Parecem os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Também na 61ª Festa do Peão de Barretos (município do norte paulista, a 421 quilômetros da capital) cada detalhe ostenta uma atmosfera de guerra e competição, oculta sob uma capa super-heróica de paz e harmonia. Estamos, pacíficos & pacatos, na maior festa de peão de rodeio da América Latina, como repete o slogan informal de competitividade e triunfo.

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Originários da Bahia e habitantes de uma reserva indígena em Açucena, Minas Gerais, os pataxós AponahiPotomojuTamaru circulam livremente num ambiente de resto governado por cowboys e cowgirls. Faz todo sentido, se examinarmos as profundas raízes indígenas da chamada música caipira, que desembocou no moderno gênero sertanejo (ou country, diriam cowgirls e cowboys) e veio desaguar nas vertentes universitária e pós-universitária. Faz todo sentido, se imaginarmos nossa cultura interiorana como fruto do apaixonamento, acasalamento e procriação entre bandeirante europeu e índia latino-americana, entre o nômade forasteiro e a cidadã da mata local.

Não é bem assim quando chegamos mais perto. Pergunto a Potomoju e companheiros o que estão fazendo os pataxós na festa de peões e peoas de Barretos. “Trabalhando, né?”, ele ri. “E mostrando um pouco da cultura da gente.” Há cinco anos Potomoju vende objetos indígenas artesanais próprio no setor infantil do Parque do Peão.

Pergunto o que sentem pela música que toca na festa. “Você diz o som mecânico?”, retruca, provavelmente pensando nos DJs que animam a gigantesca arena no tempo-espaço vazio entre os shows e os rodeios. Isso, e a música sertaneja moderna também. “É legal. Na Bahia é mais axé, né? Aqui é mais sertanejo que vocês curtem. É legal”, diz Potomoju. Tamaru completa: “Pra gente é muito bom, porque estamos conhecendo também um pouco da cultura dos brancos”.

Noutras edições da festa, os homens da terra, do campo, da mata e da aldeia de Potomoju já acamparam em barracas instaladas no próprio parque. Hoje dormem – moram – durante os dias de festejo country num quartinho aos fundos do próprio espaço onde vendem seus artesanatos. Trabalham o dia todo e dormem à noite, enquanto mulheres e homens brancos (ou não tão brancos assim) animam os vários palcos da Festa do Peão. “De vez em quando a gente dá uma saidinha”, despista Tamaru. Se Barretos fosse a Olimpíada, Potomoju, Tamaru e Aponahi seriam Isaquias Queiroz – mas sem medalhas, porque essas vão todas para os pescoços dos caubóis.

O gigantismo é o mais evidente ponto de semelhança entre duas realidades aparentemente díspares, o rodeio western e a pajelança olímpica. Para abrigar 11 dias ininterruptos de programação musical, cultural e toureira, o Parque do Peão de Barretos beira o monumental, em seus mais de 110 hectares de extensão de arquitetura projetada pelo carioca mítico Oscar Niemeyer. A organização da festa, cuja programação neste ano se estendeu entre 18 e 28 de agosto, estima até o encerramento a passagem de 900 mil foliões pelo parque, situado numa das rodovias de acesso a um município de cerca de 119 mil habitantes (segundo o censo de 2014).

FilaO triunfalismo acompanha a locução dos rodeios propriamente ditos, que acontecem durante os 11 dias nas tardes e inícios de noite na grande arena do Estádio Polivalente, testemunhável por até 35 mil pagantes sentados. Para registrar entrada na arena, peoas e peões se formam em filas que se arrastam feito cobras pelo chão e fazem pensar no “Admirável Gado Novo” (1979) do paraibano Zé Ramalho.

Celebrado como “a voz da gravadora Som Livre nos projetos da Rede Globo”, o locutor Cuiabano Lima (um filho de Barretos, apesar do prenome matogrossense) orquestra os intervalos entre shows e rodeios, entre discursos emocionados (“ser caipira é ter orgulho de ser gente”) e comandos de massa prontamente atendidos: “Quem tem orgulho de ser caipira dá um grito aí!”.

