Quadros de Choque e paredes da galeria Crivo, que foram alvo da ação de pichadores - Foto Jotabê Medeiros
Quadros de Choque e paredes da galeria Crivo, que foram alvo da ação de pichadores – Foto Jotabê Medeiros

A rua não precisa de porta-voz.

A frase, que vi ainda pingando tinta, pichada na parede da galeria Crivo, na terça-feira, me pareceu uma atualização stalinista do “É Proibido Proibir”. Como se um invasor espetasse um bilhete de advertência na porta com uma flecha: “EU sei o que a rua precisa. EU decido o que ela não precisa. EU decido os limites da rua. EU sou a única voz que representa a rua”.

Escrito por ativistas de um grupo de pichadores, que destruíram fotos do artista conhecido como Choque, aquele slogan sugeria que uma ética invisível separava irreversivelmente as autênticas criaturas das ruas de eventuais “invasores” intramuros. Os pichadores não admitiam que houvesse outra testemunha de sua ação na paisagem urbana que não fossem eles próprios.

A invasão da Crivo, tirando a natureza claramente despolitizada da ação, me sugeriu que está em curso mais que um choque de concepções estéticas, mais que uma negação do velho pelo novo, mais que uma estratégia de superação e talvez até mesmo se esteja revelando um conceito novo de propriedade, alicerçado na mentalidade de gangue.

Meu amigo Juvenal saudou o acontecimento como um pequeno tornado a sacudir o marasmo de um cenário artístico estagnado, entregue ao compadrio e à subversão de encomenda para o mercado. Eu não sou tão otimista: acho que o manifesto revela uma dolorosa confusão mental, uma trupe de postulantes que confunde performance atlética com criatividade, clandestinidade com exílio, estado de sítio com enfrentamento.

A rua não precisa de um único porta-voz porque a rua tem muitas vozes e muitas verdades incompletas. A rua precisa menos ainda dessa mentalidade de pedágio artístico, uma cobrança de fidelidade territorial que exala medievalismo. A rua precisa de tradutores, porque são cifradas suas mensagens e seus pedidos de socorro ou rendição. Só não precisa mais é de lombadas intelectuais imaginárias.

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

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3 COMENTÁRIOS

  1. O artista Choque fotografa pichações feitas por outros e as expõe numa galeria da Vila Madalena, para vender. Ou seja, artista e galeria ganham dinheiro (e bastante, pois é ‘arte’) utilizando o trabalho de quem nada cobrou ou cobra por ele; antes, ao contrário, arrisca-se à prisão, à violência, até à morte numa queda, para o fazer.
    Além das fotografias de Choque, vende-se aí, também, a ‘chance que ele dá ao pichador de ver o seu trabalho numa galeria de arte’, mesmo que seja dentro da obra de outro – esse sim, um ‘artista’. Em troca do ‘favor’, retira-se à pichação o seu caráter de antiestética, antiarte, antimercado, antistatusquo, transformando-a em seu contrário, em algo que quer e precisa do aval do artista e do mercado para… ser.
    Isso, no meu pobre léxico, se chama parasitismo. E, se uma árvore não pode livrar-se de um mata-pau que a suga, nós, pessoas, podemos ao menos denunciar quem se apropria de nosso (com tudo que os possessivos possam ter, em arte, de discutíveis) trabalho, rouba-lhe o sentido que lhe demos para (im)por-lhe o dele e ganha dinheiro com isso.

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