paulo. Por quê? Porque o poder econômico está aqui. Quando São Paulo perde o poder político para o Rio Grande do Sul, para (Getulio) Vargas, o que ela faz? Eu perdi o poder político, então vou construir o poder ideológico, baseado nessas ideias, em universidades que vão depois influenciar o Brasil inteiro. O importante não é o que cada pessoa ou cada intelectual tem na cabeça. Isso não tem nenhuma importância. É o narcisismo intelectual que faz com que se pense que essas ideias têm alguma importância. A única coisa que importa nas ideias é a eficácia social delas. É como vão influenciar as vidas das pessoas comuns, que vão precisar ter uma ideia sobre como funciona a sociedade, senão não vão saber como se comportar sobre vários assuntos, sobre economia, política e tal.

PAS: A elite paulista tem orgulho da revolução que ela perdeu?

JS: Ela perdeu militarmente, né? Fugiu do campo de batalha. Mas ganhou ideologicamente. Quer dizer, foi muito mais inteligente. É uma guerra, uma batalha, se pensar na Revolução Francesa, depois houve a restauração, porque você não mudou as pessoas na cabeça. A revolução real é sempre de ideias, é sempre na cabeça. Por conta disso, a tentativa que faço é, por exemplo, de que a esquerda tem que se remontar. Tem que pensar com outras ideias, com outra cabeça, porque senão vai tomar na cabeça, sempre. A esquerda sempre tomou na cabeça, porque o que a esquerda conseguiu fazer, de alguma maneira, não foram ideias, foram iniciativas. Foi usar o Estado de uma forma que seja não só para a elite, mas que seja utilizado para a maior parte das pessoas. Isso ficou, esse é o dado. Mas todo esse dado foi envenenado, porque se criminalizou e estigmatizou o Estado. A imprensa sempre foi venal e comprada, a gente tem sempre que pensar nisso, a elite do dinheiro, a principal… Porque senão a gente vai ficar achando que é Temer. Temer é um lacaio, um office-boy, não tem importâcia nenhuma em si, aliás é uma pessoa medíocre e pobre ao extremo. É mesquinho, uma pessoinha. Temer tem 30 centímetros. Temer não tem importância alguma, só tem importância porque é lacaio e cumpre cegamente o que a fração financeira diz que ele tem que fazer. Ele sabe, não tem nenhuma veleidade de ser popular, porque sabe que está lá porque os bancos é que querem que ele esteja lá. A gente não pode nunca pensar em Temer, no Ministério Público, na Lava Jato, mesmo na Rede Globo. É claro que a Rede Globo tem um peso maior, ela é a boca do capital financeiro. Mas por trás é o capital financeiro. É uma forma mais destrutiva que todas as formas de capital que existiam antes, mas é sempre uma articulação de proprietários, que tiveram a inteligência de construir depois uma imprensa para bombardear esse veneno todo dia 24 horas para todas as pessoas. E ainda que criaram essas ideias montando um negócio, como se fossem luminares, você cria uma consagração, sacraliza, cria uma igreja. Ter criado isso foi extremamente importante, é o que mantém essa elite e mantém a confusão que está acontecendo hoje, porque não tem uma ideia articulada contrária a isso.

PAS: Você chamou essa estratégia de inteligente? Ela criou Michel Temer, que por acaso é paulista.

JS: É inteligente num sentido… A inteligência não tem a ver com o bem ou o mal. Ela pode ser uma inteligência do mal. Para mim, quando você pensa a curto prazo você é burro, e quando pensa a longo prazo você é inteligente. É uma definição formal de inteligência e burrice, independente do conteúdo. O golpe é uma burrice, porque foi pensado a curto prazo. O golpe está completamente deslegitimado agora, quem tocar nesse golpe está contaminado, porque foi um golpe burro. O golpe inteligente era aquele que (Geraldo) Alckmin tinha dito para fazer com Dilma: deixa sangrar. O pessoal entrou mais à frente, hoje Dilma é uma santa, santificada. Isso é coisa de burro, né? A elite atual é burra. A elite de 1930 sabia o que estava fazendo: vamos montar um negócio aqui para essa classe média tenentista nunca montar mais uma heterodoxia rebelde. Mesmo a classe média que é crítica hoje foi montada dentro de um certo sistema onde ela tem uma inação. A parte rebelde da classe média que vai às ruas é a conservadora.

