O homem negro de cabelos brancos toca seu violão e solta seu vozeirão no pequeno quarto de hotel no centro de São Paulo. É dia 13 de maio de 2016, um dia depois de o Senado brasileiro ter entregado a cabeça da presidenta da República Dilma Rousseff a até hoje não se sabe quem ou o quê.

Baiano de Cachoeira nascido há 72 anos, seu Mateus Aleluia está em São Paulo para cantar no Sesc Belenzinho em louvor ao 13 de maio, aniversário de 118 anos de uma abolição que parece nunca se completar, menos ainda no 13 de maio deste 2016. Neste desaniversário de todas nós, negros, indígenas, mulheres, homossexuais etc. etc. etc. nos entreolhamos em busca do Brasil que será – será que será?

Seu Mateus ensaia cercado da banda, formada inclusive por dois filhos seus, o brasileiro Mateus Jr. e a angolana Fabiana Aleluia, cantora ao lado dele em várias faixas do profundo e emocionante álbum solo Cinco Sentidos, de 2010. Em 2002, ano da primeira eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil, seu Mateus voltou para a casa natal depois de 20 anos morando em Angola, período em que ficou em parte esquecido por aqui o trabalho mitológico do trio Os Tincoãs, com o qual ele ficou originalmente conhecido de alguns (poucas) de nós.

Na volta, não havia mais Tincoãs (o parceiro Dadinho foi com ele para Angola, e lá morreu em 2000), não era mais possível reproduzir o saber musical fundado no candomblé cantado em português do Brasil que o trio inventou e alumiou. Tudo se perdeu, nada se perdeu. Enquanto os antigos discos dos Tincoãs perseveravam via internet entre os mais curiosos amantes da música popular brasileira, o canto grave de seu Mateus, também professor e pedagogo, seguiu o pulso de aquietar e explodir, até que virasse o corpulento álbum individual Cinco Sentidos.

Ali há ainda o candomblé e os orixás (“Ogum Pa”, “Lamento das Águas/ Na Beira do Mar”), agora mais harmonizados com africanidade e ancestralidade (“Koumba Tam”, “Quem Guiou a Cega”), com filosofia (“A Lente do Homem”, “Homem! O Animal Que Fala”), com luta por liberdade, igualdade, fraternidade (“Despreconceituosamente”, “Liberdade”), com memória (outra vez “Cordeiro de Nanã”, dele e de Dadinho, gravada pelos Tincoãs em 1977 e reinterpretada em trio pelos conterrâneos João Gilberto, Gilberto Gil e Caetano Veloso, no álbum Brasil, de 1981).

Em entrevista longa e plácida (ainda que salpicada por momentos de exaltação de seu Mateus), um sem-número de assuntos povoou o diálogo norteado pela música, de que também participou Fabiana, de modo discreto, mas altivo.

Começamos conversando sobre os simbolismos da data 13 de maio, sobre a condição que seu Mateus chama de “recuada” e sobre Cachoeira, cidade de 34 mil habitantes no Recôncavo Baiano, o ninho acolhedor que explica o homem que dali sairia para dispersar ancestralidade pelo Brasil e afora. Comecemos essa curta e rápida viagem pela sabedoria humana.

 

Pedro Alexandre Sanches: Em primeiro lugar, quero dizer que é uma honra estar com o senhor exatamente no dia 13 de maio, embora a gente saiba que existe um milhão de coisas envolvidas nessa data.

Mateus Aleluia: É sempre válido. É como dizia um grande pensador: eu não discuto um desígnio de Deus. Olodumaré foi que decidiu, é ele que manda – ou ela, a gente não sabe se é ele ou ela, ou se são dois. É a força.

PAS: Qual é o sentimento de subir ao palco no dia 13 de maio?

MA: É sempre um passo. Se foi bem dado ou mal dado, é sempre um passo. (O 13 de maio) pelo menos foi um despertar. Numa corda bamba, você tem que andar ou pra frente ou pra trás. Se fica parado, você cai. O equilibrista se equilibra assim. Você tem que fazer qualquer coisa, o ruim é não fazer nada. Se errou, não tem problema, diga “errei, agora vou consertar, vou tentar consertar, me ajude a consertar”. Então o 13 de maio pode não ter sido aquilo que a gente esperava, como muita coisa que sempre aconteceu de errado com o mundo, e de certo. Não era como a gente esperava. Mas quem somos nós, pra de repente estar, com a nossa vã filosofia, interpretando questões que estão muito além do nosso entendimento? O que podemos dizer, pronto, é que o 13 de maio, se foi errado, vamos consertar agora. Temos essa obrigação. Não podemos ficar amarrados a uma coisa que não deu certo.

PAS: O senhor acha que a gente tem consertado?

MA: Olhe, estamos tentando. Isso é um trabalho de todos, é um trabalho da humanidade. Esse é um problema da humanidade, não é um problema somente dos negros. Enquanto realmente o negro não estiver bem, o branco, o índio e outras etnias também não vão estar bem, ou vice-versa.

PAS: O problema é que os brancos, muitas vezes, não sabem disso.

MA: Eles vão entender. Quem não aprende dum jeito aprende doutro. A gente está vendo aqui no Brasil, com todas os desajustes que existem. As pessoas não percebem que temos quase 70 mil homicídios por ano, quase 80 mil estupros por ano. Tá na cara que é preciso consertar. Tem que pegar as pessoas excluídas e incluir de fato. Não é incluir somente na intenção ou na palavra. É preciso uma inclusão real.

Eu me recordo muito bem de um argumento dum economista chamado Edmar Bacha, a teoria da Belíndia. Exatamente, o Brasil é uma Bélgica misturada com a Índia. Ele escreveu isso na década de 1970, e hoje ainda continua a mesma coisa. Nós temos 30% que vivem debaixo do protetorado da administração pública e 70% de excluídos. Nós somos realmente os recuados da sociedade. Podemos não ser recuados do ponto de vista social, mas somos recuados do ponto de vista econômico, político, de reconhecimento de cidadania. Quando eu falo assim, recuados, somos 70%. Não é somente o negro, não, é quem vive dentro dessa margem de 70% de excluídos.

PAS: “Recuado” é um termo muito forte, muito significativo.

MA: Mas tem que tem essa carga mesmo. Nós somos recuados. Nós vivemos recuados.

PAS: Qual seria sua definição de “recuado”?

MA: É a pessoa que tá se preparando pra avançar, mas não avançou. Porque cada recuo é um preparo pra poder se dar um passo pra frente. E a capoeira é bem isso, né?

PAS: É um termo da capoeira?

MA: É possível que seja, não sei. Então fazer show em 13 de maio, como em 20 de novembro, pra mim, é uma possibilidade de dizer que a gente tem que falar disso todos os dias. Isso não pode ser problema de um dia, porque o problema nosso é todo dia. Dedicar um dia ou dois do ano pra falar disso é a gente querer disfarçar o que tá acontecendo e o que acontece. Nós temos problemas sérios que nos acompanham, essa sociedade recuada toda. Vivem sem saneamento adequado, sem água, não existe nada disso. Conheço minimamente. Vão mostrar algumas partes recuadas que fizeram alguma coisa, mas a grande parte não mostram. É hora de nós despertarmos pra isso, de que precisamos de todos. Não podemos fazer uma luta sozinha. Qualquer tipo de programa que se pense, se não incluir toda a comunidade, ele não vai pra frente. As pessoas têm que ter pertencimento sobre aquilo, não pode ser só seu, só desse grupo. Tem que ser de todos.

PAS: Queria dizer logo de início que sou muito admirador de sua obra, que é muito especial. Vim com a intenção de saber um pouco mais de sua história, que conheço menos que sua voz e sua música. O senhor nasceu em Cachoeira, não é isso?

MA: É.

Seu Mateus exibe Cachoeira no telão do show no Sesc Belenzinho, em 13 de maio
Seu Mateus (à direita) exibe Cachoeira no telão do show no Sesc Belenzinho, em 13 de maio

PAS: É exata a história de que seria uma das cidades mais negras do Brasil?

MA: Não sei se é, não sei. O Brasil tem cidades como Teodoro Sampaio, em que 90% são negros. São Francisco do Conde também.

PAS: São cidades da Bahia também?

MA: Da Bahia, e outras cidades fora da Bahia também têm a etnia negra muito à luz do dia. Penso que Cachoeira não foge a essa regra.

PAS: Nasceu lá há quantos anos?

MA: Há 73 anos, vai fazer. Fui gestado em 1942 pra 1943. Nasci em setembro de 1943.

PAS: Pode falar um pouco sobre Cachoeira e sobre o início da sua vida?

