Não vou ser hipócrita ao ponto de tentar parecer que não tinha diferenças com ele. Tinha muitas.
Uma delas era de estilo: ele chegava de manhã na redação e tirava o seu telefone do gancho. 
Como sentava ao meu lado, as fontes dele e todas as outras pessoas da família, desesperadas, rastreavam pelas telefonistas quem estivesse no raio de ação e tocavam o MEU telefone.
Eu ficava fulo. Além do mais, como eu sou muito caxias, nunca admiti jornalista que não desse a mínima para a notícia. Mauro Dias não dava.
Mas era uma lenda, eu forçosamente tinha que admitir.
Uma vez, eu num mau humor do caralho, atendi o telefone após a tranqueira muito tocar. “Oi, o Mauro tá por aí?”. Eu praticamente rosnei em resposta: “Tá não, deve estar no fumódromo”. E já ia desligar quando achei a voz familiar. “Quem quer falar com ele?”.
“Aqui é o Chico”. “Que Chico?”. “Buarque…”, disse o Hollanda, já quase se desculpando por estar ligando. “É que eu venho tentando falar com ele há dias…”.
“Espera aí, Chico, vou chamar ele lá no fumódromo!”.
Fui correndo. Nunca mais tratei o Mauro Dias com o mesmo ranço.
Curiosamente, a última vez que o vi foi num show do Chico Buarque no HSBC Brasil, estava com uma companhia charmosa, tinha um balde de cervejas à frente e ocupava a mesa de frente pro crime, na primeiríssima fila. Demos muita risada juntos.
Os telefones de notáveis que ainda tenho na minha agenda, alguns deles já extintos, como o de Raphael Rabello, me foram arrumados pelo Mauro. Ele me apresentou figuras memoráveis, como o Pelão, o mais generoso turrão da MPB.
Cobrimos dezenas de festivais e shows juntos. Mauro era blasé e detestava aquela minha sanha transpiracionista (o jeito de ficar cavocando para achar notícia, para saber o que tinha causado o apagão no som, o que tinha feito João Gilberto xingar a casa de shows, etc).
Briguei uma vez com ele porque ele tinha preguiça de ir até o fumódromo e fumava com o cigarro escondido debaixo da mesa. Ambos éramos do tempo em que era permitido fumar na redação, mas eu nunca fumei, achei que estava na hora de ser inflexível. Ele só riu.
Nunca fui muito solidário com o Mauro, achava que nossos mundos eram irreconciliáveis. Quando ele saiu do jornal e abriu uma loja de discos e um bar lá do lado do Sesc Pompeia, eu nunca fui visitá-lo.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

3 COMENTÁRIOS

  1. Eu fui parar na redação da Agência Estado com 19 anos, para fazer roteiro de cinema, e como era impertinente pra caralho, e lia os seus textos e os do Mauro desde muito tempo, no Estadão que meu pai assinava, logo estava metido no meio de vocês, fazendo uma ou outra coisa, espionando, para ver se aprendia. Com você, eu descobri o que é ser um repórter de cultura. E também tínhamos e temos toda a identificação política e estética. Com o Mauro eu não aprendi nada e ao mesmo tempo tive as melhores conversas sobre música da minha vida. Jamais esqueço de um Free Jazz, em que estávamos todos em busca de algum show da moda, que só rolaria ali, e Mauro me disse que não saíria do palco club (acho que era isso) onde só ia rolar jazz mesmo. Cada vez mais acho que ele tinha razão nas escolhas. E que o Mauro vá bem, né Jota. Que vá encher a cara num inferno melhor que esse aqui.

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