Junto com Cuiabano, o DJ Camarguinho, artífice de “música mecânica”, elabora uma antropofágica mixagem de trechos curtos de música eletrônica, pop gringo, rhythm & blues contemporâneo, rock’n’roll (“We Will Rock You”, do grupo inglês Queen, é a personificação recorrente do sentimento de arena), novos hits sertanejos e saudades caipiras.

Nos momentos em que a tradição vence a contemporaneidade nos voos do DJ, o som mecânico é temporariamente desligado para que a multidão ecoe uníssona, com emoção, versos de Belmonte e Amaraí (“de que me adianta viver na cidade/ se a felicidade não me acompanhar/ adeus, paulistinha do meu coração”, de “Saudade de Minha Terra“, 1966), Milionário e José Rico (“nesta longa estrada da vida/ vou correndo e não posso parar”, de “Estrada da Vida“, 1977) e Trio Parada Dura (“as andorinhas voltaram/ e eu também voltei”, de “As Andorinhas“, 1985).

Fundada em 1955 e batizada de Os Independentes, a associação que gere a festa, uma espécie de Comitê Olímpico Internacional dos interiores nacionais, forra sua página na internet com provas de que não existem ali os sempre denunciados e repudiados maus tratos contra os animais que participam da festa. É impossível entrevistar touros de rodeio, bois de exposição e cavalos de montaria para medir seu grau de contentamento ou descontentamento com o papel que lhes é reservado na celebração coletiva. Como acontece com os animais olímpicos do hipismo, também esses não usufruem das medalhas vencidas por seus montadores.

Quando a noite é alta, há o estouro da boiada humana louca por fazer a pajelança pós-tudo. Ou melhor, há o extremo cuidado de vaqueiros modernos uniformizados como seguranças para que o estouro não aconteça. O chão de areia batida por onde trotaram os touros é invadido ordenadamente pelo público dos shows de música sertaneja, ampliando a capacidade de público para alguma cifra indefinida entre 50 mil e 60 mil pessoas. (Um grupo religioso celebra ter reunido 60 mil espectadores na gravação de um DVD na arena em 2010, mesmo ano em que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo chegou a suspender os eventos no local por falta de medidas da organização para conter a superlotação.)

Na boca da noite, os peões que domam o touro no pelo passam a atender por nomes fosforescentes como Wesley SafadãoPaula FernandesGusttavo Lima, Lucas Lucco ou Zezé di Camargo & Luciano. Há pouco, apenas vaqueiros a cavalo e touros de nomes Utopia, Cangaço, Temporal, Jogo do Amor e Reflexo atravessavam o cenário de estábulos, currais e bretes que passa por debaixo do palco gigantesco e desemboca na areia da arena. Agora, a mesma área de areia está tomada por jornalistas, fotógrafos e convidados das chamadas áreas VIP (os ingressos diários para as áreas mais nobres e/ou próximas chegam a cerca de R$ 900).

Diariamente, vaqueiros e vaqueiras cavalgam a arena portando bandeiras que marcam a transição dos rodeios para os shows musicais. Suas botas, ornamentadas com o logotipo oficial da Festa do Peão, são pintadas em três cores que não predominam na bandeira brasileira: vermelho, azul e branco. Tal qual acontece nas Olimpíadas das praias cariocas, os Estados Unidos da América são onipresentes no imaginário de Barretos, seja entre trabalhadores ou visitantes, palcos ou lojas do intenso comércio do parque. Antropofágica, uma das casas de hambúrguer de boi abraZileirado se chama MC Doni’s, trocando o vermelho pelo azul na paleta de cores que causa fome.

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MC Doni's

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Seria simplificador, no entanto, interpretar como ausência de sentimento de brasilidade a dominância norte-americana, quase tão ostensiva quanto a ronda exercida ininterruptamente pela Polícia Militar. Após a conquista da medalha de ouro pelo Brasil no futebol masculino, um Cuiabano Lima de camisa vermelha beija a bandeira brasileira, constata que o Brasil “vive dias de glória” e puxa um coro ufanista uníssono, de arrepiar o mais frio daqueles que não se ufanam.