MA: Cachoeira, Cachoeira, falar um pouco de Cachoeira… Eu nunca vou conseguir falar de Cachoeira. Cachoeira é tanto que, por mais que eu diga… a pequenez do nosso entendimento diante daquilo que ela é… é muito pouco. Na realidade, as nossas palavras não conseguem retratar o que a gente vê e pensa. Nós deveríamos nos entender calados. A gente passaria muito mais um pro outro. Como nós temos que falar, quando a gente fala corta tudo, entendeu? Cachoeira é uma mistura de culturas, de crenças. É uma cidade, pronto, ribeirinha, porque fica à beira do rio e ao mesmo tempo é um grande sertão.

PAS: Qual é o rio?

MA: Rio Paraguaçu, um rio que nasce na Chapada Diamantina e desemboca no Oceano Atlântico, na Baía de Todos os Santos. É um rio genuinamente baiano.

PAS: Tá preservado ou maltratado?

MA: Como tudo. Ele não foge à regra. E nem é exceção pra justificar a regra. Também tá maltratado. Cachoeira é uma cidade cujo misticismo salta à flor da pele, aquela cultura miscigenada. Você vê o afro-barroco bem distinto, o barroco e o afro. E você também vê bem a presença indígena, que nós tentamos ocultar não sei por quê. Este Brasil é tão índio, e a gente não fala.

PAS: O senhor tem feições misturadas.

MA: Sou, sou, sou sim, sou sim. Por parte da família do meu pai nós somos bem pé no chão, digamos assim.

PAS: E o que quer dizer pé no chão?

MA: Índio, também.

PAS: Sabe a etnia, foi atrás dessas informações?

MA: Não, nós aqui não temos essa condição de ir em busca de nossa genealogia, não somos um Alex Haley, o antropólogo norte-americano, autor de Roots, que foi buscar suas raízes.

PAS: Mesmo a africana? O senhor não sabe de qual parte do continente descende?

MA: Mesmo a africana, mesmo eu tendo morado tanto tempo em Angola. Minha filha é angolana, minha esposa é angolana, tenho todo um envolvimento com Angola. Mas mesmo assim, África é muito grande. Aqui no Brasil a gente fala de África como se fosse um fundo de quintal, um continente daquele, enorme, com 54 países depois que o Sudão se dividiu. É complicado.

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PAS: O senhor andou bastante por lá?

MA: Não tanto. Não tanto quanto eu gostaria. Estou com um projeto pra apreciar a possibilidade de ficar lá pelo golfo da Guiné, entre região iorubá, ashanti, jeje, dar um salto até a Etiópia, pra poder ver se percebo alguma coisa da nossa ligação.

PAS: É um projeto musical?

MA: Não é cantar, é pesquisar. Meu trabalho na música sempre foi. É uma continuidade do trabalho dos Tincoãs, que sempre foi baseado em pesquisa. Primeiro foi pesquisa local, depois se estendeu quando fomos pra Angola, abrimos nossos horizontes in loco. E Cachoeira é isso, você vê a presença dela, mística, cultural, política. Uma vez durante o ano Cachoeira é a capital simbólica da Bahia, em 25 de junho, porque a luta da independência deu muito destaque a esse dia, quando a fragata portuguesa foi expulsa de Cachoeira. Dali então é que começou a derrocada portuguesa, que parou em Pirajá, de onde foram expulsos de uma vez por todas, e se consolidou a independência no Brasil. Porque a independência real do Brasil só se consolidou depois que a Bahia ficou independente, é interessante isso.

Mas Cachoeira é uma praça de espetáculos, o ano todo. É uma festa constante. Muitas vezes você quer dormir e não pode – mas também dorme (ri). Você se habitua, porque aquilo faz parte do seu ninar. Cachoeira tem um povo único, que não tá muito preocupado com as mudanças do tempo. Tá preocupado é com o próprio tempo.

PAS: O senhor mora em Cachoeira, ou não?

MA: Não. Vim d’Angola, fiquei lá de 1983 ao final de 2002, 19 anos.

PAS: Isso explica o sumiço musical aqui do Brasil?

Digitalizar0005MA: Sim, meu companheiro Dadinho foi também e morreu lá em Luanda, em 2000. Nosso último disco, que é só Dadinho e Mateus (de 1986), foi mesmo lá, ficamos lá, e ele morreu lá. Neste momento eu moro em Salvador, desde 2002. Mas frequento muito Cachoeira, minha família toda tá lá, por parte de pai e de mãe. Tenho todo um enraizamento em Cachoeira. Não me desliguei, não, só não faço morar lá. Moro em Salvador.

PAS: Como e quando o senhor se descobre músico? É ainda em Cachoeira?

MA: É. Em Cachoeira todo mundo é músico. Alguns não sabem (ri), como em África também. Em Angola todo mundo é músico, mas não sabe.

PAS: Isso vale para a Bahia toda?

MA: De uma certa forma eu creio, porque isso a Bahia herdou mesmo. E as pessoas não sabem que têm essa musicalidade inata, herdada. Pronto, é uma sensibilidade que está com o povo.

PAS: A diferença é que o senhor em algum momento descobriu essa musicalidade.

MA: Me deixei levar. A gente nunca descobre, a gente se deixa levar. Umas pessoas são resistentes, não ouvem. Outros, “não, eu nasci pra ser bancário”. Poxa, mas você até é um mau bancário (ri). Mas ele fica sendo bancário até o resto da vida, fica frustrado e não atende ao apelo do que ele realmente nasceu pra ser. Mas Léopold Sédar Senghor tinha uma frase linda sobre os africanos: “Nós somos filhos do canto e da dança, que revigoramos nossos pés em contato com o rude chão”. Esse rude que ele fala não é rude de ignorar, é rude de ser inalterado, em qualquer época que você for ao chão ele tá com aqueles mesmos momentos, não se modifica. Ele é sempre o presente, o passado e o futuro. Essa frase de Senghor eu gosto. E Cachoeira é mais ou menos isso, como todo o Recôncavo Baiano: Santo Amaro da Purificação, São Francisco do Conde, Maragogipe.

PAS: Santo Amaro fica perto de Cachoeira?

MA: Pertinho, 40 quilômetros. São Francisco do Conde, Maragogipe, São Felipe, Nazaré das Farinhas. São 22 municípios.

PAS: Pergunto de Santo Amaro porque, óbvio, um pedaço da tropicália nasceu ali. E, a 40 quilômetros, nascem Os Tincoãs.

MA: (Rindo.) É verdade, tropicália tá lá, e Maria Bethânia, que não é tão tropicália assim, é muito ela. Mas Caetano Veloso tá lá. A família de Gal Costa, segundo dizem – não sei se é verdade ou mentira -, é de São Félix, que é uma cidade que pertencia a Cachoeira. Dizem, não sei, ela é da família Burgos, Maria da Graça Burgos.

PAS: Gilberto Gil é mais do interior.

MA: Gil é de Ituaçu, já é sudeste da Bahia.

PAS: Tom Zé é de…

MA: De Irará. Mas, rapaz, você tem que ir a Cachoeira.

PAS: Eu tenho. Uma vez eu estava em Salvador e o Ronaldo Evangelista, que é grande admirador seu e ia encontrar o senhor, me chamou para ir, mas eu não pude.

MA: O Ronaldo! O Ronaldo foi quem me trouxe pra São Paulo. Ele foi pra Cachoeira comigo, você deveria ter ido. Você perdeu a Festa da Boa Morte.

PAS: O que é a Festa da Boa Morte?

MA: É uma irmandade, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, uma irmandade de senhoras com mais de 70 anos, quase centenárias. A finalidade da irmandade, quando foi criada, era todas trabalharem pra alforriar as amigas que ainda eram escravas, pra comprar a liberdade das outras. Criaram uma irmandade, que era devota de Nossa Senhora da Glória, e ao mesmo tempo da entidade Nanã, do candomblé. É por isso que a festa é no dia de Nossa Senhora da Glória (em 15 de agosto).

PAS: Seria equivalente a Nanã?

MA: É mais ou menos equivalente a Nanã, no sincretismo. É uma coisa muito bonita.

 

*

 

A musicalidade afrobaiana dos Tincoãs nasce em Cachoeira, mas não como um passe de mágica. Como seu Mateus conta abaixo, o trio vocal emergiu na cidade recôncava no início dos anos 1960, ainda sem a sua presença na formação e se dedicando exclusivamente a cantar… boleros.

os tincoas PEmbora o padrão vocal já fosse o mesmo que os notabilizaria mais tarde, o disco de estreia, Meu Último Bolero (Continental, 1961 ou 1962), se limitava a reler temas de açúcar como “Tu Me Acostumaste” e “Over the Rainbow”. Não dava pistas sobre o que aconteceria uma década depois, quando a grande gravadora Odeon (a futura multinacional EMI) bancasse o lançamento de Os Tincoãs, 100% devotado a abordar uma versão abrasileirada da religiosidade africana, do candomblé. Ali vicejaram os cantos para orixás (“Iansã, Mãe Virgem”, “Canto pra Iemanjá” e “Obaluaê”), a devoção religiosa pela natureza (“Na Beira do Mar”, “Sabiá Roxa”, “Raposa e Guará”), os mantras rituais (a histórica “Deixa a Gira Girá”).

