Antevisto em anos recentes pelas bravas Tata Amaral Anna Muylaert, o admirável percurso das mulheres diretoras na safra atual do cinema brasileiro deve ganhar nos próximos meses a adesão da estreante Caroline Leone, ainda desconhecida no Brasil natal, mas já premiada pela crítica na mais recente edição do Festival de Roterdã, na categoria de longas de estreia. Antes, a diretora já havia apresentado dois curtas-metragens de semblante feminino, batizados Dalva (2004) e Joyce (2007).

O ainda inédito Pela Janela, de Caroline, acerta em cheio no espírito do tempo, ao acompanhar por uma perspectiva 100% feminina nossa trajetória de colapso no campo da precarização do trabalho e da previdência social. Pela Janela é anterior à aprovação da Lei (sic) da Terceirização, mas se o galope rumo ao abismo não for detido tem grandes chances de estrear comercialmente depois do desmonte final das aposentadorias pelo golpe de Estado.

Todos esses temas, assim como o da ascensão (e queda) social do (e no) Brasil do início do século XXI, estão condensados na figura da terna personagem Rosália (Magali Biff), sucessora de Dalva e de Joyce. Operária-modelo de fábrica na antessala da velhice, Rosália é demitida sumariamente por uma nova diretoria, após décadas de devoção ao patronato. E vai “comemorar” o desemprego numa involuntária tour rodoviária pela Argentina (com passagem catártica pelas Cataratas do Iguaçu, no Paraná-Argentina-Paraguai), na primeira viagem internacional de sua existência. Caroline conta um pouco sobre Pela Janela, enquanto o filme não vem nos banhar os olhos.

Magali Biff em cena de "Pela Janela", de Caroline Leone

 

Pedro Alexandre Sanches: Queria saber um pouco da sua história e da ligação com o cinema.

Caroline Leone: Sou paulistana, formada em cinema pela Faap. A ligação com cinema vem desde muito cedo. Sempre fui cinéfila e vivia nos cinemas da Paulista. Também tinha muito interesse pela parte técnica, e aos 13 anos já gravava e montava pequenos filmes e documentários no computador de casa, aos trancos e barrancos. Hoje isso é tão comum, tudo ficou muito tão mais fácil, mas em 1994 era algo bem difícil de realizar sozinha.

Tenho dois curtas dirigidos e escritos por mim: Dalva, em 16mm, de 2004, e Joyce, em 35mm, de 2007. Ambos viajaram bastante e foram muito premiados. Com os prêmios de Dalva fiz Joyce, e com Joyce consegui os contatos no Brasil e na Argentina pra realizar Pela Janela.

Antes de ser diretora sou montadora. Comecei a seguir esse caminho já na faculdade, trabalhando como assistente de montagem e também dentro da própria Faap, como bolsista. Desde então trabalho montando longas, documentários, curtas, videoclipes e publicidade.

Vejo cinema como a arte da empatia e da percepção do outro. Esse é pra mim o principal poder do cinema, e é algo extremamente valioso em qualquer tempo, e agora mais do que nunca, talvez. Nos meus filmes tento estabelecer entre espectador e personagem uma jornada empática antes de tudo, ir pouco a pouco, em camadas, colocando quem assiste na pele de quem está sendo representado através de sons, linguagem, proximidade e ritmo. É essa minha principal motivação, e ela vai pra além da história inclusive. Ela é a razão deu continuar insistindo e existindo neste mundo desigual e injusto.

PAS: Como surgiu e se desenvolveu Pela Janela? O que você precisava e conseguiu dizer com esse filme?

CL: O primeiro lampejo do Pela Janela surgiu em uma viagem que fiz à Argentina, logo após meu curta Joyce. Fiz uma viagem longa e sozinha pelo país, e na volta peguei um ônibus de Buenos Aires até São Paulo. A viagem dura três dias, e ao meu lado sentou-se uma mulher que havia viajado com o marido, de carro, pra Buenos Aires. O marido era motorista, tinha conseguido um trabalho com uma família argentina pra levar o carro da família até uma fazenda nos arredores de Buenos Aires, e ela o acompanhou. Depois da viagem de carro, ela ficou sozinha passeando por Buenos Aires por alguns dias, sem o marido. Ela nunca tinha saído de seu bairro em São Paulo. Era uma mulher muito humilde, nunca tinha sequer imaginado poder fazer algo assim um dia, era uma costureira que tinha dedicado a vida aos filhos, ao marido e ao trabalho. Eu e ela passamos os três dias da viagem de ônibus conversando sobre a vida, a morte, estar em outro país, ser estrangeira, esse privilégio da viagem, poder ver a vida de fora. Me impressionou como com muito pouco nos ligamos tão fortemente, eu com uns 26 anos, e ela com quase 70, gerações de mulheres tão distantes não só pelo tempo, mas por toda a diferença social e cultural entre nós.