Durante três dias em que circulo pela festa, não testemunho nenhuma manifestação política direta, seja contra ou a favor de Michel Temer, seja a favor ou contra Dilma Rousseff, seja da natureza que for. O ensurdecedor desinteresse dos artistas pelo tema é totalmente espontâneo e não parte de orientação expressa dos patrocinadores da festa, segundo afirma a assessoria de imprensa d’Os Independentes (o atual presidente do grupo, o pecuarista Hussein Gemha Jr., não concedeu entrevista). Um impeachment olímpico fervilha Brasil afora, mas a organização se abstém de comentar a turbulência: “Não vamos nos manifestar sobre o assunto. Os Independentes é uma associação apolítica”.

A brasilidade surge em outros espaços, como o antropofágico palco denominado Folclore em Cena, patrocinado por uma marca de açúcar refinado loquazmente batizada Caravelas. Ali, onde seriam de se esperar manifestações folclóricas, acontecem também apresentações de heavy metal e de uma roqueira (ou de folklore?) que canta em inglês com o cabelo tingido de vermelho tendendo ao lilás. Mas é onde se testemunham cenas como a do Grupo Engole o Choro, que toca “Brasileirinho” (1949), do carioca Waldir Azevedo, numa versão luminosa a ponto de animar para os passos de um samba-enredo de passarela as bailarinas da quadrilha junina Cafundó do Brejo, próxima atração do palco.

Na área chamada de Matinha, contígua à arena, repousa ao pé de árvores o Palco das Raízes Sertanejas, definido no site dos Independentes como “espaço da música raiz moda de viola”, onde “duplas, cantores, catireiros, declamadores sertanejos raiz, amadores e profissionais, podem ser apresentar”. A comandante do espaço, Helenice Cunha, é um híbrido de curadora, apresentadora, compositora, cantora e faz-tudo. Ela testa uma manifestação de brasilidade temperada com uma longínqua pitada política, ao anunciar sua moda “Coração Verde-Amarelo”, um pagode à maneira de Tião Carreiro, como “propícia para a ocasião”.

Queima do Alho 3Extraviadas na matinha, Helenice e as raízes sertanejas não têm condições de competir com a sede por novidades que emana do público jovem da Festa do Peão. Fenômeno parecido é o da queima do alho, tradição culinária à base de carne de churrasco, arroz carreteiro, feijão tropeiro e paçoca de carne. Além da competição gastronômica que ocorre no dia 27, o espaço próximo à Matinha abre para almoço e janta, onde se pode comer à vontade por R$ 30. Mas a orgia gastronômica acontece em outros lugares  (quase todos, na verdade) do parque e é feita de outra natureza de brasilidades.

Nos abundantes e padronizados estandes de fast-food, em meio a hot-dogs estadunidenses (mas abrasileirados para “cachorrão”), crepes franceses e “krep’s” “suíssos”, saltam aos olhos e narizes os espetinhos de Jales (SP), a pizza de cone de Jaboticabal (SP), os morangos com chocolate de Araraquara (SP), as batatas fritas e os churros de Maringá (PR), os churros de Marialva (PR), os acarajés de Salvador (BA), os pastéis e espaguetes na chapa de Minas Gerais, as costelas de chão de Barretos mesmo. E as batidas alcoólicas do Ceará.

Ao menos visivelmente, o álcool é a substância química de eleição do folguedo, onipresente no estado de batida, cachaça, cerveja, uísque com energético, conhaque ou letra de música. Se é verdade que os povos indígenas são especialmente suscetíveis ao álcool, as canções sertanejas etílicas são os caubóis domadores dos índios goyazes que somos todos nós.

Goyazes

Bebe-se muito na Festa do Peão de Barretos, sob  patrocínio da cervejaria Ambev (a maior patrocinadora da edição, com R$ 8 milhões, segundo a revista paulistana Veja). Houve também aportes substanciais de grupos como Land Rover, New Holland e Graal.

