No próximo dia 29, irá a leilão na casa Sotheby’s, em Londres, esse papel datilografado aí do lado por um valor que vai de 150 mil a 200 mil libras (de R$ 900 mil a R$ 1,2 milhão). Trata-se da letra de A Hard Rain’s A-Gonna Fall, de Bob Dylan, uma de suas canções mais cataclísmicas. Mil visões de apocalipses compõem a letra, algumas bem bonitas, como “ouvi mil bateristas cujas mãos estavam em brasa” (lembrou Whiplash?).
Foi gravada três dias depois que eu nasci, em dezembro de 1962. Foi datilografada numa máquina de escrever Remington no apartamento de um amigo de Dylan chamado Hugh Romney, no Greenwich Village de Nova York, onde ele estava albergado.

“Escrevi a canção quando não sabia se teria mais tempo nessa vida, não sabia quantas outras canções teria a oportunidade de escrever”, disse Dylan. Acontece que havia, naquele ano, um aprofundamento da crise da Guerra Fria entre Rússia e Estados Unidos, e o mundo vivia uma tensão ainda não imaginada – Kennedy e Kruschev estavam brincando de duelo em O.K. Corral com as vidas do planeta inteiro.

Essa coisa de vender memorabilia é antiga, mas pegou fogo no mundo dos cifrões ultimamente. Dylan mesmo bateu o recorde da coisa, em junho do ano passado, quando leiloaram o manuscrito de Like a Rolling Stone e o valor final foi de US$ 2 milhões. Uma insanidade. Dylan bateria ali o recorde anterior, que era do manuscrito de John Lennon para Sgt Pepper’s.

Sem querer entrar num análise moralista da coisa – se alguém vende e alguém compra, problema deles -, eu saí a campo para ouvir de novo A Hard Rain’s A-Gonna Fall, que perdeu espaço no repertório recente de Dylan e mesmo nas compilações que tenho. Em 1962, entretanto, ela estava no pico de sua atualidade. Todo mundo a cantava no Village, gente como Pete Seeger, Richie Havens e Hamilton Camp, segundo nos conta o escritor Nigel Williamson.

Segundo Williamson, o longo poema em verso livre de A Hard Rain foi estruturado como nos poemas dos simbolistas franceses. “Queria despejar o máximo do que sabia em uma única canção, o máximo que podia, e compus assim. Todo verso é, na verdade, uma canção inteira, poderia ser usado como uma canção inteira. Cada verso vale uma música”. O texto datilografado traz as correções de Dylan para a canção e até um final alternativo. A quem isso pode interessar? Não sei, talvez algum historiador de música faça algum proveito.

Dylan negou que tenha profetizado chuva radioativa na letra da música. “Estava falando sobre todas as mentiras que são contadas no rádio e nos jornais, tentando roubar os cérebros das pessoas, todas as mentiras que considero veneno”, disse, explicando que era uma chuva metafórica. Mas o resto é bem real: oceanos mortos, árvores pingando sangue, poetas na sarjeta. Grande canção, ouçam o bardo cantando em 1964:

http://www.dailymotion.com/video/xq1q9k_bob-dylan-a-hard-rain-s-a-gonna-fall-1964_music

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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