Seu Mateus fala sobre sua ligação com o candomblé, que ele classifica como “plena”. O repórter ultrapassa o limite nas perguntas, o entrevistado recoloca as coisas em seus devidos lugares. O músico afirma acreditar que a Odeon mergulhou inadvertidamente na religiosidade negra do primeiro Os Tincoãs, levada pelo produtor Adelzon Alves, que à mesma época conduzia a guinada vitoriosa da mineira Clara Nunes (que se apresentara como cantora romântica e juvenil) rumo ao samba – e ao culto aos orixás afrobrasileiros.

 

PAS: Voltando àquele ponto do seu começo, como a música entra na sua vida a ponto de virar uma profissão?

tincoas-meu-ultimo-bolero 13.23.10MA: Olha, como é que vira? Naquela época não havia o que vocês têm hoje. Televisão era uma coisa rara. Então o nosso lazer era muita arte. Era se reunir, tocar, cantar, representar, grupos de teatro. Na minha família mesmo tinha um grupo de teatro, o único que não participou fui eu, porque eu era o menor de todos, o caçula da família. Aquilo fazia parte do cotidiano da minha família, e todas as famílias em parte tinham esse mesmo tipo de comportamento. Todo mundo fazia parte da filarmônica local. Aquilo fazia parte da educação da pessoa, pra não ficar pela rua, não virar capadócio, como diziam naquela época. Nós crescemos assim. Formamos bandas no interior. Os Tincoãs já existiam antes de mim. Cantavam bolero. Todo mundo se conhecia de Cachoeira. Como naquela época ser músico era uma coisa complicadíssima – não era como hoje, que todo mundo quer ser -, música era um hobby ou então uma coisa pra malandro. Não era profissão.

PAS: O senhor chegou a ter outras profissões?

MA: Sim, sim. Eu sou pedagogo. Mas o que aconteceu? Um dos Tincoãs, Erivaldo, desistiu desse negócio de trio, bem depois de gravar o disco de bolero (em 1961). Pronto, não deu. Aí, como eu estava todo dia com eles, cantando junto com eles – era todo mundo como se fosse uma família -, de uma forma espontânea eu substituí. Tempos depois, fomos paulatinamente mudando a linha temática do trio, até a gente enveredar mesmo pelo candomblé, pelos sambas de roda, cairmos mesmo naquilo que Cachoeira é. Cachoeira, culturalmente, não é bolero (ri). O Recôncavo, culturalmente, não é bolero. A Bahia, culturalmente, não é bolero.

PAS: O bolero tava lá de forasteiro…

MA: De forasteiro. Nós caímos dentro da cultura da Bahia, daquilo que culturalmente nós somos. E foi aí que nós começamos.

PAS: O senhor entrou nos Tincoãs em que ano?

MA: Minha primeira apresentação foi em 1962.

PAS: Muito antes de gravar o disco Os Tincoãs, que é de 1973.

MA: Muito antes. Naquela época gravar um disco não era tarefa fácil, você nem imagina.

PAS: Ainda mais pra um grupo como o de vocês.

MA: Sim. Você não tem ideia.  Em 1962 ou 1963 foi minha primeira apresentação, num programa de Natal da TV Itapuã.

PAS: Cantando o quê? Imagino que não era candomblé.

MA: Não, não foi. Cantamos “Noite Feliz”.

PAS: Música de Natal.

MA: Mas com arranjo feito por a gente, com uma parte declamada, uma coisa bonita. Nós sempre trabalhamos o sincretismo. Mesmo dentro desse disco de 1973, se você for ver, “Iansã, Mãe Virgem” mostra um sincretismo até étnico,  uma deusa africana dos cabelos louros. Nenhuma das deusas africanas é virgem, e nem existe esse tabu da virgindade. Todas elas têm uma vida normal, se confundem com as pessoas. “Iansã, Mãe Virgem”, é como se ela fosse a Virgem Maria.

PAS: O sincretismo étnico é inclusive nos integrantes do grupo.

MA: Sim. O integrante do meio (Heraldo) era descendente direto de espanhol, o pai dele era espanhol. Essa formação terminou em 1974, quando Heraldo desistiu. Da formação inicial do trio, só ficou Dadinho, que foi até o fim.

PAS: A primeira vez que ouvi falar de vocês na minha vida foi no festival MPB Shell da Globo, em 1982.

MA: Ali já tinha outro elemento, que era Badu.

PAS: Entre 1962 e 1973, foi uma trajetória de profissionalização para o senhor?

MA: Não. Eu era professor, Dadinho tinha outra atividade. Mas nós nunca paramos de trabalhar regularmente como músicos.

PAS: Moravam em Cachoeira, ou já não?

MA: Morava em Cachoeira, morava fora. Morava no Rio, morava em Cachoeira, morava em Valença, morava em Cachoeira. Morava em Vitória da Conquista, morava em Cachoeira. A vida era assim, por questões de trabalho. A partir de 1973, foi aí que se rompeu com tudo, eu rompi com o magistério, ele deixou o que fazia, o barzinho.

PAS: Dadinho tinha um bar?

MA: Tinha um bar, lá em Cachoeira. O pai de Heraldo era dono do maior hotel de Cachoeira. Era o capitalista do grupo (ri), foi por isso que ele desistiu (ri), quando a coisa apertou.

PAS: Quando e como vocês assumem o candomblé como uma forma de expressão?

MA: Não, isso sempre foi assumido. O candomblé, apesar de todos os bloqueios que existem em se aceitar o candomblé até hoje, faz parte da formação do baiano – e do cachoeirano por excelência. A minha família não é de candomblé, mas, pronto, eu sou do candomblé.

PAS: O senhor é?

MA: Não existe essa coisa assim, como posso falar?, militaresca, nem fundamentalista. Não. Eu simplesmente sou do candomblé. De uma forma plena, mas sem ser fundamentalista. Isso é totalmente diferente, nem aceita a alegorização do candomblé.

PAS: Quando o senhor diz de uma forma plena, isso inclui ser pai de santo, alguma coisa assim?

MA: Pai do santo ninguém é.

PAS: Não sei dizer os termos certos…

MA: Como é que faz, com uma entidade dessa, uma força, eu ou alguém ser o pai? Você pode ser o zelador dos interesses da força.

PAS: E o senhor é?

MA: Não, isso penso que não tá em voga. Tá em voga mais o trabalho musical, né?

PAS: Peço desculpas se me excedi na pergunta.

MA: Não, é para não criar esses mitos.

PAS: O que quis dizer é que esse disco de 1973 é inteirinho de músicas sobre esse tema. Antes eram os boleros, quando o senhor entra o que acontece?

MA: Começa a acontecer, não fui eu que levei. Não é bem assim, levou, mudou. Todo mundo lá tinha a mesma influência cultural. Aquilo foi surgindo, foi surgindo, de repente “rapaz, essa música é bonita, e se a gente trabalhasse?”. Surge do grupo, um dá ideia, outro dá ideia, um gosta, outro não gosta, outro passa a gostar mais que o outro que deu a ideia. Penso que tudo na vida é feito assim, depois as pessoas se assenhoram.

PAS: Então não houve uma decisão um dia, de que só iam cantar isso?

MA: Não, nunca houve essa decisão, como até hoje não há a decisão de eu só cantar candomblé.

PAS: Mesmo seu disco solo (Cinco Sentidos, de 2010), não é necessariamente de candomblé.

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MA: Não, não, não, não, não. Eu sou um homem de cultura. Qual é a cultura que eu abordo? Você não pode ser uma enciclopédia, e mesmo naquilo que você se propõe a conhecer, daquela vertente você conhece uma célula, as outras células você desconhece. É nesse ponto que me pauto. Nós estamos tendo uma tendência muito de querer ser abrangentes, e nós não somos. Nós temos que começar a respeitar as nossas limitações. E nesse campo mesmo, da cultura africana, religiosa, é de muito questionamento. Como a coisa fica no ar, você quer dar às vezes a uma pessoa uma visão de guru, dum pai de santo. Isso é muito pessoal. E é tão pessoal que aquele ou aquela que realmente detém… é tão pessoal que é pessoal! É como a impressão digital do indivíduo. A sua impressão digital é a sua, seu pai e sua mãe não têm a mesma. A especificidade de cada indivíduo é só dele, mas ele não mergulha em busca dessa especificidade que ele traz. Ele fica nesse papo de cerca-lourenço do chamado inconsciente coletivo.