Barretos é um festival que pode se gabar de oferecer o veneno, mas também a cura. Talvez por se localizar numa cidade também famosa como sede do Hospital do Câncer, o mais importante centro de referência brasileiro no gênero, a Festa do Peão ostenta uma inusitada e gigantesca farmácia comercial, aninhada em três caminhões hollywoodianos, entre propagandas de sal rosa “light” do Himalaia e de camisinhas Consex. “O parceiro vê no evento uma grande vitrine, agregar valor ao segmento”, explica a assessoria dos Independentes.

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A lógica da privatização rege a vida no Parque do Peão, onde R$ 6 parece ser a unidade mínima de preço (inclusive da água mineral). A área de ranchos contígua à arena, por exemplo, é composta de (grandes) propriedades privadas. “Qualquer pessoa podia comprar. No momento não tem disponível”, afirma a assessoria.

Comitiva Asa BrancaAfinal, o espaço é gerido por uma organização que se afasta do poder público desde o nome. “Os Independentes é uma associação sem fins lucrativos. Não utiliza incentivo da Lei Rouanet. Somente o palco Culturando utiliza lei de incentivo fiscal e conta com gestão da AGCIP (Associação de Gestão Cultural no Interior Paulista).”

Antes do fechamento final de 2016, a assessoria estima números sem mencionar cifras: “Podemos afirmar que a arrecadação foi 10% maior em relação ao ano passado. Nossa expectativa é ter 30% de lucro em cima do investimento”. Como se vê, não há nuvem de crise na Festa do Peão, apesar da crise que assola o país.

O orgulho gaúcho na plateia
O orgulho gaúcho na plateia

As Olimpíadas do Interior não chegam a somar os países todos deste mundão sem porteiras (ouve-se mais falar, aqui, das estadunidenses Nashville e Tennessee, quando muito da canadense Stampede). Mas são um quem-é-quem dos estados do Brasil, sobretudo os da face nacional que não tem vista de frente para o mar. Seja na arena ou no palco de gramado ao ar livre chamado Festeja, brilham as duplas matogrossenses Maiara & Maraísa (que cresceram no Tocantins) e Carreiro & Capataz e a cantora e compositora mineira Marília Mendonça.

Num panorama em que a antiga identidade sertaneja se urbaniza, vai à universidade e frequentemente rejeita o passado caipira-campestre-indígena, Carreiro & Capataz fogem à norma e saem do armário num sucesso de pleno orgulho caipira: “Demoremo, mas cheguemo/ nós semo caipira memo/ semo porque semo e também porque queremo/ nós num é tatu mas nós gosta de raiz” (a country-roqueira “Semo Porque Semo“, 2011).

Maiara & Maraísa - foto Paduardo/divulgação
Maiara & Maraísa – foto Paduardo/divulgação

Assim como a (ex-faxineira e balconista) sul-matogrossense Paula Mattos, as gêmeas Maiara & Maraísa e a “rainha da sofrência” Marília Mendonça soam fenomenais por alguns motivos especiais. São mulheres que (com o perdão do jargão discriminador) fogem aos padrões globais de beleza. E atuam como compositoras, além de cantoras. E movem alguns dos shows mais cheios e animados da festa de Barretos, cantando sofrências, dores de cotovelo e arrochas que fazem a multidão se sacudir como numa rave.

Marília Mendonça - foto Paduardo/divulgação
Marília Mendonça – foto Paduardo/divulgação

Embora sertaneja por essência, a festa de Barretos não discrimina gêneros musicais de natureza essencialmente popular. Ao longo de sua história, já recebeu nomes musicais que vão de Xuxa e Roberto Carlos Mariah Carey. Em 2016, pelos trios elétricos (sim, há trios elétricos na Festa do Peão), passam o axé baiano da Banda Eva e o arrocha pós-tecnobrega paraense de Israel Novaes.

Também a arena principal se abre, hora aqui hora ali, para atrações populares de estilos musicais extra-sertanejos. O fluminense de Duque de Caxias Dennis DJ anima a massa com bonecos gigantes, cenografia hi-tech, sotaque praieiro (“faish barulho, Barretoish!”) e doses generosas de funk carioca – a começar pelo clássico instantâneo “Baile de Favela” (sucesso do paulistano MC João), que leva a multidão dos camarotes “VIP” a gritar em coro “festa de Barretos/ baile de favela”.

