A música brasileira não seria a mesma sem Arnaldo Dias Baptista. Gênio criativo do grupo paulistano de rock Mutantes, ele permaneceu no que classifica como ostracismo durante décadas após o sucesso do grupo nos anos 1960 e 1970. Ao tentar suicídio com a idade de 33 (“quase um messias do rock”, como ele mesmo gosta de dizer), o compositor renasceu das cinzas com o auxílio de sua esposa Lucinha, de seu trabalho com as artes plásticas e da lenta volta aos palcos como músico e intérprete.

Na vanguarda da inventividade musical, o autor de “O Meu Refrigerador Não Funciona” (1970), “ O A e o Z” (1973, inédito até 1992) e  “ Uma Pessoa Só”  (1974) falou sobre política, drogas, amplificadores valvulados, o disco lançado pelo selo do colega Lobão (pelo qual diz não ter sido pago), a atual situação da música e do rock’n’roll, seu álbum novo – e sobre estar no processo construtivo de um disco voador.

Excêntrico e bem-humorado, Arnaldo, que hoje vive em Juiz de Fora (MG), atendeu FAROFAFÁ por telefone em uma conversa que durou 40 minutos.

Arnaldo Batista-Pintando_

 João Paulo Martins: Como você enxerga o atual período da música brasileira? Há algo de interessante que você goste?

Arnaldo Baptista: É um período de inatividade criativa. Há também o problema profundo em relação aos amplificadores, que não são valvulados. Não existe, entre as empresas que alugam equipamento, nenhuma que alugue amplificadores valvulados. Então todas as bandas estão presas ao esquema de amplificadores digitais que são péssimos, e a maioria dos artistas ainda continua usando. Isso faz perder muito na qualidade final da música. Eu mesmo estou fundando um clube de possuidores de amplificadores valvulados, já que estão virando verdadeiras raridades nos tempos de hoje (risos). O rock mesmo anda meio perdido. Agora, uma banda que me chama a atenção atualmente é o Pato Fu.  Seria interessante citá-los, pois acho algumas coisas que eles fazem realmente legais.

JPM: Segundo o maestro Rogério Duprat, os Mutantes foram o grupo mais interessante que passou pela tropicália, devido à inovação, ousadia e criatividade. Você concorda que o rock brasileiro tenha sido um antes dos Mutantes e outro depois?

AB: Sim, acredito. Sean Lennon, filho do John, disse uma vez que nem os Beatles tinham arranjos tão complexos e maravilhosos como os Mutantes naquele período do Jardim Elétrico (1971). Eu fiquei bobo, completamente maravilhado quando soube disso. Os arranjos do Rogério Duprat foram importantíssimos para a nossa música, eles nos influenciaram muito. Então, o Sean acabou nos reconhecendo dessa forma.

JPM: Qual foi o real motivo de vocês terem gravado o LP Tecnicolor (1970),que foi lançado em 2000, quase inteiramente em inglês?

AB: Esse é um fato bem interessante. Estávamos tocando no teatro Lampe en, em Paris, e apareceu um senhor chamado Carl Holmes, que acabou sendo o produtor do LP. Ele é uma pessoa muito interessante, além de ser o inventor do efeito “fail sing”. Esse efeito, que também foi usado de maneira quase inédita na gravação do LP, foi descoberto quando ele ligou dois gravadores ao mesmo tempo e abaixou a rotatividade de um deles. Como havia um que estava quebrado, o efeito reverso apareceu no som, então ele obteve a patente do nome como criador e inovou a música da época.

Quando ele nos levou até o Des Dames Studioque pertencia a ele na época, finalmente gravamos o disco. No Brasil, já não estávamos mais competindo com o Roberto Carlos e o pessoal da jovem guarda, então gravar o disco em inglês nos colocava em um patamar de competição com as bandas inglesas, como os Rolling Stones, os Beatles, o Led Zeppelin. Estávamos buscando um mercado fora do Brasil, e o inglês seria muito interessante.

JPM: E conseguiram esse mercado?

AB: Na época, eu diria que sim. Nós fizemos diversas turnês pela Europa, e o pessoal costumava comparecer bastante aos shows. Éramos aclamados por lá.

JPM: O que o inspirava no passado ainda o inspira hoje?

AB: É uma coisa profunda de perguntar, não é? Às vezes eu mesmo me pergunto: o que vai adiantar fazer tudo isso? Meu processo criativo tem muito a ver com a minha veia poética, que é muito profunda e difícil de explicar. Uma folha de árvore que estava na Inglaterra antes do show do Elton John que eu vi pode me inspirar durante semanas. Uma calota de automóvel pode me inspirar durante meses. Uma vez eu estava numa exposição nos Estados Unidos e vi um jipe com motor de Corvette, simplesmente fantástico. Imagine você o que não andava (risos)! É esse tipo de excentricidade que me inspira até hoje. As coisas têm que me deixar pasmo para que eu leve adiante o meu processo de criação.

JPM: Há 50 anos, o Brasil sofreu um golpe militar que sacramentou uma ditadura de 20 anos. Como era sua relação e da banda com o regime?