PAS: O pensamento a curto prazo é a Fiesp, que sai à rua em 2015 e em 2017 já não consegue mais explicar por que estava lá?

JS: Perfeito, não tem justificação. Isso é extremamente importante. Só os inteligentes sabem que a ação humana precisa ser justificada moralmente, senão ela não se reproduz no tempo. Ou então você vai ter ficar com uma mentira, e a mentira pode ser muito indigesta. Por exemplo, a imprensa do Brasil está precisando se redefinir. A revista Veja já chamou uma outra pessoa, a Globo não sabe o que faz porque está com essa mentira o tempo inteiro e perdendo credibilidade. Isso é coisa de burro. Ser dono de uma grande TV ou um grande jornal e não saber que seu capital é credibilidade, ou seja, fazer de conta que tem pluralidade, você é imbecil. É ou não é?

PAS: É suicida, talvez? Nós somos hoje uma sociedade suicida?

JS: Mas é o cara burro, o cara que não percebe que vai ter que legitimar a ação dele. Ou então ele diz: “Como eu controlo tudo aqui no Brasil, não vai surgir nada contra mim no Brasil”. Sim, mas você eventualmente não vai controlar um juiz lá em Nova York, ou a Justiça lá da Espanha. São consequências inintencionais da sua ação. Ao mesmo tempo, o que sinto é que a esquerda tem um grande potencial aqui, para minar esse discurso. Pelo discurso você pode inclusive reconquistar a classe média, mostrando como ela foi… Pode reconquistar parte do povo que foi jogado pela ação irresponsável da Rede Globo e da Lava Jato no colo do (JairBolsonaro. Bolsonaro foi criado pela Lava Jato e pela Globo, ao criminalizar não apenas o Estado, criminalizar a noção de igualdade, como eu tento explicitar no livro. Mas a esquerda precisa saber usar isso. Nada disso é automático. Não é que as pessoas vão começar a refletir agora e saber o que aconteceu. As pessoas imaginam isso. Uma pessoa que tem maior compreensão do mundo imagina que a outra pessoa, coitada, lá embaixo, que nunca teve acesso a leitura, a raciocínio, a aprender a raciocinar abstratamente sobre grandes questões, vai reagir do mesmo modo dela. Não vai reagir do mesmo modo dela. Nem ela mesma tem os conceitos. Tem a ideia, ela está desconfiada com as coisas, mas isso não significa que ela tenha já alguma coisa para por no lugar. É preciso ideias para por no lugar das que hoje não explicam mais.

PAS: Algumas delas estão nos seus livros?

JS: Algumas delas acho que estão nos meus livros. Acho que montei essa coisa toda para desconstruir essas ideias. Você só vai construir algo novo a partir da desconstrução do antigo. Você não vai construir algo novo do nada também, tem que ser a partir da desconstrução do que existia antigamente. Essas mentiras que estão aí, populismo, patrimonialismo, personalismo, é onde a gente foi bebido nos últimos cem anos. Nos últimos cem anos todo brasileiro foi imerso de cabeça dentro dessa piscina. Depois, agora, para sair disso e ver alguma coisa nova, você tem que desconstruir primeiramente todo o material venenoso que construiu a vida inteira. Porque é tudo mentira. Patrimonialismo não existe, por exemplo. A corrupção política é a corrupção da gorjeta. É claro que é desprezível, óbvio. Ninguém está aqui dizendo que você deve roubar, que essa corrupção não existe. É claro que ela existe. Mas ela é a do lacaio, a do aviãozinho. A corrupção real está em outro lugar. A corrupção real é a dívida pública.

PAS: O livro diz que os políticos são o aviãozinho do tráfico se comparados à corrupção privada.

JS: A boca de fumo é a intermediação financeira e os oligopólios de comunicação, porque um rouba e o outro mente, um rouba e o outro frauda. Claro, você tem que fraudar a realidade. Não é só roubar.

PAS: Quem mente fica com a migalha do roubo do que rouba?