Dennis abre alas para outra atração extra-sertaneja. Há tempos despido da lisa cabeleira indígena que vestia, o cearense Wesley Safadão é a principal atração do primeiro fim de semana e enche Barretos de cor, luz e som com seu neo-forró pós-eletrônico, pós-axé, pós-sertanejo, que poderia porventura comover os pataxós baianos de Minas Gerais.

Se o litoral cearense, baiano e fluminense ganha lugar de honra nos palcos, trios e arenas, o chão batido funciona mais precisamente como um termômetro sobre a quem se destinam os jogos olímpicos brasileiros de dentro.

Um grande acampamento faz parte do território do Parque do Peão, subdividido em camping dos casados e camping dos solteiros. O primeiro é modesto e tomado por barracas tradicionais, enquanto o segundo se espalha em largo território tomado por moradas provisórias criativas, todas elas evocando ambientes do nomadismo cigano – um outro nome para caracterizar aqueles que, na América, chamamos de indígenas.

As placas de motos, carros, trailers e ônibus esparramados pelo gramado mostram que aqui convive gente de Muriaé (MG), Imbituva (PR), Londrina (PR), Ribeirão do Pinhal (PR), Bento Gonçalves (RS), Florianópolis (SC), Pomerode (SC), São João da Boa Vista (SP), Tupi Paulista (SP) e assim por diante, com nítido predomínio das cidades não-litorâneas.

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As churrasqueiras são onipresentes, e há quem traga galinhas – provavelmente não para dar um passeio. A energia elétrica é puxada diretamente de postes. Há banheiros, chuveiros, barraca de lanches, bar e palco para shows à parte da programação oficial, com nomes iniciantes do mundo sertanejo, que ocorrem ao longo do dia, antes de começar a agenda noturna principal. Os aparelhos potentes de som também são abundantes e competem uns com os outros, numa orgia sonora em que cabem sertanejo, forró, tecnobrega, country music e rock’n’roll norte-americanos. Muitos no acampamento de solteiros contam com piscina de plástico para o veraneio de inverno, entre outros vários confortos improvisados.

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IMG_6663Léo Jr. é o motorista do ônibus-casa adesivado com a inscrição “Barretos 2016” e dividido em quartos por compensados que trouxe seis foliões em 26 horas de viagem, desde Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Carreteiro de profissão e fã da maior festa de rodeio do Rio Grande do Sul (a de Vacaria), ele classifica a festa como “maravilhosa”. “O que mais gosto são das apresentações da arena, dos rodeios. Os shows também são muito bem escolhidos.” Léo diz que nada além do preço do ingresso é cobrado dos integrantes acampados no “motor home” (ou “motorcasa”, na versão verde-amarelizada).

Camping 3Assim como no encerramento das Olimpíadas do Rio, chove pesado nas primeiras noites festivas de Barretos, e as churrasqueiras viram secadoras improvisadas de roupas. O funcionário público Marco Silva Muniz veio sozinho do Rio de Janeiro e encostou no sofisticado acampamento do pessoal de São João da Boa Vista. Ele tem 50 anos e está em sua quinta vez em Barretos. Conta que por R$ 600 o acampado tem acesso livre a um fim de semana de festa – para o período completo, são R$ 800.

Gustavo Gutierrez é dono de padaria em São João da Boa Vista e integra grupo grande que conta com serralheiro e administrador de igreja católica, entre outros. Ele mostra orgulhoso a cozinha que montou numa pequena carreta, com botijão de gás, galão de água mineral e um gongo que martela para reunir a turma para as refeições.

“A parte mais legal do acampamento é conhecer gente de fora, do Brasil inteiro”, descreve Gustavo. Há gringos? “Até hoje não vi nenhum”, diz. Marco completa: “Mas na semana que vem vai ter. Os gringos têm mais tradição de acampar, de motor home. Lá fora a cultura do camping é muito maior, a gente está só engatinhando”.