PAS: O senhor parece ser um homem que mergulha.

MA: (Ri.) Mas não tenho escafandro.

PAS: Mergulha com o próprio fôlego?

MA: Sempre.

PAS: Quando ouço sobretudo o disco Cinco Sentidos, penso que é uma das coisas mais profundas que conheço.

MA: A gente procura… Não é ser profundo. Procuramos não nos enganar, mais do que nós já nos enganamos. Não vou dizer que nós nunca nos enganamos. Nós já nos enganamos muito. E foi nessa trajetória que a gente… Por que é que eu venho me enganando? Tenho que ver a coisa como ela é real. A gente tenta ser o mais real conosco mesmo, e se a gente erra, o que errei hoje falando com você amanhã não tenho o menor problema de dizer “olha, eu me enganei, ontem eu pensei assim, mas hoje tô pensando diferente”. É evolução da espécie. Nós não somos mais hominídeos que éramos há milhões de anos. A espécie realmente evolui. Mas a gente quer amarrar as coisas. Não. As coisas não mudam, mas a forma delas muda. Muda mesmo. Quem vive um pouquinho e não fica caduco, senil, percebe que muita coisa mudou e não deixou de ser o que era. O homem mudou, mas não deixou de ser homem, da espécie humana. Mas vai dizer que ele é o mesmo? Não.

PAS: Sempre que ouço o disco de 1973, ou os dois seguintes (O Africanto dos Tincoãs, de 1975, e Os Tincoãs, de 1977, ambos pela gravadora RCA), a primeira coisa que me vem à cabeça é: como isso pôde ser possível numa gravadora como a Odeon, multinacional, num tempo histórico que hoje vemos como profundamente preconceituoso e autoritário?

MA: Por que eles gravaram? Depois, eles mesmos que gravaram viram que se enganaram, que eles não queriam isso.

PAS: Como foi essa história?

MA: Nós continuamos na Odeon? Qual o segundo disco nosso da Odeon, tem?

PAS: Não tem.

MA: (Ri.) Cada um deles, quando viu que se enganou naquilo que queria, deve ter falado: “Então descarta”.

PAS: Como foi que se enganaram?

MA: Talvez quisessem mesmo a alegoria. Talvez. Não sei se é isso. Ou talvez não quisessem essa linguagem.

PAS: Concretamente, como foram descobertos pela Odeon? Foi na Bahia?

MA: Não, nós fomos para o Rio. Na Bahia fazíamos programas, mas naquela época não se gravava. Tinha a JS, mas que tinha pouca penetração nacional. Fomos para o Rio, em 1973.

PAS: Logo que chegaram já conseguiram gravar?

MA: Logo assim, não. Fomos na Philips. A Philips ouviu, adorou o material, mas não aceitou. A Philips adorou, chamou todo mundo pra ouvir, mas depois…

PAS: Foi André Midani?

MA: Não, conheci Midani depois, na Warner. Nessa época na Philips estava o Roberto Menescal.

PAS: Foi Menescal que ouviu?

MA: Sim. Mas não ficamos. Depois fomos pra outra, também não. Fomos pra gravadora que tinha gravado os boleros, que era a Continental, também não. Aí fomos na Odeon, levados por Adelzon Alves, que tinha um programa de rádio e era produtor da Clara Nunes.

PAS: Adelzon sabia dessas coisas, Clara Nunes também.

MA: Adelzon era um cara de visão. Fizemos um teste na Odeon, houve uma mobilização real, “vem pra ver”. Realmente era um som diferente, totalmente diferente de tudo que se fazia naquela época. Não que fosse melhor nem pior, era diferente. O som que nós fazíamos não era habitual. Você procura, até hoje mesmo, pra encontrar a sonoridade é difícil. Quando voltei pro Brasil o pessoal queria, “ressurgiram Os Tincoãs”. Não, cada coisa tem seu tempo.

PAS: De fato, são muitas originalidades: o formato de trio, a maneira de cantar.

MA: A parceria vocal. Isso é o mais importante. As pessoas podem ser técnicas como elas queiram ser. Agora, você conseguir um parentesco vocal, isso não acontece muito, não. Isso só acontece pela convivência.

PAS: Era um parentesco vocal?

MA: Sim

PAS: Cada um com vozes muitas distintas uma das outras.

MA: Distintas. Mas isso era por que? Muito ensaio. Mas tinha esse tempo todo pra ensaiar? Sim, nós éramos irresponsáveis. Hoje em dia as pessoas têm responsabilidades. Não, nossa responsabilidade era somente aquilo.

PAS: Existiam os quartetos vocais, MPB 4Quarteto em Cy. Por que vocês eram um trio, e não um quarteto?

MA: Mas você vê, o quarteto MPB 4 dificilmente abria vozes. Cantavam mais em uníssono. Desses conjuntos que abriam vozes, eram Os Cariocas. O Zimbo Trio era um trio, mas era mais instrumental, o Tamba Trio também. Agora, abrindo esse vocal, assim, bem distinto…

PAS: Quando o senhor diz abrir vozes quer dizer cada um cantar partes distintas?

MA: Em terças, sextas, e ter a tônica inteira ainda, mas abrir o vocal. Uníssono é só cantar a tônica. Nós tínhamos a nossa própria linguagem, nenhum de nós era de conservatório.

PAS: Foi tudo criado instintivamente?

MA: É, autodidatas.

PAS: Uma sabedoria interna, igual à impressão digital.

MA: A digital. Fizemos a nossa sensibilidade. Aí pronto, como é que começaram a nos ouvir? Porque pessoas tipo o maestro (Hans-JoachimKoellreutterRadamés Gnattali, começaram a falar: “Olha isso, como eles cantam, como eles abrem as vozes”.

PAS: Eles viam apresentações, ou já o disco?

MA: Radamés Gnattali regeu um arranjo de João Donato no nosso disco O Africanto dos Tincoãs. O disco de 1973, produzido por Adelzon Alves, foi somente nós. Só teve um instrumento a nós em duas músicas. Fora disso, foi só violão de Dadinho, o meu tantã e o agogô de Heraldo, que chamávamos agegê.

 

PAS: Muito simples e ao mesmo tempo muito profundo e sofisticado.

MA: Um disco mantrificado, né?

 

 

*

 

Recuado ou não, Mateus Aleluia resiste às formas de culto ao ego que são tão moeda de troca entre os artistas que se movem nos pregões do showbiz – um comportamento que ele atribui também à classe política. Rechaça tecer digressões sobre a repercussão e a extensão do próprio trabalho. Exibe certa ansiedade em relação às expectativas sobre uma eventual retomada dos Tincoãs.

O repórter traz para a entrevista a filha Fabiana, cantora e compositora de 29 anos. Com ela, Angola, Portugal e os diferentes sotaques da língua portuguesa entram em pauta. A africanidade e a lusofonia movem roteiros outros (recuados?), que passam mais ao largo das paixões da cultura e da mídia convencionais pelos Estados Unidos da América do Norte.

 

PAS: Como foi a repercussão do disco de 1973?

MA: Olha, rapaz, eu falar da repercussão é eu falar de uma coisa de que faço parte. Fica esse negócio de massagear meu próprio ego, e eu não advogo bem isso (ri).

PAS: Eu era pequeno, não lembro, não vi na televisão… Imagino que tenha sido modesta, que não tenha sido um sucesso estrondoso em termos de mercado…

MA: Não, não. De mercado não. Marcou posição, mas de mercado não foi.

PAS: Sofreu discriminação?

MA: Olha, rapaz, discriminação existe. Você seria muito ingênuo, mesmo você, se não sofresse discriminação no que você faz.

PAS: Sofro.

MA: Você tem que ter coragem pra ultrapassar, e saber que o idiota é o outro. Se você não tiver essa capacidade, se não for o espermatozoide que venceu… Você tem que olhar pra sua meta, não pra circunstância que quer obstaculizar você de chegar na sua meta. Essa coisa que tem que dar de coitadinho, isso não, não, não. Pra isso eu digo às pessoas todas que se sentem preteridas, se prepare pra dizer a quem lhe pretere: me aguarde. E você tem que trabalhar pra poder, como um atleta.

PAS: Imagino que o trabalho dos Tincoãs tenha sido preterido em vários aspectos, mas ao mesmo tempo atravessou o tempo, e é uma obra que foi despertando a atenção de mais pessoas, de diversas gerações. Ela resiste, foi relançada em CD.

MA: É por isso que eu digo, eu, Mateus Aleluia, tenho que falar isso? Não há necessidade. O homem se conhece pelas obras, não pelo que ele diz. Se eu participei de alguma coisa que vale a pena, eu não preciso dizer que vale a pena. As pessoas vão ver, gostem de mim ou não. Mas vão pegar aquilo de que participo pra dizer se vale ou não a pena. Como dizia meu pai, quem vive de tradição é Cachoeira e São Félix: faça sempre. Você não pode viver do que você foi. Isso foi bom, agora tenho que fazer alguma coisa, seja lá o que for, pra poder agora ser reconhecido.

