Saiu no Brasil uma pequena coleção de uma pequena editora destinada a destrinchar discos inteiros. O nome da coleção é O Livro do Disco, é inspirada na série americana 33 1/3, e foi lançada pela editora Cobogó em maio (eu recebi em julho, mas só agora pude abrir o pacote). A editora pertence a Isabel Diegues, filha do cineasta Cacá.
Os livros que ela editou até agora são os seguintes: Daydream Nation – Sonic Youth, de Matthew Stearns; Endtroducing – DJ Shadow, de Eliot Wilder; A Tábua de Esmeralda – Jorge Ben Jor, de Paulo da Costa e Silva; LadoB LadoA – O Rappa, de Frederico Coelho; Estudando o Samba – Tom Zé, de Bernardo Oliveira; e um verdadeiro clássico do gênero, The Velvet Underground and Nico, de Joe Harvard.
Comecei lendo esse último, que é um minucioso exame da obra máxima da banda nova-iorquina Velvet Underground, lançada em 1967 (o livro é de 2004).
O autor, Joe Harvard, analisa tudo que influiu ou que significou recuo ou avanço na feitura do disco, incluindo a rejeição quase unânime da banda à vocalista Nico (codinome da alemã Christa Päffgen).
Da influência de Raymond Chandler na forma de Lou Reed escrever suas letras às manhas de afinação de John Cale, está tudo ali. Claro que o mais interessante é a urdidura, é como o cara defende sua avaliação do clássico. Por que o disco venceu o teste do tempo e se tornou um dos mais influentes do rock em todos os tempos?
Cada livro da coleção custa R$ 32, todos têm o mesmo projeto gráfico e não têm fotos. São só ideias e História. Vale o investimento. Separei um trecho sobre uma única música do Velvet Underground como amostragem, espero que a editora não se importe.

HEROIN


Heroin é geralmente citada como a mais extraordinária gravação de The Velvet Underground and Nico, bem como o único grande feito da banda no que diz respeito a singles. Sterling Morrison se referiu a ela como “possivelmente a melhor canção de Lou Reed, e uma canção verdadeira”.
Existem pouquíssimas canções no cânone do rock que se equiparam ao seu poder de traduzir uma experiência física por meio de uma detalhada paisagem sonora. Não que existisse muita competição na época em que Heroin foi composta (1965), gravada (1966) e lançada (1967). Até mesmo esforços posteriores, como Chinese Rocks, de Dee Dee Ramone, ou Dope Sucks, de Herman Brood, se contentam apenas em catalogar os resultados do uso de heroína. Heroinpermanece invicta como uma descrição em tempo real de um estado induzido por opiáceos. 
Por vezes é rotulada como a primeira “canção sobre drogas”; contudo, os artistas do blues há muito tempo haviam conhecido os férteis campos da coca, da cannabis e da papoula. Blues como Cocaine Blues e Spoonful se juntam às canções sobre drogas na música popular – até mesmo a versão original de La Cucaracha descreve a barata mexicana incapaz de viajar pois “não possui marijuana para fumar”. Heroin é a primeira e provavelmente a melhor canção do rock a tratar as drogas de modo direto; mas essa é somente a qualidade mais óbvia entre todas que possui.
Uma das razões da canonização dessa canção pela crítica é o reconhecimento de que ela criou sua própria categoria. A canção esmagou as grades que separavam as melosas músicas do rock’n’roll comercial da multiplicidade de tópicos disponíveis no cinema e na literatura e, ao fazer isso, deu as compositores a liberdade de escrever sobre a vida real. Seria um erro imaginar que Heroin e I’m Waiting for the Man são meras precursoras de outras canções sobre drogas e sobre os demais temas obscuros da sociedade; elas o foram, mas são também muito mais do que isso. Ao evitar os tópicos “seguros” e aceitos, e ao escrever sobre as situações-limite da vida, Reed tornou possível que o rock, dali em diante, incorporasse os dois extremos do espectro e tudo que existe entre eles. Musicalmente, David Fricke talvez seja mais eloqüente em descrever a razão de Heroin ser tão importante no catálogo musical do Velvet Underground:
No final das contas, Heroin é a essência microcósmica de tudo que ocorre musicalmente em The Velvet Underground and Nico – a tumultuosa colisão da devastação da guitarra e do gemido da viola, dinâmica oscilante entre o barulho completo e a esquelética melodia de ninar, as ousadas mudanças de ritmo e de tempo. É uma canção de um engenho programático, que o suga até o início do “barato” do dependente, com uma aceleração viciantes, e subitamente chega a uma calmaria morta, como quando o estado opiáceo se inicia.
Heroin foi a primeira arma que o Velvet Underground usou para demolir as muralhas que encarceravam os compositores do rock, e o fez usando apenas dois acordes: ré e sol. A economia com a qual o Velvet produzia seus arranjos ainda faria do grupo a maior influência da rebelião musical conhecida como punk.



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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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