Cátia de França e sua banda - foto Ademar Filho
Cátia de França e sua banda - foto Ademar Filho
Cátia de França e sua banda – foto Ademar Filho

No Sesc Belenzinho, a paraibana refugiada na serra fluminense Cátia de França faz um show cheio de empolgação e de interjeições de espanto pela constatação da própria permanência, de sua eternidade pequenina. De início visível e declaradamente nervosa, ela recolhe apenas canções do álbum inaugural 20 Palavras ao Redor do Sol (1979), coproduzido pelo conterrâneo e então padrinho musical Zé Ramalho, para quem tocava sanfona e com quem anda “meio estranha” há muitos anos, segundo palavras públicas dela mesma, durante a apresentação. Entre tais canções estão “Kukukaya (O Jogo da Asa da Bruxa)”, celebrizada pela também conterrânea Elba Ramalho, e “O Coito das Araras”, apresentada a plateias maiores pela cearense Amelinha.

Terminado o show, a compositora e cantora recebe um a um as dezenas de admiradores que a aguardam em fila, no saguão do teatro, muitos deles portando cópias de velhos LPs da artista, esquecidos por muitos brasileiros, completamente desconhecidos por muitas mais brasileiras. Terminado o encontro com os fãs paulistanos e/ou refugiados, Cátia encontra mais um punhado de empolgação e amor para a entrevista que segue abaixo, em vídeo (registrado em duas partes por Marcos de Mattos) e em texto. De cara, ela olha para o repórter e o relaciona a um pequenino texto antigo, publicado na Folha de São Paulo, que tentava expressar a falta que ela fazia. A primeira oportunidade de estar cara a cara com a mãe da matéria musical paraibana vem acontecer apenas agora, 14 anos depois, antes tarde do que nunca.

Pedro Alexandre Sanches: Você estava mesmo muito nervosa no começo do show? Por quê?

Cátia de França: Estava, estava. Juntou tudo, emoção, mexer com coisa que é meu esteio, meu alicerce. O povo gosta dessa palavra bem pomposa – eu não sei falar difícil -, icônica. O que me segurou nestes anos todos foi o 20 Palavras ao Redor do Sol (1979), pela maneira como foi feito.

PAS: Seu álbum de estreia.

"20 Palavras ao Redor do Sol", 1979
“20 Palavras ao Redor do Sol”, 1979

CF: É, e me segurou este tempo todo num país que esnoba as coisas que eu faço. A minha criação não interessa à mídia burra. Foi a internet que me eternizou. Então era uma responsa mexer numa coisa feita com 32 anos (na verdade são 38), que eu sei que é de uma riqueza porque me nutriu estes anos todos. E de repente eu faço a releitura, e logo onde?, em São Paulo, que tem tanto carinho por mim.

PAS: Mas você sempre fica nervosa assim? Ficou nestes anos todos, ou desta vez foi mais?

CF: Não, eu fiquei mais, mas eu sempre fico. Porque do momento em que eu começar a não ter medo, borboletas no estômago, é porque estou prestes a Nabucodonosor, os pés de barro. Tem que haver essa inquietude pra garantir. Do meio pro fim começo a fazer graça, que eu sou muito palhaça, mas eu sempre fico nervosa.

PAS: Que hora você começa a se acalmar?

CF: É a partir da sexta música.

PAS: Tem essa conta?

CF: Eu digo assim, porque eu sinto, começo a fazer gracinha.

PAS: Sai a tremedeira.

CF: É isso. Então gosto logo de nivelar, pra não ficar palco e o povo aqui (gesticula um desnível com as mãos, palco bem acima, plateia bem abaixo). Digo “tô com medo, viu?, minhas pernas estão tremendo”. Quando faço isso, o povo vem pra mim. Pronto, aí eu ganho. Não tenho medo.

PAS: Queria que você contasse um pouco sobre sua origem familiar, genética, herança.

CF: Eita. O povo me pergunta de onde veio, música? Minha mãe era educadora, Adélia de França, que completou em julho do ano passado 100 anos.

PAS: Está viva?