JS: Exato, são os juros, é a isenção fiscal de grandes companhias, agora é o pré-sal. É a sonegação fiscal. O orçamento passa a ser o lugar do roubo. A dívida pública deve ser na sua quase totalidade assalto, roubo, simples. É como a dívida de Grécia, por exemplo, 40% era papel, era roubalheira. A nossa, quem entende diz que é mais. A gente não tem educação, segurança, tudo, por causa de roubalheira. Porque nunca foi auditado, a gente não sabe a quem a gente deve. É um negócio absurdo, a suprema burrice.

PAS: A suprema burrice é que aquela fração foi à rua em busca de mais saúde e educação.

JS: Pronto, imagine isso.

PAS: Como você diz, como é que ninguém ridiculariza essas ideias?

JS: Como é que ninguém ridiculariza? O meu trabalho é esse, eu sei que essas ideias são ridículas já há muito tempo. Agora eu precisava por numa linguagem para mostrar às pessoas. Aí tem gente da esquerda que me critica porque tenho uma linguagem muito brutal. É uma coisa doida.

PAS: Ridicularizar ideias ridículas é ser bruto?

JS: É ser bruto, ou então é ser desrespeitoso com essas ideias, imagine a cegueira. Como se eu estivesse sendo indelicado com Raymundo Faoro ou Sérgio Buarque, quando tem centenas de pessoas na miséria por conta dessas ideias.

PAS: A reação não acaba sendo um dado positivo? Eu esperaria que suas ideias fossem ou execradas ou silenciadas, e a reação não tem ido para nenhuma dessas táticas.

JS: Por que não vai, né? Porque argumentativamente eu sou muito forte. Eu nunca falo das coisas que não entendo. Essas ideias, se alguém vier debater comigo, pode vir, porque tenho material para isso, tenho bala na agulha para isso. Eu não tirei isso de uma hora para outra, não foi na crise que comecei a estudar isso. Estou estudando há décadas, faz 40 anos que estudo, com muita dedicação, querendo isso o tempo todo. Eu quero que venha o debate argumentativo, porque eu estou preparado para ele. E também, no debate, se eu tiver que reconhecer que errei aqui e ali, não tenho nenhum problema. Eu aprendo, eu aprendi com isso. Eu sou um investigador. Eu amo a verdade. Se alguém mostrar a mim que eu não estou falando a verdade, por que não? É um ser humano falível, não sou deus. Eu aprendo assim, sou estudioso. Mas acho que vai ser difícil. A história das lutas políticas me dá completa cobertura.

PAS: Uma coisa que me deixa assombrado é que até algum tempo atrás falar de escravidão parecia uma coisa remota, e seu livro tem escravidão no título num momento em que a “reforma trabalhista” e outros projetos de lei ameaçam trazer a escravidão de volta. Você compreendia isso, ou é do espírito do tempo?

JS: O espírito do tempo ajudou. O que foi que pensei? Eu vinha estudando, sempre estudei, a formação das classes no Brasil, estudando sempre o século XX basicamente. Compreender teoricamente que as classes não são econômicas, como o liberalismo e o marxismo dizem. Ainda tem uma coisa com a esquerda, eu por exemplo acho que a luta de classes é o mais importante, mas eu não vejo a luta de classes… Que (KarlMarx tenha visto a luta de classes como motor de tudo, acho extremamente importante. Só que Marx viveu no século XIX, e vários outros autores contribuiriam para que se veja a luta de classes de um modo muito mais aprofundado. Então não sou marxista nesse sentido, embora eu seja inspirado pelo marxismo. E isso é mais uma briga, porque a maior parte da esquerda é marxista ainda, o que é, para mim, uma coisa lamentável, porque obviamente você é cego para as coisas que são mais importantes, que não são econômicas. O econômico você normalmente tem quando é adulto, um lugar na sua produção, e a produção da desigualdade não é quando você é adulto, é desde o berço, da mãe, da infância. 

