“Esse prefeito bloqueou a cidade inteira. Eu não posso mais sair de carro”, queixa-se o homem de meia idade a sua esposa. Ambos bebem vinho e estão instalados confortavelmente  num restaurante mais ou menos exclusivo de um shopping center mais ou menos exclusivo da cidade de São Paulo. Lá fora, sem tanto conforto e ao ar livre, a capital do estado de São Paulo comemora seu aniversário de 462 anos de idade.

Cá dentro, o homem e sua esposa aguardam a refeição e examinam o cardápio que têm em mãos para depor Fernando Haddad da cadeira de prefeito paulistano nas eleições que vêm aí. Ele cita primeiro João Doria Jr., em seguida Andrea Matarazzo. Lá fora, a cantora baiana Daniela Mercury já terminou de arrastar em trio elétrico um mar de gente feliz pelas ruas provisoriamente desabitadas de carros da já quase quinhentona cidade.

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Paulistanos de cá e de lá, autóctones ou alienígenas, vivemos todas nós esse choque de mentalidades. Não é a tropa de choque da Polícia Militar do governador Geraldo Alckmim, mas sim o choque de mentalidades que ganha as avenidas e os shoppings da capitania neste feriado ao mesmo tempo chuvoso e ensolarado.

O domingo, véspera do aniversário, é dia atípico mesmo para os dias de folga e feriado em SP. Começa corriqueiro, como já estamos quase nos acostumando: a dada altura a avenida Paulista se fecha para os automóveis e se abre para bicicletas, skates, patins, pés calçados e pés descalços. Às 15h, a mais emblemática avenida da cidade parece um festival de superestrelas do rock, com idosos, crianças, bebês, cachorros e patos gigantes infláveis da Fiesp ajudando a compor a plateia que também é palco.

De repente cai um temporal, prova inconteste de que o taciturno José Serra se encontra à espreita para ocupar o lugar guardado por Andrea Matarazzo na disputa que vem aí. A Paulista se esvazia como por encanto, para júbilo da mentalidade serrista. A chuva de verão para. A Paulista se enche novamente, novamente como que por encanto.

Cumprido o trajeto mais corriqueiro, vou para a novidade. Desço a colina da Paulista ate as esquinas entre as avenidas Brigadeiro Faria Lima e Rebouças, onde Daniela Mercury já começou a cantar sucessos carnavalescos (ou não) da Bahia e do Brasil. Há outra multidão atrás (e na frente) do trio elétrico, e a olho nu parece dez vezes maior que a multidão do domingo banal nas praias da Paulista.

Conforme a massa humana evolui, a engenharia de tráfego vai interditando longos trechos avenidados da Faria Lima, da Rebouças, da Brasil, da Henrique Schauman, da Consolação, à noite novamente da Paulista.

O homem do shopping tem razão: parece que Haddad bloqueou a cidade inteira nesse domingo de pré-carnaval!

Mas é aí que entra o choque de mentalidades. O oceano de gente feliz bloqueia, sim, as avenidas, mas para quem? Para os seres de duas ou de quatro patas? Para os seres de quatro patas ou de duas rodas, de duas patas ou de quatro rodas?

A certa altura, a foliã e o folião percebemos arrepiados até o couro cabeludo que a avenida Rebouças, rastejante que nem cobra pelo chão, está inteirinha livre e desimpedida para a circulação dos pedestres, das ciclistas, dos patinadores, das skatistas, dos cachorros, das crianças. A avenida está de fato bloqueada para os automóveis, mas paradoxalmente (ou não) há mais gente circulando livremente pela cidade do que haveria se o trânsito estivesse parado, cada qual no seu carrinho.

Não converso com ninguém da prefeitura para escrever este texto. Não sei se o “bloqueio” da “cidade inteira” é (como diria a verde Marina Silva) programático. Mas parece evidente a qualquer bom observador que Haddad, malandramente, está expandindo pela cidade e entre as cidadãs e os cidadãos o conceito de uso público das vias públicas da cidadania.

Um dia fecha aqui, outro dia fecha acolá, daqui a pouco, pluft!, está a cidade inteira presa e interditada. Ou, variando-se o ponto de vista ideológico: um dia abre aqui, outro dia abre acolá, daqui a pouco, vrah!, está a cidade toda livre e desimpedida.