CF: Não, já se foi. Foi a primeira professora negra, educadora, na Paraíba. Ensinou no interior e depois foi pra Paraíba e botou uma escola, com o nome do meu avô. Essa coisa de música veio por parte da descendência de mamãe. Do lado do meu pai é que era negro, minha mãe era mulata. Ela me botou desde cedo, eu, filha única, pra estudar piano clássico. Na época era chique ter uma filha tocando piano e um filho tocando violino. Mas só enquanto ela mandou em mim eu fiquei classicista. Fui pra Pernambuco, pra um colégio interno – piano não pode ir, eu fui com violão.

PAS: Não tem sangue índio aí também, não?

CF: Eu tenho, tenho, tenho (tira os óculos de grau), tenho, tenho. Tenho índio, tenho negro…

PAS: Tem árabe?…

CF: Tem, vai ver que tem também. É uma soma, uma gama. E de onde vem esse Carneiro? Meu nome é Catarina Maria de França Carneiro. O nome Carneiro foi dado pela perseguição aos judeus, não sei, tem uma história aí que dizem, vai ver que tenho uma “filigrama”. Carneiro é por parte de pai. França por parte de mamãe. Minha avó materna era Severina França, lavadeira em Guarabira, Pedra de Fogo, Rio do Peixe, lugares lindos, tudo na Paraíba. Sou formada professora em Pernambuco, meu diploma tinha extraviado, chegou na minha mão lá no Rio de Janeiro.

PAS: Hoje você mora em Lumiar, na serra fluminense?

"Hóspede da Natureza", 2016
“Hóspede da Natureza”, 2016

CF: Isso, fui pra lá fazer o disco novo, Hóspede da Natureza (2016, pode ser baixado aqui), em 2015, e fiquei lá até hoje. Não tinha nem dinheiro na época, foi fazendo no estúdio caseiro, mas aí dez anos depois a Natura viabilizou, entrei no projeto e a Natura botou no Brasil.

PAS: Você é uma exilada nordestina no Rio de Janeiro?

CF: Exilada, exilada… Exilada eu fiquei há mais tempo atrás. Ali, não. Pra um lugar lindíssimo daquele, não, foi uma força, uma energia me botou naquela área, naquele lugar. Tudo que eu represei ainda tenho que começar a botar pra o povo também compartilhar. Sair da minha zona de conforto e correr o risco. Tenho muito arquivo. Foram me dando coisas, fui represando, o Itaú Cultural me deu material, livro, DVD, fitas. Quero botar isso na roda pra todo mundo usufruir dessa fonte que represou em torno de mim.

PAS: Você ficou exilada em algum outro período? Qual período foi esse?

CF: Exilada, exilada foi no colégio interno, voltar do colégio interno. De uma religião pra outra fiquei também falando outra linguagem. Me tornei protestante, minha mãe não é de religião nenhuma, nem meu pai. Mas estudei, dos 15 anos até 19, aí fiquei com esse risco, que é uma coisa boa. Mas mamãe disse “não, quero que ela volte a ser o que era antes, mandei minha filha de um jeito e voltou de outro”. Abracei, fui católica, fiz primeira comunhão, e hoje sou espírita.

PAS: Rolam uns saravás no show…

CF: É, eu sou espírita, hoje sou do candomblé. É, sou do candomblé, sou feita, da casa de Oxum.

PAS: Desde que escrevi “por onde anda Cátia de França?” eu queria perguntar pra você: o que é kukukaya?

CF: Sim, ah, isso todo mundo me pergunta. As traduções são muito livres. Esse nome é coisa de cigano da Bulgária. Tem um livro dizendo isso.

PAS: Pensava que era indígena.

CF: É não, é não. Uma senhora disse que era da Amazônia, não. Eu tenho esse livro no meu arquivo, é búlgaro. Prova é que as quadrinhas não são minhas. Meu é só quando eu digo “são quatro jogadores nessa mesa”, aí é minha. Mas “eu tenho dois olhos, eu tenho dois pés” é deles, “o amor é brasa”, “quando eu for chuva você é fogo”, tudo isso é coisa de cigano. É cantado em situações diferentes, quando casa canta desse jeito. Quando é criança, que a mulher tá grávida, diz “vem, amor, vem com saúde”, “o ovo é redondo”. Não é de minha autoria, é uma canção que é como uma espiral, meio cigana.