Na volta da viagem escrevi bastante sobre esse encontro, e um tempo depois escrevi o primeiro tratamento do filme. Entrei em contato com algumas produtoras, e a Sara Silveira, da Dezenove Som e Imagens, demonstrou interesse em produzir o filme. Começamos a enviar o projeto para laboratórios, e fui selecionada pra vários deles, o que me ajudou a ir escrevendo o roteiro. Com o prêmio de desenvolvimento do Ibermedia refiz a viagem de carro entre Buenos Aires e São Paulo três vezes, pesquisando locações, histórias, e escrevendo as cenas pros lugares em que ia encontrando. Conheci muitos personagens do filme nessas viagens também. Aproveitava muito do que acontecia comigo nas viagens para desenvolver as cenas, e voltava com muito material para trabalhar. O filme foi crescendo e em 2011 fechei a primeira versão do roteiro. De 2011 até 2015 foram longos anos de espera pra captação, e uma época um tanto nebulosa pra mim por conta disso.

Magli Biff em cena de "Pela Janela", de Caroline Leone

O filme renasceu quando conheci uma outra mulher que me inspirou e transformou ainda mais a história: Maria, chefe de produção de uma fábrica de reatores em Pirituba (que é a fábrica em que filmamos). Eu usava meu tempo livre para vivenciar a fábrica e a vida de Maria. Trabalhei na fábrica algumas vezes, me aproximei bastante. Ela é uma mulher forte, independente, de 65 anos, uma vida de sobrevivência em São Paulo. Chegou a chefe de produção sem ter qualquer formação pro cargo. Ela dizia ser a fábrica, ela se sentia a fábrica.

Reescrevi então o roteiro, e ao ganharmos o primeiro edital de produção refiz mais duas vezes a viagem de carro, com esses novos olhos. Pesquisei as músicas de fronteira, conheci as guarânias, Cascatinha e Inhana, me lembrava da mulher do ônibus que havia nascido nas plantações de café, e de como a vida dela e de Maria iam se cruzando com a minha, de como éramos muitas mulheres unidas por um certo fio de resistência.

Queria falar sobre a morte, queria retratar uma mulher anestesiada pela sobrevivência que encontra uma encruzilhada na vida, e usar este mote para fazer uma reflexão sobre o envelhecimento, sobre a necessidade de ser “útil” à sociedade, sobre as possibilidades de vida que são impostas a todos, sobre a natureza e o mundo que aflora e abre os poros para o incerto e o impermanente. Queria refletir também sobre o papel da viagem na transformação do nosso olhar para o outro, para nós mesmos e para o mundo. Acho que viagens têm um sentido análogo ao de se experimentar um filme no cinema, inclusive, dependendo da maneira como se viaja e do tipo do filme que se vê.

Em outra camada queria também retratar uma relação homem/mulher que fosse equiparada, de dois iguais, por isso José e Rosália serem irmãos. Essa relação fraterna me pareceu rica para trabalhar uma certa igualdade de gênero, sem embates românticos ou de poder, de companheirismo e afeto.

Filmar na Argentina e no Brasil também me permitia falar sobre fronteiras invisíveis e muitas vezes desnecessárias, sobre nossa identidade latino-americana tão próxima e tão distante ao mesmo tempo. Vieram assim as guarânias, a música caipira paulista, a música folclórica e a irmandade do povo argentino e brasileiro, entre tantas outras coisas que acredito que o filme transborde de maneira sutil.

As filmagens aconteceram em outubro e novembro de 2015, e a montagem terminou em abril de 2016. 2016 foi mais um ano de espera para a captação de fundos de finalização, e o filme ficou realmente pronto só em janeiro de 2017, um pouco antes da estréia em Roterdã.

PAS: O Brasil tem avançado muito (em relação ao que sempre foi) no aspecto de permitir a voz feminina na autoria cinematográfica. Que importância tem isso? Como você se localiza nesse contexto?

CL: Sim, o Brasil avançou neste ponto, mas mulheres ainda são franca minoria na direção, assim como em todas as outras áreas da produção cinematográfica. Tem muito trabalho pela frente… De qualquer maneira são muitas as mulheres cineastas que apareceram nos últimos anos, e isso já dá uma refrescada no ambiente. A importância de termos mais mulheres é darmos voz a uma variedade maior de maneiras de pensar e representar o mundo, além de democratizar o acesso às ferramentas de comunicação e cultura para todos, o que acaba tendo reflexos importantes na sociedade.

Não acho que exista um “cinema feminino”, isso limita e cria um gênero excludente, mas acho que diferentes realidades e vivências trazem diferentes olhares pra cada tema, independentemente se é um filme de ação, terror, drama ou comédia. No meu caso, busco retratar personagens femininas fortes, porque é sobre elas que recai meu interesse principal, e faço isso fora do círculo delimitador dos estereótipos de feminino e sua representação usual no cinema.

PAS: Sobre o prêmio em Roterdã, pode contar o que ele significa para você?

CL: O prêmio em Roterdã foi uma imensa alegria e um sinal de que não estou tão sozinha quanto pensava. O processo do filme, da direção, foi extremamente solitário, uma das épocas mais difíceis da minha vida. A partir do momento que fomos selecionados para a competição me senti acolhida e em um pouco mais em paz com todo o processo. O prêmio foi algo totalmente inesperado e me fez acreditar que de alguma maneira tudo aquilo que gestei por tanto tempo tinha encontrado um lugar no mundo. Tivemos muitos convites de festivais logo em seguida, e o filme vai viajar o mundo, com certeza. É um prêmio importantíssimo e dificílimo de conquistar. O que espero, sinceramente, é que este prêmio torne mais fácil a realização de meu próximo filme, que ele abra portas para que isso aconteça em um espaço de tempo menor que os sete anos que esperei para Pela Janela.

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