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Com tom de voz suave e delicado e sob musicalidade luminosa, o moço de feições indígenas canta histórias não exatamente felizes. “Sempre costurando o peito, moço sem respeito, procurando paz/ já andei por vias tortas, me bateram portas, já penei demais/ tenho um maço de receios, não durmo direito, onde está meu lar?”, canta Jaloo na lírica “Last Dance”, décima faixa de seu recém-lançado álbum de estreia, #1.

Um jeito diferente de ser masculino brota da música desse e de outros rapazes que fazem música no Brasil de 2015. Enquanto as barbas se avolumam e as identidades masculinas se libertam, as canções de rapazes como o paraense Jaloo, o pernambucano Johnny Hooker e o paulista Rico Dalasam crescem, aparecem e se impõem ao mundo. O jeito de ser homem é que não se parece em nada com o que o status quo gosta de dizer que as coisas “devem” ser.

Saem de cenas afirmações de masculinidade via agressividade, assédio, grosseria, bravatas dirigidas ao sexo feminino. Entram em pauta a gentileza, a igualdade entre os sexos e as sexualidades, a postura sexual, amorosa e identitária confessional e transparente. Artistas como Daniel PeixotoAdriano CintraThiago Pethit Filipe Catto já testavam há tempos esse registro, e agora é hora de a roda da história avançar um pouco mais.

2015 Jaloo #1Jaloo. A música e a voz de Jaloo tendem ao introspectivo, enquanto sua imagem explode em significados e símbolos. As influências sonoras somam alegria tecnobrega (“Pa Parará”, “Tanto Faz”, “Sky”), tristeza eletrônica leve (“Ah! Dor!”, “Vem”, “A Cidade”), ancestralidade indígena (“Fluxo”, “Chuva”), ternas sonoridades new age (“Odoiá (In Your Eyes)”, “Adeus”).

A interpretação e as letras são contidas, mas a sexualidade transborda no visual e no gestual. “Sente o som, tudo é bom”, resume a agridoce faixa de abertura, “Vem”, um chamado “pra você que sangrou/ pra você que chorou”.

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2015 Modo DiversoRico. Jovem negro de traços árabes, Rico Dalasam trabalha no registro do hip-hop, com influências dançantes, funkeiras, discotequeiras. Ele ainda não tem álbum cheio em cartaz, mas nas seis faixas do mini-CD Modo Diverso já enfrenta os leões do rap, com linguagem de orgulho gay, referências ao candomblé (e à “Odoiá” de Jaloo, sampleada em “Deise”), cabelos sempre extraordinários (Rico já foi cabeleireiro) e discurso de auto-aceitação.

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“Aceite-C” toma emprestada uma levada de Daniela Mercury para reivindicar (a si próprio, mais que aos outros) uma identidade inteira, completa, orgulhosa de si: “Eu/ outro não dá pra ser/ sem crise, sem chance, que a vida é uma/ aceite-c”. Em “Reflex”, o rapper é ainda mais afirmativo: “Sintetizando, eu acredito que você é a pessoa que mais pode te aceitar dentro da sua história/ ninguém vai conseguir te aceitar mais do que o quanto você se aceita”.

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“Ficou rica de uns anos pra cá/ (…) tá riquíssima/ eu sou um hit machine (…)/ achou que eu tava louco de Martini (…)/ eu não entro nessas filas, sou fina/ (…) sou filho de mãe nordestina”, Rico embaralha as cartas sexuais em “Riquíssima”, sob sons de berimbau. Se por hábito mulheres são tratadas coletivamente no masculino, por que os homens não deveríamos também nos reconhecer no feminino?

Assimiladas as identidades femininas, a palavra de ordem “aceite-se” (e/ou “aceite ser”) refere-se a ser gay, a ser negro e, por que não?, a ser homem. É possível ter orgulho.

Johnny

2015 Eu Vou Fazer uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!Johnny. Se a expressão geral ainda encontra travos de timidez tanto em Jaloo como em Rico, a síntese se faz garganta rasgada do pernambucano Johnny Hooker, que vem beliscar os tabus sexuais num vértice virtuoso entre Ney Matogrosso Angela Ro Ro, Cida Moreira Cazuza, Rita Lee Cássia Eller.

Provavelmente desde Ney (de registro mais feminino) e Cazuza (que não era bom cantor), nenhum homem brasileiro soltava a voz com o apetite e a desenvoltura que Johnny entrega à música brasileira em sua estreia com Eu Vou Fazer uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!

Hooker não conta histórias açucaradas. “Você não me procura nem mais pra saber se eu existo/ não responde meus recados, me trata feito lixo/ se não me quiser não me procure nem mais pra foder, eu insisto”, vocifera em “Alma Sebosa”. “Eu vou chamar Iansã e Ogum e Oxalá/ vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito”, ameaça em clave de rock’n’roll na faixa-título, hino de um tempo sem princesas nem príncipes.

Embora algo romântico (e lamurioso), não se desperdiça em amores platônicos ou castiços. “Então procurei/ pelo teu cheiro nas ruas que andei/ nos corpos dos homens que amei/ tentando em vão te encontrar”, provoca em pique de brega norte-nordestino em “Volta”, canção egressa do filme Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, outro libelo de identidade masculina.

Johnny também gosta de se esparramar entre identidades masculinas e femininas (“me livrar de você/ demônia/ sátira/ víbora”, atira ao parceiro, ou parceira, em “Chega de Lágrimas”). Longe da guerra de sexos ou da era draga queen, as formulações celebram o masculino sem desvalorizar o feminino, como estabelece a saborosa “Boato”: “Dizem por aí/ que meu cabelo é de rapaz/ e o meu olhar de homem/ mas eu faço muito mais”.