À experiência de cada cidadã ou cidadão, seja no shopping ou na avenida, cabe definir e compreender qual posição é de mudança ou de reação, progressista ou reacionária, transformadora ou estacionária. As urnas já estão abertas, para mim e para você. Inacreditavelmente, a cidade que antes parecia ser só fígado passou pelas gestões culturais do tropicalista Juca Ferreira e do urbanista Nabil Bonduki e agora está toda fantasiada, em pleno e mero janeiro. O carnaval nem chegou e as avenidas estão apinhadas não apenas de gente “normal”, mas também de faraós, ciganas, sereios, índias, personagens de HQ, evas, adões.

Para os do lado de lá do muro e para os do lado de cá do muro (e também para quem vive acocorado em cima do muro), uma enxurrada transgressora, revolucionária, passa por nós como se fosse o rio dos subterrâneos do Anhangabaú da Felicidade. Diante do aniversário-carnaval, os conceitos de mobilidade urbana ficam momentaneamente em choque, em xeque.

O Movimento Passe Livre (MPL) não comparece aos festejos de carnaval aniversário (ou parece que comparece, mas para apenas para xingar o mundo e jogar garrafa plástica na testa do prefeito também aniversariante).  Seguindo o trio de Daniela,  eu torço para que tais bravos jovens estejam sim presentes na passeata do prazer, ainda que camufladas em fantasias outras que não as placas e os dizeres de ordem de sempre.

Na militância à moda antiga, do tipo que ainda manda flores e recebe bombas, o MPL-sigla deixa de perceber que, em pleno movimento, a cidade inteira “bloqueada” pelo prefeito é também um movimento de passe livre, sem sigla nem maiúsculas. O movimento, desorientado, queda-se perplexo diante do próprio enigma: menino mimado ou mulher adulta?

Os conceitos de passe livre, de livre passagem e de um mundo sem (ou com) catracas estão em cheque, em xoque. O choque de mentalidades é entre quem pensa que o carro (ônibus, caminhão, helicóptero, metrô, avião etc.) é maior que as gentes e quem pensa que as gentes são maiores que o maior avião supersônico que exista no mundo. As catracas ainda não todas, mas as urnas agora vivem abertas.

A Polícia Militar do governador queda paralisada em meio à festança.

Os robocópteros da Rede Globo não sobrevoam os girassóis.

Há famílias inteiras curtindo a marola, a maré, a maresia (apesar da crise).

O clima é pacífico e ordeiro, ainda que alucinado por hits como “Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás”, de Raul Seixas.

Apesar da paz, da harmonia, das famílias e da crise na mobilidade automobilística na “maior cidade”, o Partido da Imprensa está calado diante do domingo atípico de feriadão aniversariante.

Os black blocs, se vieram, vieram fantasiados de odalisca, padre ou jacaré.

Os anonymous estão beijando na boca atrás da árvore centenária que nem percebíamos que mora no canteiro central da Rebouças com a Paulista e a Consolação.

As artérias da maior cidade da América do Sul estão tentando se livrar do colesterol (estão?).

Enquanto os militantes do Passe Livre hostilizam o promotor da passeata do passe livre, a passeata passeia e passa livremente pelas avenidas desbloqueadas da cidade aniversariante. A chuva e o sol simultâneos demonstram que, chova ou faça sol, a refrega de 2016 será dura na cidade indecisa entre o público e a privada, entre os quadrados e as rodas, entre os bípedes e os quadrúpedes, entre o passado e o futuro.

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25 COMENTÁRIOS

  1. Perfeita análise do momento presente. É estarrecedor a maneira como a maioria ignora a pequena revolução em curso, o termo que cunhou “choque de mentalidades” define bem e é isso que tá acontecendo…só não sabemos como isso irá terminar, temos duas saídas: o retrocesso se agiganta ou a mudança sensível que pende para uma mentalidade mais aberta, compreensiva, humana.

