Começa essa semana a CPI da Lei Rouanet, comissão criada com assinaturas de 212 deputados (são necessárias 171 para criar uma CPI) e que será presidida pelo deputado Alberto Fraga (DEM).
Os deputados abriram a comissão com intuito claramente político, o que é normal: todas as CPIs são instaladas para fustigar adversários políticos, não me lembro de uma que tenha sido aberta por necessidade espontânea e demanda genuinamente popular.
Houve recentemente a descoberta de uma quadrilha que fraudava projetos, com conluio de funcionários de empresas gigantescas, para lesar o sistema de incentivo fiscal da Lei Rouanet. Essa quadrilha foi desbaratada com a ação interna dos sistemas de fiscalização do incentivo, e seu enquadramento penal (e consequente prisão) foi conduzido pela Polícia Federal.
Mas o que move o Congresso não é esse eventual desvio de finalidade que, de resto, já alcançou até conselhos da Receita Federal; o objetivo é claramente constranger artistas que porventura tenham sido credenciados pela Lei Rouanet para captar recursos para projetos culturais.
Henilton Menezes, ex-secretário de Fomento do Ministério da Cultura, passou os últimos anos cruzando informações do uso da legislação (que são públicas, estão à disposição no site Salicnet) com outras fontes, como a Receita Federal. Descobriu o seguinte:
“Nas prestações de contas dos projetos executados, identificamos que 4,97% dos  recursos oriundos do incentivo fiscal foram investidos em transporte, 3,17%, em mídia, 1,62% em hospedagens, 1,27% em alimentação. A maior fatia, 68,31%, foi aportada em estruturas de produção artísticas, numa variedade incontável de itens, como figurinos, cenografias, estúdios de gravação, gráficas, fabricação de discos, instrumentos musicais, sonorizações e iluminações de espetáculos, estruturas de palco, até mesmo materiais e serviços de construção que são utilizados em centenas de projetos de restaurações de bens históricos, incluindo engenheiros e arquitetos. Cada item desses teve um grande número de profissionais envolvidos, o que gera um grande impacto na formação de empregos no País. Apenas 15,32% desses recursos foram utilizados para pagamento de cachês artísticos para músicos, atores, dançarinos, escritores, roteiristas, artistas plásticos, artesãos etc.”
Apenas 15% dos recursos vão para cachês. O estudo de Henilton tem mais de 600 páginas e virou livro, A Lei Rouanet Muito Além dos (F)atos, da Editora Manole, que sairá em breve.
O eventual uso político da Lei Rouanet é um dos pontos aos quais se aferram os deputados mais belicosos da CPI, como o seu presidente. Conversei com ele recentemente, e tenho minhas dúvidas se Fraga sabe como funciona o mecanismo de incentivo – a Lei Rouanet não “dá” dinheiro, ela autoriza o proponente a buscar o dinheiro no mercado. Se conseguir, o que é raro, a empresa que o ajudou pode ter abatimento do dinheiro investido no Imposto de Renda no ano seguinte.
Claro que pode acontecer de uma empresa estar mancomunada com um artista ou produtor e fazer uso dessa autorização para locupletar-se. Não acho que seja esse o objetivo da CPI, mas se for, gostaria de sugerir um caso para exame: o Instituto Fernando Henrique Cardoso, atual Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso.
Em 2015, a fundação de FHC conseguiu a aprovação da Lei Rouanet para projeto de manutenção de sua sede durante três anos, no valor de R$ 6 milhões. O objetivo é “dar continuidade à descrição, preservação e informatização” do acervo do ex-presidente – dessa vez, ele incluiu o pai, Leônidas, e o avô, Joaquim Ignácio, no lote. E também os seus ex-ministros Paulo Renato Souza e Sergio Motta (grandemente reconhecido pela contribuição à emenda da reeleição).
Veja no link abaixo: a Lei Rouanet paga desde a recepcionista, arquivistas, bibliotecárias, office-boys até os armários e as estantes de aço do instituto. Paga aguarrás e papel almaço, lápis, pincel, tesoura.
Esse recurso de FHC à Lei Rouanet é recorrente. Com R$ 14,5 milhões captados desde o início de funcionamento da legislação, ele é um dos 100 maiores utilizadores das verbas do sistema. O projeto trienal da atualidade, que vai até 2017, é o seguinte:
Mas FHC é também usufrutuário indireto dos recursos da Lei. Ele ganhou R$ 150 mil incentivados para ser o apresentador da série Os Inventores do Brasil, de Bruno Barreto.
Foi convidado para receber R$ 10 mil para uma palestra na feira literária Flipoços, entre outros casos. Acabou não indo – a feira alegou falta de recursos. É uma personalidade da política cuja saúde das finanças pessoais tem bastante lastro na Lei Rouanet.
Neste novo projeto trienal, que já captou R$ 3,2 milhões, o Banco Safra, indiciado na Operação Zelotes, é um dos maiores investidores no projeto de FHC, assim como o banco Itaú e a IBM (que foi mencionada pela Polícia Federal no caso dos fraudadores da Lei Rouanet que deram festa de casamento em Jurerê Internacional).
1
Banco J. Safra S.A
2
Cia Itaú de Capitalização
3
Cia Itaú Securitizadora de Créditos Financeiros
4
IBM – Brasil Indústrias Máquinas e Serviços Ltda
5
Safra Distr. de Titulos e Valores Mobiliários Ltda
6
Safra Seguros Gerais S.A.
7
Safra Vida e Previdência S.A.
8
Sercom Comércio e Serviços Ltda.