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A atmosfera hookeriana é de afronta e desbunde (“fumo a noite inteira com as minhas negas, gatas sensacionais/ a vizinhança inteira cai na brincadeira, me chamam satanás”, diz a mesma “Boato”). Não há, porém, a inconsequência “open bar” em voga entre a geração sertaneja universitária: “Dizem por aí que ando com álcool a me envenenar/ mas é que existem coisas aqui em mim que preciso matar”. Ninguém bebe só por beber, como (não) sabia mãe Ro Ro.

Da delicadeza de Jaloo à aspereza de Johnny Hooker, passando pela altivez de Rico Dalasam, o traço comum entre esses (e outros tantos) homens é a busca de uma expressão masculina mais inteira, menos ressabiada, mais orgulhosa, menos ofensiva, mais adulta, menos defensiva.

Vão longe os tempos de “homem não chora” e “homem que é homem blábláblá”: sejam hétero, homo, bi, trans, pós ou o que quiserem ser, Johnny, Jaloo e Rico mostram que homem que é homem chora, ri, dança, rebola, sofre, grita, se descabela, arruma o cabelo, rasga as roupas e a voz, se veste e se despe.

 

(Não é proposital, mas este texto pode ser lido como uma homenagem ao crucial movimento feminino #MeuPrimeiroAssédio. O orgulho masculino só pode existir onde o orgulho feminino viceja. O orgulho heterossexual só pode existir onde o orgulho homossexual vibra. O orgulho branco só pode existir onde o orgulho negro resplandece.)

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20 COMENTÁRIOS

  1. Você está me dizendo que ser homem, hoje, é ser Gay? Homem pra ser homem tem que ser Gay?
    Pensei que gay não era homem, sim um sexo distinto.
    E eu sou o que? Nada? Homofóbico? O conceito de homem mudou? O homem clássico é coisa do passado? O homem de hoje deve se vestir como lady gaga?
    O mundo hoje me sufoca e me coage a ser do jeito que ele quer. Na mídia, na universidade, nos locais de formação de conceitos somos bombardeados com essa propaganda homoafetiva todos os dias. Vocês já são maioria e eu me sinto coagido, tiram de mim a autonomia de decidir racionalmente, dialeticamente, pois se não for do jeito que vocês querem, sou ultrapassado e homofóbico.

    • Você faz perguntas como se afirmasse coisas que eu tivesse afirmado, xará… Meu texto não diz, não, o que você está dizendo que ele diz.

      No mais, só você pode responder às suas questões existenciais, né?

    • Ah coitado!! Mais um hétero sufocado pelas bichas mortas todos os dias e mulheres espancadas pela mesma categoria dele. Tadinho… Sendo sufocado por amor, arte e purpurina!!

      • Esse meu comentário já vai fazer dois anos. Hoje eu tenho um entendimento mais amplo.
        Em resumo, orgulho gay é como orgulho negro, socialmente necessário, para equilibrar as forças.

  2. Linda matéria! Precisamos falar do novo homem da nova mulher, da liquidez da sexualidade, do mundo que se dissolve no ar.
    Precisamos de mãe, pais, profissionais, professores, pessoas, que sejam humanizadas e solidarias>
    Acho que essa molecada que veio quebrando tabus tá dizendo isso “me aceite ou me aceite.”
    Ninguém mais quer ser silenciado, ninguem quer sofrer agressão gratuita.
    E não falamos só de gays e toda a comunidade LGBT+, mas os próprios héteros. Eles querem abraçar seus amigos, dizer que ama, se vestir como quiser, assistir romance e chorar, brincar de boneca. Por quê não?
    Viva o séc XXI. Ou agarre-se ao passado e não viva o que a há de natural e que a sociedade esta reclamando. Uma vida igualitária.

  3. Bem bacana e matéria.
    Os trabalhos de Rico Dalasam e Jaloo ainda muito insipientes, demandam por mais tempo para vermos a consistência de ambos.
    Já o Jonnhy Hooker já está mais estruturado, tem um dado efetivo no qual podemos nos debruçamos, que é o disco/cd “Eu Vou Fazer uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!” [na matéria escreveram Bandido…]. O Resultado é ótimo.
    Em “Vou Fazer uma Macumba…” há canções ótimas, como a citada no texto “Alma Sebosa”. Nesta podemos constar que “tem tudo da passionalidade ibérica. As mulheres de Almodóvar se traduzem nessa canção. Trilha sonora do próximo filme do diretor de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, ou “Ata-me!”, ou “De Salto Alto”, ou “Kika”, ou “A Flor do Meu Segredo”, ou ainda os geniais “Carne trémula”, “Tudo Sobre Minha Mãe”, “Fale com Ela”, etc., etc…
    Pernambuco-Catalunha, Recife-Barcelona [como desejou o poeta João Cabral de Mello Neto] , clima passional madrilenho, o cabaré de Carpina… Tantos pernambucos nos habitam, quantos desejos nos aprisionam… A música de Hooker nos liberta…”
    Os três artistas documentam as mutações das sensibilidades em tempos de transformações históricas.
    É isso.

  4. Estava eu zappeando a page do Jaloo (que gosto muito) e encontrei o seu texto. Escrevo emocionado após ler e perceber seu olhar fora da curva sobre a liberdade masculina referenciadas nesses três artistas que muito contribuem para o rompimento desse conservadorismo imposto. Recebi uma massagem na alma. Grato!

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