Na segunda-feira, 16 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência pública, convocada em janeiro pelo ministro Luiz Fux, para discutir a constitucionalidade da reforma da gestão coletiva musical no Brasil. Mais precisamente, da Lei 12.853/13, aprovada no Senado em julho do ano passado, numa sessão marcada pela presença de vários figurões do cenário musical brasileiro, que haviam fundado pouco antes o movimento Procure Saber.

Expositores da audiência pública sobre direitos autorais - Fotos Fellipe Sampaio/SCO/STF
Expositores da audiência pública sobre direitos autorais – Fotos Fellipe Sampaio/SCO/STF

O então Projeto de Lei do Senado 129 seguiu seu caminho: aprovado na Câmara e sancionado pela presidenta da República, entrou em vigor em dezembro de 2013. Como era de esperar, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e as associações arrecadadoras que o administram propuseram duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), pedindo que o STF declare a nova lei integralmente inconstitucional.

Diante de uma matéria tão técnica, o ministro relator Fux abriu inscrições para a manifestação de defensores de cada um dos lados. Foram 12 escolhidos do lado da lei e 12 do lado da sua inconstitucionalidade. E as falas de dez minutos foram organizadas de forma escalonada: um contra, um a favor, um contra, um a favor.

Não se discute direito autoral e muito menos Ecad sem polarizar. Como lamentou o músico e compositor Roberto Menescal, todos ali podiam estar conversando, mas preferiam brigar: “Está parecendo a Ucrânia, a Venezuela, o Afeganistão”. A audiência não deixou de ser uma divertida maratona esclarecedora dos pontos e interesses em jogo.

Vai ser difícil determinar qual lado convenceu mais o ministro. Assumida defensora da Lei 12.853/13 que sou, achei as exposições pró-lei, de uma forma geral, mais densas e coerentes. Mas o sr. Roberto Corrêa de Mello, presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), depois da sua manifestação, assistindo da plateia, dizia o mesmo sobre o outro lado.

As horas transcorriam entre manifestações mais jurídicas, mais ideológicas, mais sentimentais. Fux escutava atentamente a falas que se tornavam cada vez mais circulares, uma vez que posições anteriores eram cada vez mais retomadas ou rebatidas.

Se em geral o tom foi civilizado (o que é quase surpreendente), não faltaram embates e torcidas organizadas. Quando, a partir da apresentação semi-teatral do encenador Aderbal Freire Filho, da Sociedade Brasileira de Autores (Sbat), a plateia perdeu a inibição para bater palmas (“vou abrir exceção ao protocolo e permitir aplausos hoje”, diria o ministro), começou a ficar fácil encontrar pela sala os agrupamentos dos defensores e detratores da lei.

STFEcad 5 - Fotos Felipe SampaioQuem deu início às polêmicas foi o compositor Fernando Brant, presidente da União  Brasileira de Compositores (UBC), que, logo no início, declarou que fica “espantado com a variedade dos inimigos do direito autoral”, algo que o Ecad reforça em todas as suas declarações públicas. Daí seguiria a desqualificação do movimento pró-lei, “campanha dos grandes conglomerados que não querem pagar direito autoral”, dos grupos que ocuparam o Ministério da Cultura (MinC) nos últimos 11 anos, “com a exceção da ministra Ana de Hollanda”,  dos artistas que apoiaram a lei, “ignorantes, desinformados”,  “lhes venderam gato por lebre”.

O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) chamaria a fala de Brant de “inadequada” no tratamento aos artistas. A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) declarou-se ofendida com a menção desabonadora ao processo de criação da lei, e Paula Lavigne (UNS Produções Artísticas e Uns e Outros Produções e Filmes), a mais diretamente afetada, gastou boa parte do seu tempo lendo a longa lista de artistas apoiadores do movimento Procure Saber, liderado por ela, a provocar se todos aqueles nomes seriam realmente manipulados e ignorantes: “Todos pagaram as próprias passagens para ir a Brasília e apoiar a aprovação da lei”.

A fala de Paula foi certamente o ponto alto do dia. “Não sou técnica, vou falar de sentimentos”, e então vieram os sentimentos, de forma precisa e contundente. Apaixonadamente, explicaria como resolveu se envolver com a disputa pela regulação do Ecad, desesperançada que estava, após quatro CPIs do escritório, sem resultados. Articulou posições pró e contra si. Retomando Roberto Menescal, que, logo antes dela, falara sobre a desnecessidade de regulação estatal e a necessidade de articulação própria dos artistas, começou a contar a história do Procure Saber, que, para ela, era propriamente a organização que lhes estaria faltando.