Tenho minhas dúvidas se a atual incursão de FHC nos bastidores da Lei Rouanet vai interessar à CPI em formação na Câmara Federal. Foi apenas uma ideia que me ocorreu. A comissão parece mais interessada em punir o delito de opinião política, constrangendo e intimidando. Mas algo que começa assim, como uma expressão da vendetta política, pode terminar descortinando as nervuras mais expostas da própria natureza do vingador.

ATUALIZAÇÃO: A organizadora do Festival Literário de Poços de Caldas, o Flipoços, Gisele Corrêa, escreveu post no seu Facebook apontando uma incorreção na reportagem acima. Ela diz que FHC, embora escalado, não foi até Poços de Caldas em 2015 porque ela não conseguiu captar os recursos. Eis as alegações dela, que procurarei responder no pé dessa mesma carta:

NOTA DE ESCLARECIMENTO: CARTA CAPITAL PUBLICA MATÉRIA INVERÍDICA CITANDO O FLIPOÇOS

“Colunista Jotabê Medeiros afirma na sua coluna de 19 de setembro da Carta Capital (on-line) e no seu Blog que o Flipoços, Festival Literário de Poços de Caldas, pagou um cachê de 10 mil para FHC, através da Lei Rouanet”
Como curadora do Festival Literário de Poços de Caldas e responsável por esse festival há onze anos, sinto-me na obrigação de vir a público esclarecer as inverdades que o jornalista Jotabê Medeiros publicou esta semana no seu Blog e na sua coluna da revista Carta Capital on-line, do editor Mino Carta, onde cita nosso evento, Flipoços, em uma matéria de fundo político-partidário, sem ao menos, averiguar a veracidade dos fatos e ouvir as partes. Cita que minha empresa, GSC Eventos Especiais Ltda., realizadora do Flipoços – Festival Literário de Poços de Caldas, captou recursos pela Lei Rounet e pagou cachê de R$ 10.000,00 para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Quero aqui esclarecer algumas informações que se fazem necessárias:
1) A Lei Rouanet, é um instrumento legal e lícito para se trabalhar com cultura no Brasil. Lamentavelmente, sem essa possibilidade, pouco ou quase nada aconteceria nessa área no País.
2) O fato de o MINC ter nos autorizado a captar determinado valor, NÃO significa que tenhamos captado os recursos. O MINC, apenas autoriza que empresas patrocinadoras repassem um percentual do valor de imposto para um projeto cultural que queira apoiar.
3) Quando inscrevemos nossos projetos no Programa Nacional de Cultura pela Lei Rouanet, descrevemos tudo que gostaríamos de realizar no evento. É praxe listar convidados, bem como todos os custos do projeto. Cabe ao MINC aprovar ou não determinados itens e rubricas.
4) FHC estava, sim, listado como possível escritor convidado para participar do Festival Literário de Poços de Caldas 2015 aprovado pelo MINC. No entanto, ele NÃO VEIO e não houve a sua contratação. Desse modo ele NÃO recebeu nada do Flipoços 2015.
5) FHC apenas foi citado em nossa lista de convidados, como qualquer outro escritor programado para aquela edição. Mesmo que ele tivesse recebido cachê para palestrar, não seria nenhum ato ilícito, afinal, não há nenhum mal em escritores participantes de festivais literários receberem cachês, como já fazemos com outros convidados;
6) Nosso Festival, enquanto proponente, NUNCA conseguiu captar todo o recurso aprovado pelo MINC. Muito pelo contrário, captamos valores que não chegam a 50% do total aprovado e ainda assim, realizamos um festival de enorme grandeza.
7) Nosso projeto Flipoços 2015 foi aprovado pelo MINC na gestão passada, portanto, se houvesse algum mal em tê-lo como palestrante, a própria comissão avaliadora dos projetos teria cortado esse item.
8) Sou absolutamente defensora da Lei Rouanet, creio ser um dos melhores mecanismos já inventados para fomentar a cultura no Brasil e não pode acabar nunca. Ocorre que algumas empresas, artistas, captadores entre outros se aproveitam – indevidamente -, desse instrumento para benefícios próprios e denigrem a imagem, não só da própria Lei como de empresas sérias, profissionais e honestas, nivelando a todos no mesmo padrão de corrupção e safadeza a que estão acostumados.
9) A GSC Eventos Especiais empresa com 27 anos, realizando alguns dos mais importantes eventos culturais, científicos e empresariais de Poços de Caldas e sul de Minas, realizadora do Flipoços, Festival Literário de Poços de Caldas, tem uma história de vida limpa e transparente. Ao contrário do que trata a infeliz matéria desse jornalista (que nem conheço), há anos temos uma feliz relação profissional com o MINC, com todos nossos patrocinadores, fornecedores e convidados do festival.
