Seguindo a canção

Joan Baez desentoca e paparica Geraldo Vandré num encontro de ícones do protesto. A musa só não conseguiu fazer o ermitão cantar

29 de março de 2014 | 16h 00

Jotabê Medeiros
No domingo passado, depois de um show catártico no Teatro Bradesco, já no camarim, a cantora norte-americana Joan Baez, 73 anos, anunciou, exultante: “Esta noite vou sair para dançar!”. A seu lado, sentado em uma poltrona, o também cantor, compositor, advogado e notório ermitão brasileiro Geraldo Vandré franziu a testa, demonstrando alguma preocupação. Aconselhou Joan a recolher-se, não sair pela cidade. Mas ela nem tchuns: “Estou com muita energia, o show foi muito emocionante. Preciso dançar para gastar essa energia”.
Sem perder a ternura. Não houve afago que impedisse a cantora de sair para dançar - Instituto Memória Brasil
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Sem perder a ternura. Não houve afago que impedisse a cantora de sair para dançar
É duro dissuadir Joan Baez de uma ideia. Ela marchou pelos direitos civis ao lado de Martin Luther King em Washington e entrou num abrigo antiaéreo em Hanói para protestar contra a agressão dos Estados Unidos. A esse currículo, soma agora a notável façanha de ter atravessado a noite paulistana dançando no peculiar Ó do Borogodó, nas imediações do Cemitério Municipal de São Paulo, numa atividade não recomendada por Vandré – por sinal, outra façanha de Baez, que o colocou de novo num palco após anos de sumiço.
Aos 78 anos, Geraldo Vandré, o sujeito que Joan Baez desentocou, é uma esfinge das esquerdas brasileiras. Em 1968, o general Otávio Costa (tido como um militar da linha liberal e com alguma formação intelectual) irritou-se com a letra de Pra não Dizer que não Falei de Flores, canção mais conhecida de Vandré e uma espécie de hino não oficial da resistência à ditadura. Escreveu um artigo no Jornal do Brasil desancando a música, segunda colocada no 3.º Festival da Canção (embora fosse a preferida do público). O general sempre negou qualquer intenção de marcar Vandré como subversivo em plenos anos de chumbo. “O artigo era uma análise literária e nunca pedi a punição de Vandré.”
O efeito do artigo do general, no entanto, foi fulminante. No dia 13 de dezembro de 1968, Geraldo Vandré se apresentaria com sua banda em Anápolis (GO). No dia seguinte, cantaria em Brasília (DF). Antes do show de Anápolis, agentes da repressão o procuraram e o intimaram, a ele e seu grupo, a se apresentarem na Polícia Federal em Brasília no dia seguinte.
Vandré reuniu o grupo e decidiram que não iriam à polícia. Seria como se entregar, pensaram. Fizeram o show e, no dia seguinte, Vandré fugiu dirigindo seu Galaxie rumo a São Paulo. Naná Vasconcelos ia no banco traseiro tocando percussão. Ele ainda ficou um tempo escondido na casa da viúva de Guimarães Rosa, no Rio de Janeiro. No Carnaval de 1969, o músico saiu do País pelo Cone Sul e foi para a França.
Dali em diante, pouca gente ouviria falar de novo em Geraldo Vandré, o artista. Seu último elepê, Das Terras do Benvirá, foi gravado na França em 1970 e lançado no Brasil em 1973 (na França, saiu também um compacto simples com o nome La Passion Brésilienne). Desde então, nada mais saiu da sua lavra. Ele regressou ao Brasil, mas recusa-se a reassumir a persona artística.
“Você está querendo falar com Geraldo Vandré. Mas você não está falando com Geraldo Vandré. Você está falando com a pessoa que inventou Geraldo Vandré, entende? Eu me chamo Geraldo Pedrosa de Araújo Dias”, disse em uma entrevista ao jornalista Assis Ângelo, em 17 de setembro de 1978, demonstrando determinação em enterrar de vez seu pseudônimo artístico. De lá para cá, suas aparições são episódicas e suas raras declarações são quase sempre cifradas (quando não totalmente ininteligíveis).
Mas, no domingo à noite, Vandré retornou triunfalmente a um palco em São Paulo. A decisão foi dele mesmo. Queria encontrar-se com Joan Baez, falou em planos de gravar um disco com ela – recorreu à reportagem para fazer a conexão. Deu certo. Joan sempre quis conhecer o “mito”, como ela o chamou. Durante duas noites, Vandré ficou sob os cuidados da cantora, esperando pacientemente no camarim e nas coxias, surgindo no palco sorridente sempre que ela o chamava. Na primeira noite, apareceu com um casaco meio duro, como se feito de lona, simétrico, um boné sem glamour. Na segunda noite, soltou-se: veio de terno e barbeado, sorriso mais aberto. “Muy guapo!”, exclamou Baez ao vê-lo.
A crônica do primeiro encontro entre dois símbolos da resistência à opressão e ao arbítrio foi cheia de lances suaves, e também rocambolescos. “Chemistry!” (“Química!”), admirou-se o empresário de Baez, Mark Spektor, após testemunhar o primeiro abraço dos dois, durante um ensaio. Vandré veio caminhando (só que não cantando, ele não canta mais aqui no Brasil, jura) pelos fundos do palco e Joan ensaiava. Não precisou apresentação: ela se levantou e ambos caminharam sorrindo um até o outro, ficando mais de um minuto abraçados.