PAS: O Brasil nem estava no mapa do Marx quando ele pensou…

JS: Sobre a escravidão, eu percebi que se eu não pusesse a luta de classes como fator principal desde o começo eu ia perder para essa… Era isso que a esquerda nunca tinha tido, uma visão do Brasil inteiro. A ciência tem que montar isso como as antigas religiões. O que as pessoas comuns querem saber é de onde elas vêm, quem elas são, para onde elas vão, como as grandes religiões respondiam. Por isso elas ganharam muitos fiéis. A ciência substitui a religião como a instância que vai dizer o que é verdade e o que é mentira, o que é certo e o que é errado. Tem que explicar isso também, e a ciência que tinha explicado quem era o Brasil era essa, que tem essa leitura de Freyre, que é assimilada por Buarque, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Roberto da Matta

PAS: Jeitinho, cordialidade, Macunaíma

JS: O jeitinho veio do Brasil, a corrupção veio de Portugal, é uma bobagem. Tudo só bobagem, e para quê? Para botar a forma do Estado como a coisa principal, e não as classes. Quando você inverte, o Estado vai ter a forma que a luta de classes disser que ele vai ter. E não é a forma de Estado que vai criar a sociedade, é a sociedade que vai criar a forma de Estado. Neguinho inverteu isso, e aí as pessoas comuns… O que foi que percebi? Que essa releitura só vai ter impacto se eu reconstruir pela esquerda, pela luta de classes, desde o começo, desde o ano zero. O Brasil tem que ser reinterpretado. Não é a forma de Estado que ele recebe de Portugal que é o principal, claro que não. É a escravidão, meu Deus. Que não tem nada a ver com Portugal, porque em Portugal tinha escravo, mas não tinha escravismo, não tinha uma saciedade escravocrata, o que é muito distinto. Todas as relações vão ser criadas por causa disso: família, justiça, política. O que fiz nesse último livro foi essa grande ligação da escravidão à continuidade dela no ódio ao pobre, que está marcada no golpe. O golpe foi um golpe de escravocratas, que não queriam nenhuma mudança nessa relação de classes.

PAS: Perderam a vergonha de odiar o pobre, declarando isso em praça pública?

JS: Agora estão declarando em praça pública, por conta da Globo e da Lava Jato. Por isso criminalizaram só o PT.

PAS: E ainda conseguem passar o engodo de que não é isso, de que não é ódio ao pobre, que é outra coisa? Essa ideia de que é ódio ao pobre ainda não está disseminada pela sociedade.

JS: Não está disseminada. E meu interesse é disseminá-la, porque ela é verdadeira. Essa classe média não saiu às ruas por conta da corrupção. Hoje isso fica óbvio. Se tivesse sido pela corrupção agora ela teria que sair muito mais. A raiva do PT era por conta de quê, se não era pela corrupção? Então foi porque o PT diminuiu um pouquinho as distâncias entre as classes. Isso é escravismo. Isso mostra como a gente preserva o escravismo. E aí, veja bem, como a gente nunca se percebeu como efetivamente uma sociedade escravocrata… A gente se percebia como? É claro que ninguém negava que tinha havido escravidão, aí seria uma loucura.

PAS: Mas parecia que foi na época dos dinossauros, há milhões de anos.

JS: Parecia isso, e também a leitura era que o principal era o patrimonialismo, e aí por acaso tinha senhores de escravos. Você invertia a prioridade, é assim que se monta a fraude e a mentira. A fraude não é montar um negócio que não tem nada a ver. É uma coisa que tem um grãozinho de verdade e que você inverte. É claro que tem corrupção na política, isso tem um grão de verdade. Mas não é a corrupção principal. A mentira tem que ser com um grão de verdade, e aí o grão de verdade é que se reduz a escravidão a uma coisa secundária, sendo a principal. Tanto é que até hoje ela é que marca as lutas políticas. Marcou o último golpe. Foi o ódio ao pobre. Nada é mais escravocrata do que odiar o pobre. Imagine, é a vítima, alguém que você está explorando e que é frágil, alguém que não tem nenhuma arma, e que você odeia, que você acha bom quando a polícia assassina. Imagine isso. Mais escravocrata do que isso é impossível. É a comprovação empírica de que essa leitura é melhor, é mais importante, é verdadeira. Ela é mais verdadeira, porque ela expõe as outras. O que fiz foi mostrar que todas as outras leituras são falsas, porque elas explicam menos e servem para mentir e encobrir que essa forma de leitura explica as outras.