PAS: Eu sei que cabe a mim essa parte, mas é tão misterioso, porque o festival MPB Shell era em 1982, eu tinha 13, 14 anos, em Maringá, no interior do Paraná. Eu ouço falar de vocês ouvindo aquela música, “Ajagunã”, de que não entendi nada (ele dá risada), depois nunca mais ouço falar de vocês por muito tempo, e um dia compro o disco de 1973 num sebo, por causa da capa, não sei.

MA: Você vê que a própria essência nossa já não é essência igual. Faz parte de uma cultura que, se tá deixando de existir não sei, mas faz parte de uma cultura. As pessoas não precisam falar muito de si, elas têm que fazer. Quer saber de mim? Vá no meu show e vai saber quem sou eu. Vamos bater um papo, mas um papo sem ser focado no que eu faço. Aí a pessoa vai perceber se eu tenho conteúdo ou não. Se a pessoa quer falar de mim, pronto, de repente essa pessoa até incute em mim uma personalidade de me por pra fora coisa que não é minha. Quer aguçar em mim uma vaidade que eu acho totalmente…

PAS: O senhor não gosta de vaidade?

MA: Não é que eu não goste. É desnecessária. Se ela fosse necessária, eu até gostaria, mas eu não vejo vantagem. Eu vejo isso como uma coisa vazia, totalmente vazia. É o exercício de quê? Os políticos falam deles também, você vai competir com as nulidades? Vai começar a competir com aquilo que você critica nos outros? Não. Eu faço um trabalho, que tem quem goste e tem quem não goste, quem é sensível, quem não é sensível. A coisa é mesmo assim. Se começa você e você e você e você e você, isso aí, pronto, é o exercício do ego. Eu penso que isso distorce, o ser humano tá se perdendo por causa disso.

PAS: Vamos seguir além na linha do tempo. Por que o senhor vai pra Angola e passa todo esse tempo lá?

MA: Rapaz, assim como você sai pra Maringá e vem pra aqui. Por que você veio?

PAS: Pra ser jornalista.

MA: Eu fui pra Angola porque fui fazer um show lá. E ficou lá por quê? Porque achei bom ficar por lá. Falei com Dadinho, ele falou “também fico”. Ficamos. Não tem uma resposta muito assim que dê um livro, não. De repente até dá um livro, porque é fora dos padrões que a pessoa espera. Vocês que imaginam que os artistas vivem assim… Os artistas são pessoas iguais às outras, provavelmente normais. Lógico que tem alguns deles que se esquecem de descer do palco. Mas aí depois ele vai ficar maluco, com distonia de comportamento, porque ele não sabe disciplinar quem chega perto pra poder dizer “olha, não me aperte”. Pronto, eu ponho uma moldura nisso aqui. Eu penso que a entrevista é sempre pautada nisso, em algo construtivo, de ideia, de contribuição cultural, um aprendizado. E muitas coisas que as pessoas esperam de uma entrevista minha eu não sinto que tô contribuindo com nada.

PAS: Tá, sim, senhor.

MA: (Ri.) Mas é verdade, muitas vezes digo “pô, não tô contribuindo”, “estou respondendo o que pra isso?”. Eu não tenho mais idade pra isso.

PAS: Como foi sua volta ao Brasil?

MA: Voltei, mas tava totalmente recuado. Comecei a aparecer como? Em 2003, 2004. Foi em 2003 que fiz o filme O Milagre do Candeal, foi lançado em 2004.

PAS: É o filme do Carlinhos Brown (dirigido pelo espanhol Fernando Trueba)?

MA: Sim.

PAS: Voltando atrás só mais um minuto. Em Angola o senhor conheceu sua esposa, teve filhos, foi formar família lá?

MA: Já tinha família aqui. Já tinha meu filho Mateus Jr., do meu primeiro casamento.

PAS: E sua filha, que é sua cantora também. Qual o nome artístico?

Fabiana Aleluia: Fabiana Aleluia.

PAS: Hoje o trio é formado pelo senhor e seus filhos?

MA: Não, não tem trio. Sou muito daquela pessoa assim: tudo tem seu tempo certo. Qualquer coisa que você tente fazer que o tempo já passou… Os seus 18 anos não vão voltar mais nunca. Quando você tiver o dobro da idade que tem hoje, trate de viver aquela época, do dobro do que tem agora. Muita gente deve ter perguntado por que John Lennon ou Paul McCartney não tentou reunir os Beatles. É a coisa mais certa que fizeram. Paul Simon Art Garfunkel, aquilo era pra fazer num tempo, cada indivíduo tem o seu.

PAS: O senhor está falando isso porque solicitam muito que voltem Os Tincoãs?

MA: Isso é dentro dessa pouca visão da vida. A vida continua. A vida não volta atrás.

PAS: Quem está solicitando isso pode não estar prestando atenção no que o senhor está fazendo agora.

MA: Sim, sim. E mesmo que voltar, depois vai dizer “ah, tá uma droga”. Porque as coisas não voltam. Não adianta esse negócio, a pessoa tem que saber que isso aqui parou. Por que John Lennon parou com os Beatles? Tava no auge. Só ele sabe. Isso diz respeito a ele. Ele tem que ter o direito de dizer “eu começo e paro com minha vida onde eu quero”, desde que não prejudique ninguém. Tudo na vida tem uma etapa. Quando você tenta ir além daquela etapa, é mentira.

PAS: O disco Cinco Sentidos é um desrecuo?

MA: Não. Não é desrecuo. Pediram pra fazer, eu fiz. Não tava no meu plano fazer disco. Agora gravei um disco.

PAS: Existe um novo?

MA: Gravei um agora, vai sair. O mecenas é que me procurou, o Sérgio Guerra, um fotógrafo que tem um trabalho belíssimo, mora agora em Angola e em Portugal. Tá gravado, devo lançar daqui até o final do ano, penso eu. Não tenho tanta pressa também, não.

PAS: Cinco Sentidos me emocionou absurdamente logo de cara, em faixas como “Despreconceituosamente”, “Liberdade”, músicas que falam de assuntos de que Os Tincoãs não falavam tão diretamente.

MA: Não. De uma certa forma falavam. Aquela música “ah, o mundo é de nós todos/ ah, Jesus assim falou/ pois, vamos unidos, irmãos, acabar com a dor” (“Ogum Pai”, de 1975), a gente tocava sempre nesses temas. Também aquela música “Misericórdia” (do disco Afro Canto Coral Barroco, gravado em 1983, mas só lançado em 2003). Vai ver “Chão da Verdade” (de 1977), “Salmo” (1975), tem uma série de músicas. São músicas mesmo consideradas panfletárias. Mas, pronto, elas não fizeram sucesso nenhum.

“Liberdade” é uma música em que procuro ver aquelas pessoas de que gostava e eram pra mim como se fossem guias, desde Violeta Parra Pablo Neruda. Persigo isso. No “Homem! O Animal Que Fala” falo de Martin Luther KingZumbiAbraham Lincoln. Mas Tincoãs já vinham dessa linha também, eu não faço nada muito diferente, nem poderia ser, mesmo quando canto uma música recente, “No Amor Não Mando”, as pessoas pensam que tô falando no amor homem-mulher. Não, tô falando no amor. O amor, amor, amor. Não tô falando de paixão, de convivência. E quando o amor me manda, pronto, eu sigo e vou. Vou de caravela, de carro de boi, de teco-teco, mas vou seguindo o amor.

PAS: Quando ouvi pela primeira vez o disco solo do Mateus Aleluia, pra mim se desvendou um dos mistérios dos Tincoãs. Passo a compreender melhor Os Tincoãs, o que tinha por dentro.

MA: É isso, é essa mistura. Tincoãs, no fundo, no fundo, não é nenhuma cultura africana pura, como o Brasil ou a Bahia não é cultura africana pura. Não sei por que as pessoas depois, por modismo, querem pegar e separar o que não se consegue. Eu não preciso dizer pra ninguém que sou negro, quem olhar pra minha cara tá vendo. Ou não é? É complicado, né? Podem dizer “não, você é negro”, mas também é índio. Esse casamento sem padre no meio existe de forma espontânea aqui, então você não pode separar. E Os Tincoãs trouxeram bem à tona isso. Bem à tona. Assim como fala de orixás fala também de Jesus. Acredita em Jesus? Isso pouco importa, se acredita ou não, isso é cultura, está aqui no meio da gente, não vou dizer que não está. Ah, mas você é do candomblé? Eu digo: sou todo candomblé, não sou pela metade, não. Agora você querer evidências culturais é diferente. No candomblé, quem acredita em Oxalá fala com Oxalá. Se Oxalá tá mentindo é problema de Oxalá (ri), mas você faz o trabalho e fala com ele. Tá tudo ligado à natureza. Depois a pessoa é que tentou separar a natureza da existência da crença real. Cada orixá tá ligado a um elemental, a um elemento.