PAS: E você é cigana também?

CF: Devo ser, eu sou devota de Santa Sara. Eu me pego muito com os deuses. Essa profissão o povo pensa que é pra tirar onda de artista, não. Eu considero como uma missão, eu devo a Deus, a Jesus Cristo. Eu cantar, as pessoas ficar me vendo, uma menina bem nova se emocionando, é uma responsabilidade minha.

PAS: O que é o jogo da asa da bruxa?

CF: Vige, isso é por conta dos ciganos, é coisa deles.

PAS: Você é bruxa? Lá em Lumiar tem umas bruxas, a Luhli…

CF: Tem, tem. Tem, Luli & Lucina. O povo criou uma crendice de que o que é bruxa é bruxa do mal. Não, tem a do bem e tem a do mal. Tudo tem as duas faces. Mesmo rebuscando a Bíblia tem todo lado. Se você for olhar com um olhar de compartilhamento encontra coisa boa, mas se você for uma alma suja vai ler Salomão e vai pensar que é pornografia. Não é nada disso, você é que faz os caminhos.

PAS: Não sei se você sabe, Yoko Ono tem um disco que se chama Sim, Eu Sou uma Bruxa (2007).

"Yes, I'm a Witch", 2007
“Yes, I’m a Witch”, 2007

CF: É, admitindo. E ela é mesmo. Ela desuniu os Beatles, né?

PAS: Mas ela é uma bruxa do bem, você não acha?

CF: Mas claro, e agora ganhei o livro dele, as cartas de John Lennon, desta grossura, tô doida pra ler. Mas é, ela tá até hoje firme, é um pilar, e já tá bem idosa.

PAS: E bruxa também é mariposa, lá no Paraná, de onde eu venho.

CF: Pronto, também no Nordeste. Quando entra dentro de casa todo mundo quer botar pra fora, não sabe que tem todo um casulo que virou aquilo, que chegou àquilo. Vem esse preconceito e acha que é coisa do mal. Mas não, de jeito nenhum. Eu me considero.

PAS: Você está falando aqui com um fã de bruxas, de maneira geral.

CF: Wicca, wicca. Eu tenho um livro da wicca, pra ver qual é a cor do dia, qual é o incenso. Tenho, tenho.

PAS: Como você disse no show, o Zé Ramalho produziu seu primeiro disco, você era sanfoneira dele e hoje vocês andam “meio estranhos um com o outro”. Por quê?

"Estilhaços", 1980
“Estilhaços”, 1980

CF: Há muitos anos. Menino, é uma coisa tão delicada. Primeiro, ele fez o primeiro disco e no contrato dizia que tinha que fazer o segundo, de imediato. E eu tinha escolhido a filha de João Cabral (de Melo Neto) (Inez Cabral) pra fazer a capa. E ele teve um envolvimento com a filha de João Cabral, ele disse “sou eu ou ela”, estavam brigados. Eu não podia brigar com a filha do homem que o nome do disco é um poema dele, e tem muita coisa minha que é dele. Então entre João Cabral e Zé Ramalho eu fiquei com João Cabral. E paguei um preço altíssimo, porque deixei as asas do meu produtor, que ele era, estava dando as cartas na época, e continua dando. Eu peitei isso e paguei um preço muito alto, porque de repente até adiei uma coisa que poderia ter sido mais rápida. Quem sabe ter feito o segundo disco com ele, devia ter deslanchado minha carreira. Mas tudo não acontece por acaso, eu não estava pronta pra encarar o sucesso, como não estava pronta pra lidar com dinheiro. Eu ganhei no primeiro disco, em Palavras, e passou dentro das minhas mãos. Eu não soube aproveitar, empregar, investir. Na época eu bebia, e o álcool era a porta. Então tudo que minha mãe deixou pra mim diluiu, e também o dinheiro de adiantamento. Então veio daí esse senão com Zé. Mas a idade amansa a gente.

PAS: Sinto que existe uma saudade.