Joan Baez tentou quebrar o jejum de canto de Geraldo Vandré. Queria interpretar com ele a clássica Pra não Dizer que não Falei de Flores. Ele não topou. “O problema não é cantar, é a mitologia”, disse. Mas não tem vontade de cantar?, perguntaram a ele. “Aqui no Brasil, não. Quero cantar na fronteira. No Paraguai.” E que tal gravar com Joan Baez? “Se for para o mercado nacional, melhor gravar lá (nos Estados Unidos). Nós somos subdesenvolvidos, o que vem lá de fora é que é bom”, disse o músico, em momentos distintos do seu encontro.
Em dado momento, Geraldo Vandré deu de cara, nos bastidores, com outro convidado da cantora americana, o senador Eduardo Suplicy (PT). Suplicy passou a falar animadamente da primeira vez que viu Joan Baez no Brasil, em 1981, e também de como uma pessoa de sua família tinha visto Vandré pelas ruas de São Paulo, e engatava um assunto no outro. Vandré apenas sorria. Quando passava pelos dois o empresário de Joan Baez, Mark Spektor, o cantor disse a Suplicy (que fala inglês): “Traduza para ele que o senhor é o senador da República que me anistiou por eu escrever canções”.
O comentário, que poderia parecer sarcástico, foi feito num tom neutro. Vandré não aceita o fato de ter sido acossado durante o regime por causa de algumas músicas que compôs. No final dos anos 1970, em 1979 ou 1980, a data é imprecisa, ele procurou o amigo Assis Ângelo, jornalista e pesquisador musical, com um cheque. Era uma quantia relativa à indenização a que tinha direito por ter sido perseguido pelos militares. Queria que Ângelo fosse devolver o cheque para o governo, porque não quiseram aceitar quado ele foi. E que trouxesse comprovante. Ângelo foi – e trouxe.
Geraldo Vandré vive atualmente em Teresópolis (RJ). Seus proventos advêm de uma aposentadoria de funcionário público e direitos autorais de suas músicas. Mas ainda mantém casa em São Paulo, sua morada principal por décadas (ele é paraibano de João Pessoa). No segundo show de Joan Baez, ao ser chamado ao palco, leu um poema inédito que fez em homenagem à pauliceia, à qual declara amor.
Muita gente diz que Vandré ficou meio biruta, que teria sido tomado por uma espécie de “síndrome de Estocolmo” às avessas, passando-se para o lado dos seus algozes. Chegou a compor uma canção, Fabiana, em 1985, em homenagem à Força Aérea Brasileira. Mantém relações estreitas com militares da Aeronáutica – teria sido por intervenção de um deles, inclusive, que concedeu uma rara entrevista para a televisão, em 2010. Seu amigo há 40 anos, Ângelo (presidente do Instituto Memória Brasil) rebate categoricamente essa versão: “É o músico brasileiro mais completo que conheço. Ele pensa o Brasil, pensa a vida e defende o ponto de vista dele até o fim. É um tipo de cidadão em extinção, porque é lúcido demais e não suporta esse vale-tudo que se tornou a vida no País”.
Entre todas as aparições lendárias de Vandré, há um encontro do qual ele teria participado, no final de dezembro de 1991, numa casa de veraneio em Areia Dourada, litoral de João Pessoa, com artistas paraibanos como ele: Zé Ramalho, Vital Farias, Livardo Alves e Sivuca. Vandré teria dito, segundo descrição, que o seu processo de “clandestinização” faria parte de uma estratégia muito bem urdida por “interesses alienígenas” para jogar a Nação contra as Forças Armadas. Está convencido disso.
Por que você não quer cantar?, insiste de novo Joan Baez. “Porque pode dar revolução”, responde Vandré. Ao ir embora do País, Joan Baez usou o Google Translator para deixar uma mensagem em português para seus anfitriões. É possível entender (quase tudo) se o português for “retraduzido”:
“Foi um prazer estar com você e seus amigos. Os concertos em São Paulo foram destaques desta turnê, com os incríveis convidados e públicos tão surpreendentes que nós, num estrondo, nos sentimos invencíveis, capazes de fazer cem shows como esses. Nosso tempo gasto em São Paulo foi realmente incrível. Os concertos foram dois dos melhores nesta turnê, e, com a participação de Geraldo Vandré, foram os destaques de nossa turnê latino-americana. Eu não fui muito inteligente na noite passada: fomos dançar num lugar chamado Ó do Borogodó e voltamos ao hotel às 4 da manhã. Por isso, tive de descansar durante todo o dia. Nos reuniremos de novo em breve, porque não temos mais muito tempo agora. Muito amor, Joan”. 
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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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