Paula Lavigne, do Procure Saber
Paula Lavigne, do Procure Saber

Como o economista Gesner Oliveira dissera que o sistema Ecad favorecia os artistas menores, e que os maiores não dependiam do Ecad (que ganham com shows e produtos), e por essa razão atacavam o sistema, Paula diria também que a escolha do Procure Saber de envolver grandes arrecadadores era uma forma de blindar o movimento, torná-lo imune à crítica de que só artistas descontentes com o retorno econômico de suas carreiras estariam atacando a gestão coletiva.

A empresária atentou contra a concentração de poder na mão de poucos editores no sistema (“nunca fui convidada para uma reunião da Abramus”) e também contra as manifestações antirregulação, que estariam confundindo Estado com governo: “Se o Estado não fosse importante para a nossa atividade, não estaríamos aqui hoje discutindo com ele”.

Paula chegou também a se queixar das muitas pessoas e organizações que estariam ali falando pelos artistas, mas desqualificando-os quando falam por si mesmos. Também estava se referindo a alguns dos expositores que fizeram inflamados discursos contra o que chamavam de intervenção estatal.

Fernando Brant falou que “problemas dos cidadãos devem ser resolvidos por eles mesmos”. Glória Braga, a superintendente do Ecad, disse que a gestão coletiva funciona bem há 40 anos e “é inconstitucional a ingerência estatal”, na mesma linha do que dissera Roberto Corrêa de Melo, alegando que a medida traz “intervenção do Estado no que já está funcionando”. Luis Cobos, maestro e presidente da Federação Ibero-Latinoamericana de Artistas (Filaje), disse que se trata de um atentado contra a privacidade e a confidencialidade e que supervisão e controle do Estado são aceitáveis, mas estaríamos tratando de uma verdadeira intervenção.

Cantor e compositor Lobão
Cantor e compositor Lobão

Lobão  protagonizou um dos mais inflamados discursos nesse sentido: sem elaborar muito, disse que a lei é inconstitucional pela intervenção no privado – um pouco antes de afirmar que o Procure Saber é um grupo minoritário, que protagonizou uma “palhaçada”, a exemplo do ato de Roberto Carlos, de ir a Brasília tirar fotos com Dilma Rousseff.

“Estamos entregando o Ecad para um dos governos mais corruptos da história!”, bradaria, talvez só menos emocionado que o advogado e ex-desembargador do Tribunal de Justriça do Rio de Janeiro Sylvio Capanema, que longamente discorreria sobre a incompetência do Estado brasileiro, sua secular corrupção, terminando com a invocação inflamada a Augusto dos Anjos: “O beijo é a véspera do escarro,/ a mão que afaga é a mesma que apedreja”.

Um dos momentos mais confusos foi a fala do economista Gesner Oliveira, da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Aparentando não dialogar com a lei em discussão, Gesner passou sua apresentação discorrendo sobre como o Ecad é eficiente, não pratica preços abusivos  e como, principalmente, o melhor cenário possível nesse caso é a fixação de preços por uma entidade central. É curioso, porque a primeira versão do PLS 129, que deu origem à lei, previa a reorganização do sistema mediante descentralização, mas o modelo não foi acolhido pela versão final, que preserva a existência do Ecad. Pensando atacar a lei, de certa maneira, o economista a defendeu.

Alguns argumentos também foram recorrentes do lado pró-constitucionalidade. Além da constante menção aos problemas de gestão identificados pela CPI do Ecad – problemas que Glória Braga negou, dizendo que não estão provados –, muitos insistiram que o modelo de supervisão estatal que a Lei 12.853 propõe não é grande novidade.

Jandira Feghali falou sobre como a maioria das estruturas anteriores foram mantidas e que, como o Ecad é um órgão que atua em nome de terceiros, precisa ser regulado. Igualmente, Marcos Souza, diretor de direitos intelectuais do MinC, insistiria no ponto, acrescentando que o interesse público não deveria se subordinar a interesses corporativos. Para ele, como o Ecad já nasceu supervisionado pelo CNDA, a exigência ou não de supervisão é uma opção legislativa, e não de constitucionalidade.

Aderbal Freire Filho fez dramático discurso, reconstituindo a história da sociedade por meio da representação de figuras atuantes na Sbat, como Chiquinha Gonzaga e Nelson Rodrigues. Somente ao fim de seu discurso, percebia-se que seu ponto era: houvesse um marco regulatório, a Sbat não teria se perdido nos graves problemas que hoje a dominam.