  2. É lindo, muitas e muitas pessoas adoram esse tipo de festa. E as muitas e muitas pessoas que não gostam ou não podem participar? Devem ficar trancadas em casa, sem poder também aproveitar o dia, já que a cidade trava?
    Além disso é uma manifestação pra gente jovem ou um tanto mais. E principalmente gente de saúde perfeita que pode participar desses eventos. E quem não é assim (e somos tantos e tantos)?
    Tudo na vida é dialético, e o maravilhamento com essas movimentações também precisa ser visto do outro lado (outros lados) além da burguesia enfezada (em todos os sentidos).

    • Merecemos “aproveitar o dia” + “a cidade trava” porque estão aproveitando o dia – qual seria a solução possível para um impasse desses, Márcia?

  3. Gostaria muito que o prefeito parasse de mandar fiscais do Psiu contra teatros e botecos. Tudo bem que são áreas que interessam à Setin ou à Zarvos, mas precisamos de algum espaço pra respirar que não seja dominado pelo capital, não?

  4. Muito bom. Eu também queria saber:
    1) O que o MPL realmente quer?
    2) Como pretende realizar o que quer? Quando?
    3) Que estrategia pretende usar? Com quem?
    4) Pretende conquistar apoio da população ou so quer tomar porrada da PM bandida de graça, colocando em risco os desavisados?

  5. Pena que tive de viajar à Maceió para garantir minha vaga na Universidade Federal de Alagoas que ganhei via Enem. Embarquei na Pátria Educadora, de olho no futuro meu e do país, mas confesso que fiquei de coração partido por não poder participar desta festa cívica. Obrigado PAS por lavar minha alma com mais este belo texto. Dia 30 é a vez do Alceu Valença, e nesta estarei dentro!

  6. Estimado Pedro, bom dia!

    Se seu me permitir, gostaria de enaltece-lo pela colocação.

    Infelizmente à massa midiática ainda se faz presente (basta acompanhar alguns comentários)

    Agradeço e o congratulo no sentido de nos fazer “reavaliar” questões emblemáticas.

    Ao mesmo temo, gostaria de registrar meu reconhecimento à relevância do trabalho que o Site CC desenvolve no segmento social, cultural sobretudo com transparência,

    Fraterno abraço, subscrevo-me.

    Bryan Silva, 🙂

  7. O texto é bonito. Mas deixa uma lacuna: E essas gentes, de onde vêm? Será que o paradoxo abrir/fechar a cidade não atende a um perímetro (de)limitado? O Passe Livre à moda “antiga” com sigla (MPL) e maiúsculas defende uma ideia que a cidade aberta se estenda a todas as gentes. A que mora no nesse traçado em que é possível ir de casa ao trabalho, ao lazer, sem depender dos meios moderno-arcaicos de locomoção sobre rodas, como àquela, que de longe, gasta pelo menos onze reais (uma passagem + uma integração na ida e na volta) pelo menos, só pra sair de casa. Imaginem só um casal, uma família com filhos. Quanto isso custa? Será que o show gratuito da cidade aberta se torna realmente gratuito? Por uma cidade livre, sem catracas!

  8. Caro Pedro, gostaria de parabenizá-lo pelo texto, mas faço algumas reflexões.
    (Esse comentário é um desenvolvimento do anterior, quase igual, mas enviado indevidamente… (fique à vontade para excluí-lo))

    O texto é bonito. Todavia deixa uma lacuna:

    E essas gentes, de onde vêm?

    Será que o paradoxo abrir/fechar a cidade não atende a um perímetro e conjunto de pessoas (de)limitado?

    O Passe Livre à moda “antiga” com sigla (MPL) e maiúsculas defende uma ideia que a cidade aberta se estenda a todas as gentes: Tanto à que mora no nesse traçado em que é possível ir de casa ao trabalho, ao lazer, sem depender dos meios moderno-arcaicos de locomoção sobre rodas, como àquela, que de longe, gasta pelo menos R$ 11,40 (uma passagem + uma integração na ida e na volta) pelo menos, só pra sair de casa.

    Imaginem só um casal, uma família com filhos. Quanto isso custa?

    Será que o show gratuito da cidade aberta se torna realmente gratuito?

    O choque de ideias é democrático. A desigualdade não!
    Por uma cidade livre, sem catracas!

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