10) Sou apartidária, não comungo e nem compactuo com qualquer partido político. Acredito em Deus, em mim, nos meus colaboradores na minha consciência ética e profissional e, sobretudo, nesse trabalho lindo e maravilhoso que é o Flipoços e que tem efetivamente cumprido seu verdadeiro papel: estimular e fomentar a leitura entre todos, dando a Poços de Caldas o honroso título de cidade com o maior índice de leitores em todo o Estado de Minas Gerais e proporcionalmente no Brasil;
11) Sentiríamos honrados se FHC tivesse vindo ao Flipoços, afinal, ele é um homem culto, inteligente, vivido, sério e respeitado no Brasil e no mundo todo, além de escritor e imortal da ABL. Certamente, atrairia um grande público de ouvintes. Quem sabe agora, depois dessa desastrosa e leviana matéria do jornalista Jotabê Medeiros da Carta Capital, FHC aceite nosso convite e venha à Poços de Caldas como ilustre palestrante do Festival;
12) Por fim, peço aos meus amigos jornalistas, amigos do mundo editorial, editoras, entidades, amigos pessoais e particulares, amigos das empresas patrocinadoras e fornecedoras, autores convidados que vieram ao Flipoços que me conhecem e que conhecem nossa empresa e nossa conduta de trabalho, compartilhem esta informação até que chegue às mãos e ouvidos dos jornalistas Jotabê Medeiros e Mino Carta, para que os mesmos possam se retratar pessoalmente e que provem com documentações o que estão divulgando.
Obrigada.
Gisele Corrêa Ferreira – Diretora da GSC Eventos
Poços de Caldas, 23 de setembro de 2016.
RESPOSTA DO REDATOR, PONTO A PONTO:
1. Em nenhuma linha da reportagem se diz o contrário a respeito da Lei Rouanet.
2. Sim, é verdade que a autorização de captação não significa que se levantou o dinheiro. A proponente não captou os R$ 642 mil que pretendia, mas a executiva esquece de informar que levantou R$ 235 mil (do BNDES, DME Energética, Elfusa Ltda, Grings Ltda, Sigaplus Ltda e Togni Ltda). Teve que cortar parte do projeto que apresentou, provavelmente os cachês mais polpudos, já que se trata de uma feira literária com dezenas de convidados.
3. Sim, é verdade que é essa a praxe, mas também é verdade que um projeto é aprovado pelo que a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura considera seu escopo, seu mérito. A reputação dos convidados é um desses méritos.
4. A organizadora diz que FHC estava listado. Se estava listado, certamente é porque tinha assinado anuência para que o projeto fosse apresentado à lei. Isso também é praxe. Se não foi, e não tenho porque duvidar da organizadora, vou corrigir imediatamente a informação.
5. A reportagem não afirma que receber cachê é ilícito. Essa é uma ilação da organizadora.
6. O festival nunca captou tudo que pediu, é verdade. Mas isso não é o mérito da reportagem – a empresa da organizadora já captou R$ 1,2 milhão por intermédio da Lei Rouanet, talvez isso possa ser examinado em uma reportagem com fim específico.
7. Ninguém falou que é errado contratar FHC para palestras com dinheiro público. Essa é outra ilação da organizadora, que parece não ter compreendido direito a reportagem.
8. A reportagem não ataca a Lei Rouanet, é outra incompreensão da executiva. Na verdade, defende a isonomia na análise jornalística de sua utilização.
9. A empresa citada não é objeto da reportagem, nem sua atuação no mercado, nem sua capacidade de harmonização com governos de espectros políticos diferentes.
10. A reportagem é apartidária. Só quem tem um viés muito partidarizado de atuação pública é que poderia vê-la com um parti pris.
11. A reportagem não questiona os méritos intelectuais nem os encantos pessoais do ex-presidente, assim como nem seria capaz de chamar alguém de leviano por trazer ao conhecimento público algo que diz respeito a todos – afinal, os recursos da Lei Rouanet são recursos públicos, e o sr. Cardoso utilizou R$ 14 milhões incentivados para cobrir as despesas do seu instituto, inclusive para material de limpeza e banheiros. É um debate que interessa ao leitor
12. Por fim, peço à missivista que, quando quiser pedir uma correção sobre um texto jornalístico no qual aponta incorreção ou do qual discorda, o faça pelos canais competentes – cartas do leitor, telefone do repórter, editor, redatores. Ao contrário do tipo de jornalismo bajulatório ao qual parece ter se acostumado, aquele que cobre constrangedoras visitas de assédio social à Academia Brasileira de Letras, aqui se faz algo sério. 
Atenciosamente
Jotabê Medeiros

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