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CubãoNa olimpíada de dentro, a competição é raramente declarada ou explicitada. Tradição e modernidade ora parecem querer se casar, ora brigam em silêncio – com farta vantagem para a segunda. Um painel de LED hi-tech em forma de cubo gigante paira suspenso no ar, servindo em quatro dimensões à arena toda. “O que é que nós faz se não tem wi-fi pra falar com as garotas?/tá moiado demais e o 3G que não vai e eu aqui só dando sopa”, cantam as duplas Roby & Thiago (paulista e mineiro) e Bruno & Barretto (paranaenses) nos versos etílicos de “Tá Moiado” (2015), sucesso que ecoa recorrente e onipresente nos equipamentos mecânicos de um parque lotado de tecnologia wi-fi.

A festa de Barretos se orgulha em preservar tradições como a queima do alho e a dança caipira da catira. Mas é mais fácil ver fragmentos de catira (ou de funk carioca tipo charm?) nas coreografias modernas dos peões dançadas com som ao vivo nos espaços fechados tipo boate ou rave de música eletrônica.

IMG_6705Barretos preserva sua memória no espaço niemeyeriano do Memorial do Peão, de arquitetura circular inspirada na lona de circo alugada para servir de palco para primeira edição da festa, em 1956. O museu é talvez o único recanto mal cuidado do Parque do Peão, com baixa visitação e infiltrações e mofos que danificam um relicário admirável. Uma viola que pertenceu ao gênio mineiro Tião Carreiro está bem guardada e protegida numa redoma de vidro. Mas surgem úmidas e desbotadas, por exemplo, a estonteante e eloquente galeria de cartazes das festas passadas (cuja trajetória cronológica atravessa iconografia western, tipologia da Rede Globo dos anos 1970, assinaturas de Ziraldo e Niemeyer, até chegar ao visual texano de hoje em dia) e boa parte das abundantes fotografias históricas de 61 anos de vida – que incluem do registro do primeiro presidente da República a visitar o espaço, o general ditador Emilio Garrastazu Medici, em 1972, ao flagrante de uma antiga passagem do político paulista interiorano (de Tietê) Michel Temer.

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A coincidência do primeiro fim de semana de Barretos com o final das Olimpíadas não impacta o forte afluxo de público, nem mesmo no dia de final do futebol masculino. Só acontece queda vertiginosa no primeiro domingo, que a organização não atribui ao encerramento dos jogos mundiais: “Domingo tradicionalmente tem um menor público. E ainda nesse ano teve uma onda de frio e chuva na noite de sábado, que também interferiram”. Juntos e separados, os já veteranos Fernando & Sorocaba (rondoniense e paulistano) e Paula Fernandes (mineira) têm de segurar o rojão de uma arena assustadoramente desocupada.

“Gente, cês tão muito tímidos”, queixa-se a talentosa Paula, léguas distante dos terráqueos que tomam um banho de chuva e de samba no estádio do Maracanã. Não estão, Paula, eles apenas são poucos. Mas dançam e cantam animadamente a versão da cantora e compositora para o tema de fossa “Nuvem de Lágrimas”, lançado em 1989 pela paraense Fafá de Belém em trio com os paranaenses Chitãozinho & Xororó.

Eis outra característica extraordinária do público sertanejo, talvez umbilicalmente ligada à identidade brasileira (indígena?): a alegria é a prova dos nove, e mesmo a mais triste e deprimida das canções é cantável, dançável, bebível, comível e festejável.

Já ao final da noite do primeiro domingo, o bailinho-karaokê informal continua instalado no asfalto de uma das ruas do Parque do Peão, num carrinho de supermercado de potência sonora formidável. É quando o DJ artesanal fura brevemente o cerco da aversão de peoas e peões pela política, ao som da voz de Paulo Ricardo, do RPM, em “Revoluções por Minuto” (1985).

E então uns gatos pingados alheios à guerra branda de civilizações chamada Olimpíada cantam a plenos pulmões os anacrônicos versos oitentistas da velha banda pop-rock brasiliense: “Ouvimos qualquer coisa de Brasília/ rumores falam em guerrilha/ foto no jornal, cadeia nacional/ viola o canto ingênuo do caboclo/ caiu o santo do pau oco/ foge pro riacho, foge que eu te acho, sim”.

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