PAS: O senhor me ensinou aqui hoje que os orixás não são virgens. Eu não sabia disso, é uma ideia muito bonita.

MA: Eu nem sei se eles pensam em sexo, como podem ser virgens ou não virgens? Orixá é a aglutinação de duas palavras. Ori é cabeça, e xá quer dizer força, é a força da cabeça. É uma força física.

PAS: Qual é o papel desta moça Fabiana na sua música hoje?

MA: Fabiana? Ela tem o próprio caminho dela. É formada em piano. É musicista mesmo, é diferente de mim, que sou um intuitivo. Ela, não, fez a faculdade de música na Bahia. E é uma cantora excelente, independentemente de ser minha filha. Ela compõe. E herdou de mim essa falta de pressa (risos).

PAS: Quantos anos Fabiana tem?

FA: 29.

PAS: Pode falar sobre o papel de Mateus Aleluia na sua música, Fabiana?

FA: Ah, ele é que foi a orientação, desde pequena. A música veio naturalmente pra mim, ouvindo ele tocar com os amigos lá em Angola, onde passei a minha infância. Na verdade, quando era pequena eu nem conhecia esse lado profissional de Mateus Aleluia (ele ri).

PAS: Ele não mostrava?

FA: Lá em Angola ele não atuava como músico profissional. Mas nas reuniões com amigos sempre esteve acompanhado do violão e das suas músicas. E eu cresci assim, cantando com ele.

PAS: Mas você sabia da existência dos Tincoãs, dos discos?

FA: Claro, sim, que sabia, mas foi mais naturalmente.

PAS: Como você sente esse disco dos Tincoãs? Você ouve?

FA: Eu escuto, sim. Mas escuto mais ele do que os discos. É como ele diz, a evolução do próprio trabalho dele. Ele não toca mais como Os Tincoãs tocavam. Não canta mais como Os Tincoãs cantavam.

PAS: Você tem algum disco gravado?

FA: Não, não tenho.

PAS: Pretende?

FA: Claro, pretendo, sim.

PAS: É compositora também, ele falou.

FA: Sou, sou também. Não tão boa quanto ele, mas tô caminhando.

PAS: Sobre o que suas músicas falam?

FA: De tudo um pouco. Mais minha vivência em Angola, na Bahia, no Brasil.

PAS: Você nasceu em Angola e viveu lá até quando?

FA: Eu fiquei cá e lá. Vivi lá até os 5 ou 6 anos. Depois, dos 6 aos 10, morei em Salvador. Dos 10 aos 15 morei em Angola. E dos 15 até agora estou aqui no Brasil.

PAS: Eu ia perguntar, você fala português como brasileira (Mateus ri), sem nenhum sotaque.

FA: É…

PAS: Fala o português de Angola também?

FA: Eu já não consigo falar direito, falo assim mesmo lá também.

PAS: O português é uma língua misteriosa, eu às vezes ouço o de portugal e não entendo nada…

MA: Eles falam rápido. Eu brincava com eles, “rapaz, fale de forma silábica”. Falam “Trzinha”, não falam Te-re-zi-nha (ri). O português tem isso, ele encurta a palavra.

PAS: O senhor viveu em Portugal também?

MA: Levei um tempo, levei nove meses em Portugal, lá ficamos eu e Dadinho. O angolano já não fala igual ao português. Tem um sotaque do português, mas já são só aqueles angolanos que querem afinar.

FA: Que querem imitar.

MA: Que querem imitar. Mas, em regra, não. Eles têm aquela dicção portuguesa, mas não têm o sotaque. Não sei se é isso, é?

FA: É.

MA: Já é, como eu poderia dizer?, uma coisa mais musical.  E a língua portuguesa não é musical.

FA: A portuguesa de Portugal.

MA: De Portugal. E o angolano, falando o português, é musical. É essa a diferença, por causa das línguas oficiais de Angola. Porque a língua d’Angola mesmo, de cada etnia daquelas, poxa, é uma língua musical toda vida, o kimbundu, umbundu, côkwe, ukwanyama, são línguas bonitas. Possivelmente o umbundu é a língua que mais gosto, é bem musicada mesmo. Isso adocicou o português lá de Angola.

PAS: Que comparações o senhor faria entre Angola e Brasil, Angola e Bahia?

MA: Olha, olha, olha… Angola tem 18 províncias, e cada província de Angola tem uma característica muito própria. Luanda tem uma proximidade muito grande com Salvador. O perfil psicológico do luandense se parece muito tanto com o do baiano como com o do carioca. Aquela malandrice do carioca e do baiano também – do baiano de Salvador, né?, porque o baiano do interior já é diferente. Mas Luanda parece mesmo, tanto que Sérgio Guerra fez uma exposição fotográfica em Salvador e em Luanda, o nome acho que era Cá e Lá.

FA: Era Cá e Lá.

PAS: Ah, quando Fabiana falou cá e lá eu não entendi, achei que era o nome de um lugar, “kailá” que eu não conhecia (risos)…

MA: Ele, então, fotografou as pessoas na feira nas ruas de Luanda e nas ruas de Salvador, e manda as pessoas que vão ver a exposição dizer quem é quem.

 

*

 

Serão os recuos o preparo para os avanços, como ensina seu Mateus Aleluia? Chegamos aos temas da política, que o jornalismo convencional procura manter sob rédeas no curral dos chicos e caetanos: é inevitável falar do assunto no 13 de maio que amanheceu depois do 12 de maio de 2016.

Seu Mateus conta que tentou enviar alertas a Lula e reprova a atitude dos amigos do ex-presidente (quiçá do próprio ex-presidente), em não preservá-lo (ou preservar-se) como o patrimônio da humanidade que ele é. Critica o modo de ser mauricinho, que chama de “afonsinho”. Traz para a mesa do debate político o intelectual negro Milton Santos (1926-2001), baiano como ele. E Fabiana Aleluia fala, com alguma timidez, sobre Dilma, sobre política, sobre Angola, sobre lusofonia.

 

PAS: Só pra terminar. Comecei falando sobre o 13 de maio e não conheço as suas opiniões sobre esta questão, mas pra mim pessoalmente o 12 de maio de 2016 foi um dia muito triste na história do Brasil. Não sei se posso perguntar sobre política…

MA: Sobre política? Olhe, o que posso dizer? O que me entristece politicamente no Brasil é que parece que estamos disputando Vasco e Flamengo. As pessoas não veem o Brasil, nem um lado nem o outro. Há o lado pró e contra. Agora, quando você vai procurar o argumento pra saber como é que tá o país e pra onde o país vai, parece que isso não interessa a ninguém. As pessoas já estão, digamos assim, vacinadas, tanto um lado como o outro. Então quem não faz parte desse jogo de interesses penso que a melhor coisa que faz é assistir de camarote. Tudo isso me entristece, tudo isso me entristece. E esse é o meu discurso. Me entristece muito, porque o Brasil não ganha nada, nem havendo e nem deixando de haver.

O que tá acontecendo com Lula me entristece muito. Não é que ele seja certo nem errado, isso não me preocupa muito. Me preocupa é, pronto, o que ele projetou e como a pessoa via a possibilidade de deixar de ser aquilo que era na ascensão dele, com que todos nós contribuímos. E depois me entristece mais ainda que as pessoas próximas a ele não tiveram, no momento exato, a lucidez pra dizer: rapaz, você é um ícone. Igual a você no mundo não existe. História igual à sua não existe. Você agora é hors-concours, não é pra estar aqui tocando taco com ninguém. Você é pra estar numa posição que quem tentar te tocar vai se dar mal. Agora, se você descer desse altar teu, você vai ficar igual a qualquer mortal. Aí você tá vulnerável.

PAS: O senhor acha que ele desceu?

IMG_4776MA: Acho que ele não teve amigos. Ele não teve amigos. Se ele vai ou não vai, isso é outra coisa. Ele não teve amigos. Se ele estivesse certo ou errado, ele tinha que ter pessoas amigas o suficiente pra dizer que é isso. Olhe o Nelson Mandela. Governou, depois queriam que ele ficasse, que foi que ele disse? Você é jornalista, deve conhecer bem a história.

PAS: Não conheço tão bem essa.

