Uma banda de 53 anos, obviamente, não existe. Mas ela subiu ao palco do Morumbi e tocou para provar que o inferno também não existe, conta Jotabê Medeiros

Apresentação dos Rolling Stones dia 24 de fevereiro de 2016 no estádio do Morumbi - Foto: Camila Cara - Facebook oficial do show
Apresentação dos Rolling Stones dia 24 de fevereiro de 2016 no estádio do Morumbi – Foto: Camila Cara – Facebook oficial do show
Numa era de milionários mirins analfabetos inventores de apps e startups da hora, os Stones são artesanato puro, medicina de caboclo, pomada de peixe-boi da Amazônia, Biotônico Fontoura analógico, miçangas do pessoal de Humanas contra os artefatos chineses escravistas.

Tem algo de louco em estar assistindo, no Santo Ano da Crise Indelével de 2016, ao show de uma banda que gerou o primeiro cisma entre a igreja roqueira católica e a ocultista. Que presenciou atônita a execução de um negro por uma gangue de Hell’s Angels, no cume da era hippie. Que cunhou o termo “groupie”. Que perdeu um músico afogado na própria piscina. Banda de um cara que casou com sandinista em Veneza e com designer de moda suicida em Nova York. Que fez canções sobre afeto homoerótico, sobre o demo e a heroína. Que teve Bob Dylan abrindo seu show e fez James Brown se sentir inseguro – embora seu vocalista confessasse que imitava James.

Essa banda, obviamente, não existe. Mas é essa existência movediça de 53 anos que está agora no palco de telões perfeitos no gramado do Morumbi.

Toda aquela baboseira de “morra jovem, viva para sempre” vira pó de traque no domínio absurdo de palco de Mick Jagger, sua maestria e entrega – honestamente, se ele fosse preguiçoso, para que cantar “Out of Control”, que não é hit, que é longa e exige do vocalista uma verdadeira drenagem dos pulmões?). Sob as camisas de seda, as roupas bem cortadas de Mick Jagger, o seu preparo acrobático, apruma-se uma força descomunal da natureza, feita de controle da vontade.

Mick é o dono de suas pulsões. Ele e Harrison Ford. Ele e Sean Connery. Ele e mais um punhado de uma meia dúzia que vão aposentando as noções de obsolescência com um continuum de energia & sexo & determinação.

Claro que a vida longa cobra seu preço. Quando Mick o chamou à frente, Charlie parecia mijado, estava com a bunda molhada. E anda como se tivesse tijolos amarrados nas pernas, Rocky Balboa em treinamento. Mas quando toca, é um milagre: mantém a espinha ereta durante duas horas e o braço parece um bumerangue de marfim, impecável no timing.
E sinceramente? Se encontrar o Keith na Vila, pode ser que sinta o impulso de ajudá-lo a atravessar a rua.
E Ron Wood fez alguma aplicação de botox na testa que quase a igualou com o nariz.

Mas a permanência quase sem sequelas no topo do rock system nos prova que não há Inferno: ou seja, é balela a história da punição pelos excessos, pelos pecados, pelos erros sinceros. Há fortalecimento.

Setlist Stones“Beijinho no ombro!”, diz Mick. “Bom pra cacete!”, balbucia, mais adiante. O businessman esperto cola headlines no ouvido da imprensa do ramo, sabe que vão precisar.

Sinceramente de novo? Os dois números musicais de Keith são dispensáveis, “You Got the Silver” e “Happy”, lembram aquela imposição de o Santos sempre escalar o Damião. Mas os slides são tão bonitos e a pausa é tão respeitosa que não tem como bufar.

Besteira falar da excelência deles, do vigor do Darryl. Besteira desfilar set list ou apontar a volta de uma harmônica aqui, uma inclusão de uma música “escolhida pelo público” (“Bitch”, que na verdade foram eles mesmos que escolheram, uma votação mandrake como as de um BBB vulgar). O mais bacana, mais do que sentir que os riffs de “Jumping Jack Flash”, “Sympathy for the Devil”, “Brown Sugar”, “Start me Up”, “Miss You”, “Tumbling Dice” e outros são recém-nascidos de novo, é espantar-se com as coisas que há décadas você não ouvia, como “Beast of Burden” e “Midnight Rambler”.

Os Stones mudaram não por vontade própria, mas porque o destino foi tomando emprestado alguns dos seus trunfos.

A veterana vocalista Lisa Fischer foi trocada por uma mais jovem, Sasha Allen – e ruidosamente menos potente. Merry Clayton, das Raelettes, começou essa tradição de volúpia interracial, o choque de coxas que é tradição em “Gimme Shelter”. A noviça não comparece.

O saxofonista Bobby Keys, morto em dezembro de 2014, foi substituído por Karl Denson, um egresso das hostes do funk californiano. O novato injeta mais uma dose de black music e estraçalha na “canção escolhida”.

Quando tudo acaba, ao som de “I Can’t get no (Satisfaction)”, música mais tocada no verão de 1965, há uma euforia meio surda do lado de fora, onde a cidade toda é camelô. Num terreno baldio, uma banda psicodélica, Cromaqui (ou Chroma Key), toca para alguns bêbados e loucos. Após a pausa para a “História”, como diz a filha que gosta de música de preto, a cidade está de novo “Out of Control”.

I was young
was foolish
I was angry
I was vain
I was charming
I was lucky
Tell me how have I changed

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

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