CF: Existe, de minha parte existe, eu tenho uma profunda…

PAS: Deve existir da dele também.

CF: Também, porque ultimamente ele falou que fez baixo numa música minha, “Sustenta a Pisada”, citou sem… Meu diretor musical disse: “Ele falou em você”. É o tempo, ele mudou também, é outra realidade. Se tiver que ser Deus aproxima a gente.

PAS: Como era isso de ser uma mulher sanfoneira dentro da banda de Zé Ramalho?

CF: Já tinha muita mulher sanfoneira na área. É porque não era muito expandido, mas tem, lá em Pernambuco tem muitas, Terezinha do Acordeon. No meu caso, era um universo estritamente masculino, é como futebol.

PAS: A música é bem machista, né?

CF: É, é o universo deles, né? O que abrandou o Zé foi nascer uma filha, Maria, aí Zé quebrou o lacre. Ele terminou com essa história de dizer que nasceu um ovo roxo. Veio Maria, ele viu que aqui tem uma cabra, no mundo dos bodes. A idade chega, a gente amansa. Eu gostaria tanto, ele tem um tango que ele canta, não sei se foi de Chico Buarque, uma música que fala como se fosse regendo um pilotão, que eu adoro. Tem coisas dele que eu queria até gravar, de paraibanos, ele, Vital Farias, “Nave Mãe” (1980), e por aí vai.

PAS: Você falou do mundo masculino, e reparei logo no início do show, você, única mulher, líder de uma banda só de homens. Por que só tem homens? Eles são bonzinhos com a líder mulher? Homens não gostam muito de ser liderados…

CF: São. Eles são meio assustados comigo. Quando abraço eles, ficam assustados, quando beijo. Não sei dar beijinho no ar, a gente dá beijinho em moços que a gente conhece. Quando pego neles, quando vêm dentro da kombi junto comigo, ficam meio incomodados, porque não me decifram.

PAS: O jogo da asa da bruxa…

CF: Chego perto, sou feminina, embora a minha aparência seja agreste. Isso é uma defesa minha. Mas sou muito carente, tímida. Chego perto e quebro, quando abraço, todos eles. O baterista é assustado comigo, o guitarrista tá amansando, o diretor musical, não, tudo bem.

PAS: E você nunca tocou com mulheres, nunca teve banda de mulheres?

CF: Não, nunca fiz, não. Já fiz um certo tempo com As Absurdas, a primeira banda feminina da Paraíba, financiada pelo Sesc da Paraíba. Eu trabalhei com elas, mas não viajando muito tempo. A gente fez um trabalho isolado. Não tenho numa restrição, não, já fiz alguma coisa com Simone Sou, muito rapidamente, com Khrystal, que está aqui em São Paulo, uma que canta coco, compõe maravilhosamente bem. Ela já é sucesso, fez um programa de sucesso na TV Globo, esqueci o nome agora – The Voice, ela ganhou até um certo ponto. A gente fez coisa junto, eu, ela e Xangai. Xangai é um trovador com alma feminina. O próprio Vital mesmo.

PAS: Chico César estava aqui assistindo ao show.

CF: Também, de uma doçura, uma doçura.

PAS: É um discípulo seu?

CF: É quase como fosse um neto, me beijou. Eu já tava quando ele foi chegando. Tem toda uma doçura. Tem paraibanos, tem um disco meu inédito, Cátia de França Canta Pedro Osmar, uma coisa de uma beleza fantástica. você tem que ter. Não foi lançado por entrevero de produção, e danou-se, mas é pra ganhar prêmio, eu intérprete do Pedro Osmar, do Jaguaribe Carne. Nunca cantei nada de ninguém.

PAS: Nunca cantou? Sempre só suas?

CF: Só coisas minhas.

PAS: E isso de ser mulher e compositora? Não tem tanto espaço, ou pelo menos não tinha.

CF: Mas tem muita mulher compositora, Sueli Costa, tem, tem, tem. Tem uma geração nova, que não sei nem assim citar. Incomoda. Até eu tocando. Quase sou é um centauro, metade mulher, metade violão. Então o povo diz “ela toca violão como se fosse homem”. Só porque é redondo, visceral, eu sozinha? Por muito tempo eu fiz show sozinha, porque não tinha dinheiro pra pagar todo mundo, então me basto. Aí o povo bota esse rótulo, “ela toca violão porque é de homem”. Porque eu seguro mesmo, porque sou o cão chupando?