PAS: No final dos anos 1990, era FHC, Caetano Veloso pegou uma frase de Joaquim Nabuco e colocou numa canção, dizendo algo como “a escravidão será por muito tempo uma marca distintiva do Brasil”. De alguma maneira ele estava tocando nesse ponto?

JS: É, exato.

PAS: Mas também parece meio fatalista, “permanecerá por muito tempo”. Ou seja, é assim mesmo, e a gente tem que aceitar?

JS: Não falo de Joaquim Nabuco, mas ele foi extremamente importante para mim. Esse ponto de ele ter dito que o Brasil precisa de uma outra revolução, de uma outra libertação dos escravos, nunca saiu da minha cabeça. O principal estudo empírico que tenho, sobre a ralé, é exatamente sobre os novos escravos. Nabuco é o meu grande inspirador nesse ponto, mais do que qualquer outro, embora Gilberto Freyre e Florestan sejam figuras… É claro que sou muito mais crítico em relação ao Freyre, mas uma figura de inspiração política para mim é Joaquim Nabuco.

PAS: Mas não é preciso trocar a frase “a escravidão será a nossa marca” por “é preciso mudar essa marca”?

JS: Obviamente. A arte, música, poesia, tudo, é muito forte, porque toca exatamente nas emoções. É muito importante. Ao mesmo tempo, a ciência, que é muito mais fria e distante, que fico combatendo com o estilo atual que estou tentando montar, porque estou querendo dizer que isto aqui pode ser emoção, você pode usar as palavras emotivamente, também para tocar as pessoas. A ciência tem a vantagem, em relação à arte, de reconstruir o mundo – não quer dizer que a arte não tenha, mas não foi montada para isso -, de explicitar os interesses que estão por trás das elaborações. Quando você explicita isso, você está dando força a todas aquelas pessoas que têm interesse na mudança. Não por acaso, quem influenciou a política foram os grandes pensadores. É a ciência que faz esse tipo de trabalho. Ela pode ser ajudada pela arte, e pode ter uma comunhão grande com a arte, mas não é função da arte elaborar o mundo e o pensamento. É função da arte tocar o coração das pessoas com imagens que foram esquecidas ou reprimidas, para uma união dessas duas coisas que tem que acontecer. Mas a arte jamais vai poder fazer isso, senão fica uma arte chata, cansativa, apologética, não é arte.

PAS: Você é da ciência fria, como disse, mas quando cheguei estava sob impacto de um filme sobre Sebastião Salgado, que tirou seu sono. Por que isso aconteceu?

JS: Porque me tocou profundamente. Ele tinha não só uma vida que me tocou muito, porque foi uma vida de renúncia, do filho, viagens – ele dedicou a vida, é um messiânico, um renunciante, para denunciar o sofrimento. Isso é uma coisa muito tocante, de extraordinária beleza. E um brasileiro. É muito inspirador, e muito triste. A arte produz esse tipo de coisa. É sempre uma união dessas duas coisas que faz com que as pessoas mudem as percepções de mundo.

PAS: Não sei se isso é meio proibido nas ciências sociais, mas tenho muita curiosidade em saber o que produz o seu pensamento no homem que você é. Na sua origem, na sua história, o que fez você ter o desejo de mudar os paradigmas? Você é um nordestino, não?

JS: Um nordestino, do Rio Grande do Norte, venho de uma família muito pobre, retirante, nordestina.

PAS: Do interior?

JS: Não, a família veio do sertão para a cidade. Eu nasci na cidade, em Natal. Meu pai era sargento do Exército. Uma parte da minha família ficou rica, mas nós éramos os primos pobres. Eu tive acesso à escola, a boa escola, mas sempre tive a minha identificação com meu pai. Meu pai sofria humilhação, e até da parte da família que tinha ficado rica, e ele pobre. Eu tenho essa experiência, e com o estudo foi a minha válvula de escape, como é para a grande maioria. O estudo foi tudo para mim. Eu vi como a arma com a qual eu podia trabalhar essa experiência da humilhação do meu pai. Mais do meu pai do que minha, mas obviamente minha também, porque era do meu pai, então é minha.

PAS: A condição do nordestino já é historicamente uma condição de humilação.