MA: O mal é esse. Nós vamos querer falar de política sem saber disso? Sem fazer comparações? Sem fazer analogias? Porra. É isso que me entristece no Brasil. É que nossa classe pensante não pensa (ri). Deixaram uma esperança pro povo chegar a uma condição como chegou Lula. Ele deveria ser protegido. Mesmo que ele quisesse fazer, “não, você não faz”. Deveria ter um grupo de pensantes pra dizer “não, que é isso, rapaz? Você chegou a um ponto que agora, se você cai, cai toda uma ideologia”.

PAS: É sob esse perigo que nós estamos?

MA: Jogaram no chão! Nem gosto de falar, porque isso me chateia. Quando vejo que as pessoas nem estão atinando pra isso, só estão atinando pra aquele tira ou não tira… Tira ou não tira, isso é o mínimo. O que tá em jogo, sabe quantos anos são?

PAS: 516.

MA: De Brasil não, de ideologia de esquerda, que o pessoal herdou e começa a lutar em função disso, pra depois então você ver o pessoal que se diz de esquerda ter um comportamento mais de direita que quem é de direita? E você que realmente pegou, se dedicou desde tenra idade, sem conhecer nem política, porque acreditou no outro? Não.

PAS: Tô na dúvida se o senhor tá dizendo indiretamente que Dilma não deveria nem ter sido presidenta? Ou não é isso?

MA: Não, eu votei na Dilma na primeira eleição. Na segunda, não. Na última eleição eu não tinha candidato, não. Eu não sou partido, eu sou o Brasil.

PAS: Do meu ponto de vista houve um golpe de Estado, o que o senhor acha?

MA: Não, não sei. Não digo se houve ou deixou de haver. A mesma pessoa que diz que houve golpe de Estado hoje, amanhã basta dizer que não houve e as pessoas vão dizer que não houve, porque são pessoas sem opinião. O que eu quero é uma coisa, agora eu me enganar com relação às coisas, não. Vou querer esse governo que tá aí agora? Não. Vou querer Aécio Neves? Não. Agora, dizer que é o outro lado que tava certo? Não, porque eu sou brasileiro. Eu sinto. Há uma diferença muito grande, nós aqui gostamos de partido e de político, nós não gostamos do BrasilMichel Temer ficar ou não ficar, isso pra mim não me diz nada.

PAS: O seu sentimento de Dilma ter sido afastada é…

MA: Não me diz nada. O Temer cai amanhã, não me diz nada. Acho que o Lula não poderia passar por isso. Mas pra ele não passar por isso as pessoas próximas dele deveriam ter preservado ele. Nós aqui não temos como. Eu mandei várias mensagens pra ele, pelos meus meios, com pessoas próximas a ele.

PAS: Dizendo o quê?

MA: Dizendo isso, que tome cuidado, que essas pessoas não são amigas dele. Sim! Me recordo do dia em que estive com ele, quando ele me deu um abraço, parecia que me conhecia de muito tempo e era a primeira vez. Sim. Eu mandei a carta pra pessoas próximas, com certeza ele não deve ter lido nada…

PAS: Antes de tudo isso começar, ou depois?

MA: Antes, muito antes.

PAS: O senhor já intuía que podia acontecer?

MA: Desde 2008. Quando estive com ele foi em 2010, foi no fim do mandato dele, quando ele foi empossar o César Borges naquele negócio da estrada. Sim. Pra quem já viu política de guerra, esse troço todo, você antecipa as coisas, rapaz. E pra quem tem uma ideia mais ou menos do que acontece no mundo, você não fica com a mente aqui fechada, não. E você tira uma capacidade de dizer pra seu amigo: “Olha, rapaz, você tá errado. Eu tô com você pra o que der e vier, mas isso que você tá fazendo é errado”. E falar de forma pra que a pessoa não pense que você tá… Não, você já mudou a sua opção, ali agora você recebeu uma entidade que tá falando pra ele: “Olha, isso tá errado”.

PAS: Isso deve valer pra Dilma também, ela também não deve ter tido amigos…

MA: Nunca teve. Ela nunca teve. A personalidade dela é diferente da de Lula, ela também não permitiria que ninguém lhe dissesse nada. Esse é que é o grande problema.

PAS: É o problema dos poderosos, das pessoas que deixam o ego ir à frente?

MA: Porque não têm pessoas amigas. Se eu for dizer, ela não vai mais me facilitar. A pessoa amiga ultrapassa isso, você continua meu amigo se quiser, mas tá acontecendo com você isto. E no Brasil tá faltando isso. Não, rapaz, o que fizeram com Lula? Enterraram ele. E agora tão querendo dizer que é um golpe. Isso não é golpe, não, se é golpe então tem que destituir todos aqueles ministros do Supremo Tribunal Federal. Não vou falar nem a Câmara, que tá ali porque vocês querem, né? Aquela Câmara, você vê o tipo de nível que é. Aquilo ali ultrapassou todas as expectativas. Agora o STF, você também vai dizer? Se você quer depor o governo Temer, tem que ir com argumentos reais. E não é difícil também, não. Agora não com essa conversa. Se pegue no que é real, porque tá tudo aí na cara também. Ele também tá sendo intimado.

PAS: Lula não pôde assumir como ministro da Dilma porque era citado na Lava-Jato, e agora Temer empossou sete ministros envolvidos na Lava-Jato, que terão foro privilegiado e tudo mais. Sete.

MA: Mas tá todo mundo na Lava-Jato, quem é que não tá?

PAS: O próprio Temer.

MA: Sim. Ele próprio. O Renan Calheiros não tá? Quantos senadores tem na Lava-Jato?

PAS: Provavelmente todos.

MA: O problema do Brasil é que nós não gostamos do país, não. Nós gostamos de lado. A própria Dilma, da maneira que ela mentiu na campanha, ela teria que ser deposta três meses depois. Você apresenta um programa no Tribunal Superior Eleitoral, não apresenta? E depois é acompanhado. E tudo aquilo que disse que não ia fazer, e tirou a Marina Silva por causa disso? Poxa. E será que as pessoas que querem que ela fique não veem isso? Então você gosta mais da pessoa que do Brasil. É por isso que te falei dos recuados, que sou, e sou mesmo. Porque eu não faço parte do grupo de privilégio. E não me importo que todo mundo saiba disso, eu digo isso.

Como dizia Milton Santos (torna a voz anasalada para imitar o jeito de falar do geógrafo), “a nossa classe média brasileira, a nossa classe média brasileira não luta por direitos“. Aí depois ele fala: “Nós, classe média”, ele se inclui, quer dizer, o tempo todo que ele foi enganado também, que estava lutando por outra coisa pensando que tava lutando por direitos (imita), “nós, classe média brasileira, lutamos pelos nossos benefícios“. É isso que eu vejo hoje em dia. Eu já falava isso há quanto tempo? Quando vejo o discurso de Milton Santos, eu digo: graças a Deus!, agora é um homem da estatura dele que diz, pra quando eu falar dizer “vá ouvir Milton Santos”.

milton

Hoje, nessa briga política agora, eu vejo a mesma coisa dos dois lados. Vejo eles utilizando o povo só como massa de manobra. Agora vá ver como o povo vivo, o poder aquisitivo do povo com o que o povo ganha. Só quem pode saber isso é quem é povo, eu tenho parentes no povo. Minha prima levou dois tiros nas pernas em Cachoeira por briga de tráfico, e ela nem traficante é, tem 82 anos. É muito bonito, você vê aquelas pessoas do Manhattan Connection da GloboNews sentar de pernas cruzadas, os afonsinhos. (Para Fabiana) É afonsinho?

FA: Mauricinho.

MA: (Gargalha.) Mauricinho. Vejo aqueles mauricinhos sentados falando, o que é que esse rapaz sabe da vida pra vir com esse papo de cerca-lourenço? Chama ele pra uma conversa fora daquilo, onde as pessoas lhe questionem. Ali ninguém pode questionar. É tudo muito bem planificado. Mas você não pense que só tem os mauricinhos e afonsinhos só do lado de lá, não. Tem do lado de cá também, que tá se passando por pessoa que quer defender o povo e não tá defendendo o povo.

PAS: O que não tem é um presidente da República com a sua cara, ou o senhor próprio…

MA: Eu não, não dou pra político.

PAS: Um dia vai ter que ter alguém.

MA: Vai surgir. Vai sair. Porque nós estamos trabalhando pra isso.

PAS: Barack Obama vale como presidente negro?

MA: Pra lá, pros Estados Unidos, ele não é presidente negro. É presidente americano. Não se iluda, não. Quem elegeu ele não foram os negros. Qual é a presença negra dentro da sociedade americana?

FA: 13%.

MA: 13%. E nem todos votaram com ele. Quem votou nele foram os brancos americanos, que têm um outro tipo de politização que nós não temos. Eles gostam do país. Quando viram que Obama era a melhor proposta, mesmo sem gostar de negro, “esse negro aqui agora é que é”.