PAS: Você beija o violão várias vezes durante o show.

CF: Eu agradeço. Eu agradeço, porque é minha continuação, e me defende também. Eu cantava sentada, com medo, porque tenho uma profunda timidez. Aí a filha de João Cabral disse: “Fique em pé, fique em pé e se exponha com risco”. Mas o violão cria aquela barreira, cria meu escudo. E eu beijo porque é através dele que eu sobrevivo.

PAS: E você mandou aquela banana (durante o show) pra quem?

CF: Pra quem tava mandando energia ruim pra mim.

PAS: Tinha alguém fazendo isso?

CF: Não ali. É gente de outro canto. Tinha muita gente falando “mas fazer 20 Palavras, você ensaiou tão pouco, não vai dar certo, você só chamou gente desconhecida, esses meninos são moleques, novos demais, você tem que chamar as cabeças coroadas”. Mas as cabeças coroadas estão ocupadas descascando pepino, porque o Brasil tá uma (se interrompe)… culturalmente está confuso.

PAS: Politicamente também.

CF: Deus me livre. Quando canto Sustenta a Pisada, “prepara os olhos e a garganta”, eu me refiro a Brasília. É um escândalo atrás do outro. O último agora é o pessoal da agropecuária misturando carne com papelão e vendendo carne podre pro exterior, e todo mundo comendo. É em todos os setores, generalizou, o lixo contaminou tudo, não é só numa área, em Brasília. O negócio é em todas as camadas. Eu sou altamente politizada. Minha mãe tinha em casa Dom Helder Câmara e o pôster de Che Guevara. O livro de cabeceira de minha mãe era Josué de CastroGeografia da Fome (1946). Eu não posso negar isso, senão levo uma carreira do cão do pessoal.

"Geografia da Fome", 1946
“Geografia da Fome”, 1946

PAS: O que você sentiu quando derrubaram a primeira mulher presidenta da história do Brasil, Dilma Rousseff?

CF: Profundamente incomodada, entendeu?, profundamente incomodada. Porque não tem ninguém provando que ela fez alguma coisa. O outro (Luiz Inácio Lula da Silva), mataram dona Marisa (Letícia Lula da Silva). Os médicos disseram, “deixa ela morrer mesmo”. Quem já se viu um cara que fez um juramento, médico, e disse isso? É muita nojeira, entende? É a tendência… Só que não depende da gente. Se a Terra está emitindo essas coisas podres, vai chegar uma hora que vem uma força de fora, consertar tudo, e vai todo mundo pagar. Os índios americanos dizem que é como fosse um meteoro, que vai cair em algum canto e o mar vai subir e vai ser um tsunami da moléstia. Todos nós vamos pagar uma coisa que foi se contaminando.

PAS: Tem que mandar muita banana mesmo…

CF: Ah, eu dei aquela banana, eu saí do sério, pra poder apertar o que vinha de lá de longe. Por eu ser da área do Rio de Janeiro, houve muita praga, pra eu não vir, não fazer.

PAS: Tem que pular muito obstáculo, né, Cátia?, pra conseguir fazer as coisas.