AB: Quando houve o golpe, o meu pai era secretário pessoal do Ademar de Barros (*). Então, andávamos o dia todo com um carro chapa-branca, vidros blindados e rádio comunicador. Tínhamos certa relação de independência da questão política, apesar de o meu pai ter sido preso por uma semana durante o AI-5. São problemas que até hoje não entendo. Nós sabíamos o que podíamos ou não alcançar com aquela situação toda. Tínhamos consciência da situação em que o país se encontrava.  E eu diria que hoje me encontro paralelo à situação política também.

JPM: E tiveram problemas de censura à arte de vocês?

AB: Às vezes a gente editava, no lugar de por uma parte da letra, e também evitávamos entrar em lugares frequentados por militares, ou que fossem relevantes ao status político da época. Quem mexe em formigueiro, acaba sempre sendo picado, né? Há inclusive uma música dos Mutantes (cantarola “Trem Fantasma”, de 1968), em que tossíamos no lugar de dizer  “generais verdejantes”, para mascarar o viés provocativo da letra. Era uma forma que a gente encontrou de resistir.

JPM: Como eram a relação de vocês com as drogas, em especial o LSD? Era uma necessidade para que a arte do grupo acontecesse

AB: Há muitos milhares de anos, na Índia, havia uma pessoa que diziam ser iluminado por ter ingerido um cogumelo alucinógeno. Isso tudo despertava muito interesse na gente. Mas hoje em dia não me atrevo a entrar nesse universo. No Uruguai liberaram a maconha e no Congresso se fala muito em liberar o uso de psicodelismos, né? No entanto, é uma coisa muito difícil de falar a respeito. Inclusive eu acho que pararam de fabricar o LSD puro. Na época, foi uma decorrência para a gente, como foi para a maioria dos conjuntos. Os Beatles mesmo, em “Lucy in the Sky with Diamonds” (1967), provaram isso. Agora, vamos ver o que acontecerá no futuro, né? A gente nunca sabe o que pode vir por aí.

JPM: De que forma o seu período pós-Mutantes, de certo isolamento da mídia, refletiu na sua arte?

AB: Foi num sentido bem íntimo. Hoje em dia, quando vejo um conjunto, sempre tem um item que não gosto. Por exemplo, nos Mutantes, não gostava dos baixos que eram Giannini, das guitarras que eram CCDB (abreviação usada pelo irmão Cláudio Baptista, que produzia as guitarras da banda), dos pianos, que eram Quatro. Nesse sentido, eu sempre achei que existia algo melhor. Então, com essa minha solidão toda, enveredei pelo o caminho de “one man band”, ou em outras palavras, sou eu quem faz tudo sozinho. E não é fácil. Não são todos os dias que eu consigo fazer uma música perfeita, né? Mas vou levando assim. Quando consigo, acabo colocando as asinhas para fora.

JPM: O que você pontua como peça-chave para seu renascimento como compositor após ter sofrido o acidente?

AB: Eu tenho a impressão de que foi o amor. Em todos esses problemas que eu tive na vida, sempre teve algo em que eu me apegava. O amor foi o que mais me seduziu na vida. O amor pela minha esposa a Maria Lúcia, a Lucinha.

JPM: Em 2003, Lobão lançou a revista independente Outra Coisa, que divulgou diversos artistas do cenário underground para o Brasil. A revista também te ajudou?

AB: Em certo sentido o Lobão é uma figura assustadora, no sentido de que ele faz maravilhas e horrores.  O meu álbum que ele lançou pela Revista Outra Coisa, o Let It Bed  (2004), eram 15 mil cópias, só que não deu nada de dinheiro, então a relação parou. Mas acho que não foi ele, foi por outra coisa mesmo (risos). (**)

JPM: Como estão sendo a produção e a gravação do seu novo disco, Esphera? Há previsão de lançamento?

AB: O disco aguarda patrocínio para finalizar as gravações, mixagens, masterização e finalmente o lançamento. Já foram feitos editais no passado, mas isso tudo é uma agulha no palheiro, né? Eu já gravei umas oito faixas ou mais, e está bem legal o processo. Inclusive a minha última música é justamente sobre a diferença entre amplificadores valvulados e digitais.

JPM: Arnaldo, como você enxerga a política? Acredita nela?

AB:  Eu tenho a impressão igual de que você entra limpo e acaba saindo ladrão de alguma forma. Embora meu pai tenha trabalhado mais de 40 anos nisso, eu não tenho esperança alguma na política, não acredito nela. Parece niilista, mas estamos longe de conseguirmos energia solar, ou eólica, por exemplo. O que eu acredito é que temos de apostar mesmo assim. É uma loteria, quem sabe um dia dá certo. Como uma vez que fui até o Ministério da Cultura pedir ao Gilberto Gil a liberação de uma verba para o lançamento de um livro. Ele me disse: “Eu sou o ministro, não o ministério!”. Quer dizer, eles não aprovariam mesmo, e não por culpa do Gil, mas sim pela política… Diziam na minha época que deveríamos seguir os passos dos nossos pais. Se eu tivesse feito isso, estaria me candidatando por algum partido para ocupar algum cargo.