PAS: Por que a gente tem mais que 50% de negros e nunca teve um presidente, ou uma presidenta?

MA: Não temos essa politização. E nem precisava ser negro o presidente. Nós temos que botar lá presidente ou presidente mulher, ou presidenta, que as duas formas são certas – teve um deputado que disse que presidenta tá errado, eu digo que ele não conhece a língua – que faça uma política para o cidadão brasileiro, independente da etnia.

PAS: Fabiana, como você se sentia tendo uma presidenta?

FA: Eu creio que, independentemente do gênero, tem que ter uma política propondo pro cidadão brasileiro em geral. Tem que pensar primeiramente no povo, e defender os interesses da nação. É o que eu acredito. É bom, uma evolução, saber que cada vez mais mulheres tão tomando um espaço que antigamente era reservado só pra o homem. Mas tem que levar em conta que o fundamental é defender o interesse do cidadão.

PAS: Vou encerrar, então, com a palavra de Fabiana (risos).

MA: Mas na realidade, olhe bem…

PAS: Agora só vou ouvir, não vou fazer mais perguntas…

MA: …As pessoas tão dividindo a sociedade com esse negócio de gênero.

FA: De gênero, de etnia, de…

MA: Defenda os direitos do cidadão. Tá tudo enquadrado, bicho. LGBT é pessoa, é cidadão, qual é seu problema com eles ou elas? Não é da sua conta. Ele ultrapassou o seu limite? Não. Então.

FA: É fragmentar para melhor dominar.

MA: Só pode ser, fragmentar para melhor dominar mesmo. Isso é um troço do colonizador de África. Essa política aqui é pra isso. Quando abre uma secretaria de negro, eu fui contra logo desde o início, pra que isso? Abre a secretaria, põe lá um secretário negro, que é que acontece? Aquele secretário negro não vai poder atender porque não dão dinheiro àquela secretaria. Os próprios grupos negros começam a falar mal deles. Aquele secretário nunca é recebido pelo governador. Aquele ministro ou ministra da Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, criada por Lula) nunca é recebido, nunca foi.

PAS: Mas, seu Mateus, isso cria problemas que antes não existiam. Os brancos não eram submetidos a esses constrangimentos.

MA: Quais constrangimentos?

PAS: Michel Temer sofre hoje o constrangimento de não ter nomeado nenhuma mulher e nenhum negro.

MA: Vai sofrer.

PAS: Porque no passado recente nós tivemos e agora se cobra isso de quem vier.

MA: Mas é só isso. Ele vai sofrer somente o constrangimento, mas a realidade não vai mudar. Ele pode até botar um negro, a realidade do negro não muda, é isso que eu quero te falar. O que tão querendo somente é maquiar. Porque nós temos um negro, e por acaso é um cara de ponta, e eu nunca vi darem a ele um lugar de destaque pra poder ser um executivo, que é o Paulo Paim. Nós tínhamos uma negra que sempre despontou, Benedita da Silva, você viu o que fizeram com ela quando teve aquele problema por causa de R$ 1.800? Foi obrigada a entregar a pasta. Tinha a Matilde Ribeiro da Seppir, também, por causa de uma compra num cartão corporativo, qual foi aquela conta? Ela teve que entregar também a pasta. Essa realidade eu não posso falar porque, no fundo, no fundo, quem fez isso a Matilde foram pessoas de esquerda, da qual eu comungo princípios. Mas isso não quer dizer que eu não enxergue, não. Nós temos que pensar de uma forma real, porque assim você tá ajudando a enganar seus irmãos. Não é que a gente vá mudar de lado, nós temos que travar uma luta interna pra mudar essa realidade interna. Isso não pode continuar assim, esse pessoal tá enganando, eles sabem que tão enganando. É uma política maquiavélica, bicho, mas bem pensada. Foi a direita? Não, quem falou em direita? Tô falando que você tá tendo comportamento de direita, de opressor. É o opressor moderno, que trocou as algemas, a corrente, pelo cartão de crédito, então o cara é seu escravo? Será que nós não enxergamos essa realidade? Quando foi que banco ganhou tanto dinheiro como passou a ganhar aqui no Brasil a partir de 2003? Me cite agora você que é jornalista.

FA: Empreiteira.

MA: Empreiteira, são todos de direita. Eu não consegui ganhar dinheiro, eu que sou de esquerda. Todo mundo foi se auto-exilar na Europa ou nos Estados Unidos, eu fui me auto-exilar em Angola. Não consegui ganhar dinheiro por causa disso. Aí me vem Milton Santos, eu já dizia isso, olhe só como são as coisas. Mas é bom que ele diga, eu tenho gravado. Quando dou uma palestra musical eu abro com isso (imita a voz de Milton Santos): “A nossa classe média não luta por direito. Nós, classe média”, acho que ele ficou com raiva dele mesmo (ri), “lutamos pelos nossos privilégios“. E o povo que anda à espera de direito, esse povo não tem direito nenhum. Vai ver o que Milton Santos fala sobre política de racismo também. (Para Fabiana) Você recebeu o negócio?

FA: Eu que enviei pro senhor.

MA: Ah, foi você que me enviou? Ele é contra tudo isso. E por que ninguém nunca pôs isso em destaque, se ele já falava isso na década de 1980, 1990? Por que é que escondem isso? Você quer uma mulher negra, quer um gay lá? Pouco me incomodo que ele seja gay, desde que seja uma pessoa capacitada. Pouco me incomodo que seja um negro ou um branco, se for capacitado. O Temer, por exemplo, se ele fizer um mau governo, sabe quem vai pagar? Quem é?

PAS: Nós todos, mas uns mais que os outros.

MA: Alguns mais do que os outros, pode ficar certo disso. Os 70% vão se desgraçar mesmo. E quando a gente torce pra ele fazer um mau governo, nós sabemos disso. A gente tem que ter a consciência, já que ele assumiu ele tem que fazer. E depois que ele fizer eu não quero mais ele, porque ele tá viciado. Se ele ficar ali, ele vai fazer voltar os tentáculos. Neste momento tá todo mundo de olho, essa consciência nós já vamos ter. Aplicar, igual Mandela. Quando entregaram a ele o Prêmio Nobel da Paz ele foi buscar o algoz dele, os dois receberam juntos. As pessoas não falam isso, Mandela recebeu o Nobel e Frederik de Klerk também. Mandela governou quatro anos, depois disse: “Meu tempo já foi cumprido, o meu trabalho, agora passo, vou dar a possibilidade de outro fazer”. No nosso regime de democracia no Brasil, nós temos a necessidade de ter um rei. Como não pode ser rei, porque aqui não é monarquia, a gente quer um presidente eterno. Isso vem desde o getulismo, né?

PAS: Talvez desde Dom Pedro I Dom Pedro II.

MA: Dos Pedros, né? É monarquia. Quando passou pra República, aí começou, agora o sujeito fica oito anos, nós vamos virar esses países? O Brasil é um país diferente. O Brasil é uma potência. O Brasil não é um paiseco, não. O Brasil é um país pra estar competindo com os Estados Unidos. A Alemanha tá nesse negócio todo, mas não é país igual o Brasil, não. O Brasil era a oitava economia do mundo na época do militarismo, voltou a ser a oitava ou sétima com Lula.

FA: Continua a sétima.

MA: Continua. É uma potência, bicho, pra estar ouvindo coisas menores. Não. O Brasil é pra influenciar, não é pra ser mal influenciado. O Brasil é pra ter uma política como tava pensando o João Goulart, uma política de esquerda brasileira. Nós não somos seguidores nem do comunismo da União Soviética nem de Cuba nem de lugar nenhum, não.

PAS: Sou daqueles que acreditam que os Estados Unidos estão intervindo diretamente na nossa situação política.

MA: Eles vão querer mandar aqui! Porque o Brasil é país pra peitar Estados Unidos. Peitar no bom sentido, ser até parceiro, mas você lá e eu cá. Os Estados Unidos são errados? Errado é o brasileiro que se deixa corromper. Estados Unidos vêm aqui e compram alguém, coisa que a gente não consegue fazer com americano, comprar alguém deles. É isso que a gente se esquece de dizer. Estados Unidos vieram aqui em 1964, por quê? Quem foi que lhe comprou? Por que não se diz?

PAS: Fiquei bravo de ouvir Michel Temer dizer, no primeiro discurso, que “o Brasil infelizmente ainda é um país pobre”. Isso não é verdade. Só o pré-sal sozinho faz o Brasil não ser pobre.

MA: O Brasil tem um lastro, rapaz, de divisas, de reservas. O Brasil não tá mal, quem tá mal é o povo brasileiro. Isso eu falava em 2008, quando diziam que o Brasil tava bem: quem tá bem é o Brasil, o povo brasileiro continua mal.

 

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