Paulo Estivallet de Mesquita, embaixador  e diretor do departamento econômico do Ministério das Relações Exteriores (MRE), também seguiu a linha do “não é novidade nenhuma”, indicando, quanto às medidas de habilitação de associações, controle permanente da atividade, obrigação de dar publicidade aos cadastros de autores e obras etc., uma extensa lista de países (europeus) que, segundo ele, adotavam as mesmas medidas, se não ainda mais rígidas.

Ronaldo Lemos, professor da UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, propôs analogia entre a regulação do Ecad e a das sociedades anônimas no Brasil, que, por arrecadar dinheiro junto à sociedade, estão sujeitas a extensa regulamentação. O caso do Ecad seria ainda pior, segundo ele, porque não se trata de arrecadação voluntária.

Músico Frejat
Músico Frejat

Alguns outros momentos performáticos animaram a sucessão de falas. Lobão, fazendo referência ao movimento Procure Saber, contou como foi pego de surpresa com a lei, e como foi “hostilizado quando procurou saber”. Ao que o músico Frejat, que atua há anos no Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música (GAP), responderia com menção aos muitos problemas que vê na gestão coletiva, e dizendo que “só critica (a lei) quem não procurou saber”.

Quem ficou de fora

Na plateia, estavam representantes da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), munidos de uma carta assinada por uma longa lista de rádios e emissoras de TV públicas e universitárias. Rogério José Rabelo, assessor da diretoria da EBC, queixava-se da ausência de representação dos usuários de música entre os participantes da audiência.

Na carta, entregue aos ministros do STF, os signatários argumentam que estão sendo cobrados pelo Ecad por critérios equivocados. Por exemplo, na impossibilidade de cobrança pelo faturamento, já que empresas públicas e universidades não trabalham com esse conceito (ao menos quanto à maior parte dos recursos), o órgão resolveu cobrar percentual sobre o orçamento total da empresa, das universidades ou de secretarias estaduais e municipais. “Não somos um negócio comercial, não auferimos lucro, não baseamos nossa programação e conteúdo a partir da busca frenética por audiência e venda de anúncios publicitários, embora possamos ter uma pequena parte de nosso orçamento constituído a partir de receitas próprias, incluindo publicidade institucional”, rebate a carta. “Queremos pagar o Ecad”, dizia o assessor, “mas de acordo com critérios justos e objetivos”.

Balanço

Se algo pareceu pairar sobre todas as manifestações, esse algo foi a defesa corporativa de uma organização receosa das mudanças no status quo. É insustentável o Ecad querer manter uma imunidade à regulação e à fiscalização que não se verifica nem em setores bem mais incontroversamente privados.

As falas pró-situação, enquanto mantinham a defesa ao artista e à cultura no nível do discurso, tratavam como alienadas e desinformadas as posições dos muitos artistas ali presentes ou representados. E esses se queixavam, numa triste ironia, precisamente de como não têm voz ou participação no sistema.

Apesar do que quer sustentar o Ecad, a Lei 12.853 não desapropria o autor de seus direitos. Pelo contrário, pode permitir, se bem regulamentada, o retorno do sistema às suas mãos e equilíbrio nas relações com o usuário da gestão coletiva. Dados os inúmeros desequilíbrios percebidos nessas duas esferas nos últimos anos, a música brasileira só tem a ganhar. Espero que o ministro Fux tenha visto da mesma maneira.

(Mariana Giorgetti Valente – @mrnvlnt – tem 27 anos, mora no Rio de Janeiro e é mestre em sociologia jurídica pela USP. Trabalha como pesquisadora e professora no Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV, na área de indústria cultural, direitos autorais e internet. Trabalhou por três anos e meio como advogada do Museu de Arte Moderna de São Paulo.)

 

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5 COMENTÁRIOS

  1. Olá, Pedro e Mariana.

    É sintomática a ausência dessa parte interessada na discussão, o usuário da música. Que é fonte importante de recursos para o ECAD, mesmo o pequeno usuário individual. Vou repetir o relato de outro post sobre esse assunto:

    Quando do meu casamento, em 2008, um dos gastos envolvidos na festa foi com o ECAD. Sou músico amador, então bandas da qual faço parte tocaram na festa, portanto acabei forçado a ter essa despesa (não animei a entrar com algum recurso contra isso, à época). Não me lembro direito o quanto, se foi 200 ou 400 reais, à época.

    O valor é menos importante, assim como o fato de um casamento ser uma festa privada, sem fim lucrativo, sem nenhum caráter mercadológico . Especialmente quando não há contratação de banda, são os próprios convidados os músicos.