JPM: Partido Psicodélico do Brasil?

AB: Partido Rock e Progresso é uma boa também (risos)!

JPM: Então você acredita mais no rock’n’r roll do que na política?

AB: Acho interessante isso, porque o rock é mais mundial. O rock é muito mais universal, é um governo sem leis, não é mesmo

JPM: E a seu ver ele está morrendo mesmo?

AB: Eu acredito que é uma coisa muito pequena dizer somente rock’nroll. Acho que a música é muito mais do que isso. Temos a música clássica e a valsa, por exemplo. Mas estou falando de barriga cheia, pois uso instrumentos do rock’nroll, apesar de achar que não exista só ele. O rock tem possibilidade de se recuperar, ele nunca esteve totalmente apagado.

JPM: E você preserva a preocupação de mantê-lo vivo?

AB: Eu ainda tenho todas as esperanças do mundo no rock’nroll. Eu ainda uso todos os seus instrumentos! Apesar de as bandas antigas serem tidas como as melhores, sempre acontecerá um novo Beatles ou Rolling Stones. Estou esperando um novo messias para a religião que é o rock’n’roll. Quem sabe aparece um, não é mesmo ( risos)?

JPM: Arnaldo, como era a relação de vocês com o resto da tropicália? Você se sentia deslocado ou se sentia parte integrante do movimento?

AB: Éramos o único grupo, junto com os Beat Boys, que eram argentinos. Os outros eram mais individuais, como o Caetano Veloso, o Gil, a Maria Bethânia (sic) e o Tom Zé. Não tínhamos muita comunicação com eles, apenas um pouco mais com o Gil. Ensaiamos juntos e frequentávamos o apartamento dele e do Caetano na av. São Luís, em São Paulo. A nossa linguagem era mais guitarra, órgão e amplificadores. O Gil e o Caetano eram mais letras, política e filosofia. Mas a gente tinha certo intercâmbio cultural. Sempre arrumávamos um modo de encontrar com eles e até mesmo com o Jorge Ben.

JPM: Arnaldo, para finalizar, me conte sobre a história de você estar construindo um disco voador. É realmente verdade?

AB: Isso é uma coisa que estou fazendo, mas é uma coisa futura. Eu já vi um disco voador na minha frente, ultrapassando a velocidade da luz e desaparecendo novamente. Mas eu tenho a impressão de que conseguirei isso através de eletromagnetismo e gravidade. Vou ter de trabalhar com as partículas grávitons e usar supercondutores, que já existem na Alemanha, inclusive. Para ultrapassar a velocidade da luz, é preciso eliminar os grávitons. Eu já fiz um giroscópio com a Lucinha, usando alguns materiais. Porém, é algo que eu ainda estou engatinhando. Preciso arrumar um jeito de construir o levitador.

 

(*)  Ademar Pereira de Barros foi um político e governador de São Paulo (1947-1951 e 1963-1966). Sob a paranoia de ameaça comunista no Brasil anterior ao golpe de 1964, foi um dos responsáveis por disseminar as ideias em defesa de valores religiosos e tradicionais da família brasileira. Após ter seu mandato cassado pelo presidente Humberto Castelo Branco (1964-1967), em 1966, mudou-se para Paris, onde faleceu em 1969.

 

(**) Procurado por FAROFAFÁ, João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão, se posicionou sobre a afirmação de Arnaldo quanto às 15 mil cópias que não deram dinheiro: “Há de se entender que, desde a sua criação, a revista Outra Coisa foi gerenciada por pessoas que se associaram com o meu nome. E eu, na verdade, acabei emprestando a minha visibilidade para a existência da revista. Eu comecei escrevendo uns editoriais e escolhendo as bandas, mas nunca entrei nos assuntos comerciais (nem ganhei absolutamente nada, nenhum centavo sequer com a revista, em nenhum momento da existência dela). Por sinal, ela só me trouxe muitos aborrecimentos e críticas maldosas que estão me custando amolações até os dias de hoje. E saiba também que eu sempre relutei em fazer a revista por ter certeza absoluta que aquilo não ia dar certo”.

 

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4 COMENTÁRIOS

  1. Tudo bem, pode ter seu valor. Mas percebe-se que a revista cartacapital vive no passado. A pauta é só sobre a década de 1960/1970. É um asco. Todas as matérias são sobre a ditadura, sobre a perseguição, sobre o nhém nhém nhém. Não conseguimos enxergar 2015, nem a semana que vem. Vivemos remoendo o passado, tipo uma vaca mastigando o pasto, engolindo e regurgindo o mesmo pasto. Ou seja, é uma bosta.

    • ou seja, são sempre os mesmos atores e artistas. Gilberto Gil é um velho gagá, mas é sempre citado. Caetano Veloso já deu o que tinha que dar, mas cartacapital fica enfiando goela abaixo sempre a mesma ladainha. Aliás, ler cartacapital é ler um folhetim do partido, é dirigir um carro olhando somente para o retrovisor. To fora. Quero respirar. Quero o novo.

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