CF: Tem, porque se for 10 mil, são 7 mil querendo me derrubar, e o restante está apostando em mim. Quando esse povo me abraça e eu autografo, eu sei. Preciso vir a São Paulo e demorar aqui, porque é outro tempo de resposta. Mesmo no show que faço três músicas, com Ortinho do coco e com Davi Moraes, o povo fica dizendo “cante mais, cante mais”. Mas tem que ter um alicerce financeiro, eu não quero mudar a banda. Já tem dois músicos fantásticos, Marcelo Bernardes no sopro e Chico Chagas, que tocou com Cássia Eller, na sanfona e teclados, um monstro. Tem que dar crédito a essa geração, um menino novo daquele, fazendo os arranjos que faz, e escreve na partitura, coisa que eu não sei. Estou com as pessoas certas. E tenho que ir pro exterior, pra ganhar noutra moeda, fazer minha independência financeira. Tenho minha casa na Paraíba, mas ainda moro de aluguel no Rio de Janeiro. Tem toda uma dificuldade. Tenho um show meu de Bozo, que converso e canto. Dura três horas, leio cordel – também tenho cordel -, leio livros que me influenciaram, livros da Paraíba, Eduardo GaleanoManoel de Barros. Eu sou resultado da minha mãe, que era professora e me deu livro desde cedo. Faltava manteiga na minha casa, mas tinha livro. Ela obrigava meu pai a ler livros de louva, porque ele tinha mania de passar saliva no livro, ela dizia “leia de louva, não mexa nos livros”. Também minha música permanece porque é tudo sobre livros, eu engravido por eles. E gosto de compor com outras pessoas, mas não é sempre que essa germinação acontece. Minha inclusão digital aconteceu tardiamente.

"As Veias Abertas da América Latina", 1971
“As Veias Abertas da América Latina”, 1971

PAS: Mas aconteceu?

CF: Aconteceu em 2005. Aí eu tive a meu dispor um computador.

PAS: Em Lumiar?

CF: É, em Lumiar. O nome da cidade mesmo é São Pedro da Serra. Lá onde eu morava, na casa na Paraíba, roubaram meu violão Di Giorgio, que era caríssimo, roubaram meu som. Morava numa área de risco, não podia ter computador senão iam roubar. Então em 2005, na serra, é que tive a inclusão digital. Foi quando comecei a mexer em computador, amei o Google (acerta o gorro que está caindo).

PAS: Estavam aparecendo todos esses cabelos brancos lindos.

Cátia em foto de Mariana Kreischer
Cátia em foto de Mariana Kreischer

CF: (Tira o gorro.) É, fica caindo. Totalmente. Eu pintei acaju já. Onde já se viu nego de cabelo vermelho? Parecia um mico-leão-dourado. Mas é branquinho mesmo, agora eu assumiu. Tá cheio de dread.

PAS: Só pra terminar, queria dizer que o show foi lindo de morrer. Muito obrigado por essa obra, de compositora – é raro, pelo menos não chega até a gente aqui tantas artistas mulheres do Nordeste, é como se eu estivesse ao mesmo tempo, tudo junto, com Zé Ramalho, BelchiorEdnardoFagnerAlceu ValençaGeraldo Azevedo

CF: Dianna Pequeno

PAS: Dianna Pequeno, essa é mulher, Elba Ramalho. Mas são mutos mais homens que mulheres, pelo menos que ficam conhecidos por aqui.

CF: É, fica aquela interrogação, né? Incomoda, se canta bem, se toca bem. Até a gente quebrar essas arestas vai levar muito tempo. Está predominando a chegada dos homens verdes.

PAS: Verdes?

CF: Verdes, é, uma tônica de alma feminina. Eles são machos, mas têm uma doçura. Aí doma o Zé Ramalho, vem uma filha, ele parou dessa história.

PAS: Volta, seu Zé Ramalho, pra perto desta mulher.

CF: Eu falo muito nele, e canto aquela música que fiz pra ele. A gente vai se encontrar. E você, numa época que ninguém falava comigo, você bota na Folha de São Paulo: “Por onde anda Cátia de França?“. Aquilo acendeu em mim, você instigou, você acordou uma coisa que tava…

PAS: Eu podia ter procurado te encontrar, e não procurei, só vim te encontrar agora pela primeira vez.

CF: Agora, você escreve numa revista…

PAS: CartaCapital.

CF: É, que é o… (faz sinal positivo com a mão).

PAS: É uma revista chique.

CF: É, quando me disseram eu digo: é isso aí, ele é dos bons.

PAS: Não é, como você disse no show, a imprensa impositiva. Não gostamos, não gostamos.

CF: Não, e eu também não posso, porque minha mãe, onde estiver, se eu fizer concessão pra ter uma tranquilidade financeira, eu tô lascada. Vital dá um murro em mim, Geraldinho dá. Elomar manda uma bomba em cima de mim.

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