    O que me assustou foi o critério de quantização da taxa e o procedimento da cobrança. A taxa é calculada POR METRO QUADRADO DO LOCAL DO EVENTO. Nenhuma relação com o tempo de show, que em tese daria para quantizar por alto o número de músicas a serem tocadas. E, quando paguei a taxa, NÃO ME FOI COBRADA NENHUMA LISTA DE MÚSICAS A SEREM EXECUTADAS. Ora, sem um lista de músicas, como repassar o dinheiro para os autores?????

    Não sei se ainda é assim hoje, mas no caso de eventos como casamentos, é certeza absoluta que o ECAD arrecada, mas não repassa aos autores.

    Tenho outras experiências no mínimo estranhas com o ECAD na minha vivência de músico amador, mas de trabalhos autorais. São necessárias regulação e fiscalização, não importa o modelo ou o grupo que prevalecer.

  2. Que massa achar esse artigo!

    Engraçado o quorum formado nessa discussão, onde um bando de senhores feudais dialogam com outros senhores feudais, enquanto servos da música seguem mendigando através de sua arte, tocando por cachês ínfimos, irreais, discrepantes com a realidade econômica do pais, completamente vulneráveis.

    O Ecad é uma chaga na realidade do músico brasileiro, assim como outrora foi a falecida OMB. O Ecad rouba o músico ‘pequeno’, parava favorecer o grande. É balela que não exista fins lucrativos na atividade exercida pelo escritório. Quem alguma vez preciso tratar com esse pessoal sabe muito bem como eles são mestres na arte da negociação de balcão, onde os critérios usados para a cobrança praticamente inexistem.

    Que o ministro seja iluminado e decida pela decisão mais justa, embora desde já eu já considere batalha perdida!

    Muito obrigado pelo artigo e parabéns pelo trabalho!

  3. Sem dúvida, os primeiros a serem ouvidos deveriam ser os que pagam. Os interessados pelo bolo só discutiriam o repasse. Logicamente sou a pleno favor do pagamento dos direitos autorais, mas, quando se tem lucros com o bem autoral de outrem. Por outro lado, tenho observado arrecadações absurdas e praticamente sem critérios plausíveis, se analisada a forma de arrecadação. Os critérios adotados para a cobrança são no mínimo discutíveis e suspeitos, vista as características em que se calcula o valor a ser pago. Na impossibilidade de se calcular pela quantidade de público, se calcula o ECAD em porcentagem pela estrutura do evento, onde se tem dezenas, centenas de trabalhadores e prestadores de serviços ganhando bem pouco para a realização dos serviços, matando cachorro a grito para se conquistar um contrato sufocado em algum show e como carniça, logo aparece os chacais do ECAD, e sem o mínimo de pudor, abocanha uma imensa bolada sobre o suor e o sangue de quem já paga inúmeros impostos ao governo para conseguirem no mínimo sobreviver neste país. Os órgão públicos por sua vez, principalmente os pequenos municípios que tem a obrigação de levar cultura e lazer a sua população e que nenhum lucro financeiro almejam, são os maiores alvos de arrecadação do ECAD, levam uma tremenda bolada numeraria e pouco fica em troca. Sou testemunha de tudo o que estou argumentando, pois, estou a frente da Cultura na minha pequena cidade e basta um pequeno evento para dar a população um momento de cultura e lazer, que já aparecem para buscar o pão bem recheado do dia e por fim, a quem de direito está sendo distribuído esse imenso numerário? e se considerarmos a quantidade de cidades no país, o bolo recheado a peso de ouro é muito grande. Quem são os autores musicais que mais recebem pelos direitos autorais?, aqueles dessas músicas horríveis que os empresários injetam rios de dinheiro em mídia e escritórios de publicidade, para colocarem as músicas em primeiro plano? e os autores de músicas bem trabalhadas com letras estudadas e de nível cultural elevado, estariam recebendo pela sua arte?. Creio que estão esquecidos no anonimato e na miséria enquanto a cultura do país se dilacera com a arte musical ruim, sem conteúdo e letras da pior qualidade, arranjos péssimos, com meia dúzia ficando milionários e o restante em extrema pobreza. Está me dando nojo de ver a exploração a que submetem esse país, a favor de meia dúzia de interessados e a pobreza absoluta da cultura do Brasil. E os diretores do ECAD e os das associações, estão pobres? Sem dúvida, se persistirem essas cobranças sobre quem não tem lucros diretos e financeiros em eventos públicos, principalmente os municípios, provavelmente deixarão de realizar ou reduzirão drasticamente os eventos musicados, daí, não surgirão mais artistas, nem novos compositores, nem músicos, nem prestadores de serviços musicais, e bola de neve aumentando em desfavor a esses profissionais ou amadores e os prejuízos serão de todos.

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