JS: Já é uma condição de humilhação, sem dúvida.

PAS: É o pobre do Sudeste.

JS: Exatamente, embora eu nunca tenha sentido essa humilhação. Um pouco, e tal, mas nunca foi a principal. Mais a experiência da humilhação brutal me fez sempre procurar o lado simbólico das coisas, nunca só o lado econômico, mais óbvio. Hoje eu sei que o lado simbólico é muito mais importante do que o lado mais óbvio. Mas as relações econômicas estão sempre em volta do lado simbólico, que é o que faz com que elas se reproduzam, convençam as pessoas que aquilo é justo.

PAS: Foi o ser humano que inventou o dinheiro, não o contrário.

JS: Isso. Desde o começo o lado simbólico foi o que procurei em todos os pensadores que estudei. Todos os grandes pensadores que estudei são exatamente os teóricos desse dado simbólico. O Brasil faz parte dessa mesma teoria simbólica do capitalismo, como a Alemanha, os Estados Unidos e tal. É isso que eu faço na minha leitura: a gente tem que construir o que nenhum brasileiro construiu antes, porque, ah, “aqui é uma coisa muito particular”…

PAS: O clichê “só no Brasil acontece” tal coisa…

JS: É, a gente troca mercadorias e fluxos de capitais com o resto do mundo, mas aqui a gente tem uma cultura que é muito peculiar. O que aprendi exatamente é que não é assim. O capitalismo tem uma cultura que é universal. As coisas particulares que acontecem com os países você tem que compreender a partir disso, que é maior e é geral. Esse é o dado principal para que você veja todas as coisas em volta sem ser engambelado por esse tipo de mito nacional e coisas desse tipo.

PAS: A acusação de ser o Olavo de Carvalho da esquerda é muito grave, como você responde a ela?

JS: São duas tentativas na academia, de silenciar e, quando não pode mais silenciar, ridicularizar. São as duas estratégias possíveis. Eu nem vejo isso mais isso, agora cada vez mais vejo uma parte grande da academia, os jovens estão mais comigo, obviamente. Uma grande parte dela ou está num processo de convencimento ou está comigo. E fora da academia. A inteligência que é para mim a inteligência mais importante, muito mais numerosa, que está fora da academia, estou tendo, fico emacionado. Fui receber o Jabuti, eu nem imaginava, a plateia veio abaixo, meu Deus, que coisa (Jessé não venceu em sua categoria, mas foi mais aplaudido pela plateia que o vencedor).

PAS: É uma minoria, ou uma maioria silenciosa, que você não sabe de onde vem? Não é a imprensa que leva a ler seu livro, é por um outro caminho, não?

JS: É. Mas acho que é mais isso, um instante de crise que as ideias velhas não explicam, e eu passei a vida inteira a tentar montar essas novas ideias que explicam melhor esse estado, e têm a ver com os interesses de uma maioria oprimida que sofre a ação das ideias antigas e precisa de novas ideias para poder tomar uma nova atitude. Isso é o que a esquerda precisa compreender, e que acho que ainda não compreende. Precisa de uma narrativa. As pessoas não são abelhas, precisam de ideias, de uma narrativa. Se não tem isso você não pode acoplar isso em figuras, Getulio Vargas, Lula… É claro que são figuras importantes, mas é preciso ter uma concepção de mundo que seja maior que pessoas, senão você não tem um caminho seguro e real.

PAS: No fundo sinto em você um otimismo, mesmo em meio à desgraceira em que estamos. Como você consegue?

JS: Ah, claro, claro. Acho que dentro da política é muito relativo. Não é o nosso tempo normal. Você pode em duas semanas… Imagina o que houve de mentiras, imagina se a esquerda tivesse um dia para ela na Rede Globo. A concepção de país mudaria. Eu acho que isso pode ainda acontecer. Mas tem que ter um processo de debate, de reestruturação. E acho que tem uma chance de um novo começo, não sei se é agora ou se é depois. A crise é uma coisa em que pode se dar muito mal, mas é uma chance para o novo. É ao menos uma oportunidade para o novo.

 

(Entrevista realizada no final de 2017 e publicada originalmente na edição 985 da revista CartaCapital, em versão resumida.)

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