“Todos estão surdos”, reclamou Roberto Carlos em 1971. Naquele mesmo ano, Odair José se despediu do elenco da multinacional CBS, mais tarde rebatizada Sony Music e até hoje pertencente à órbita de influência do “Rei”. A surdez (musical) braZileira era muito mais extensa e penetrante do que o doce Roberto poderia supor.

Para ir em busca de provas práticas, basta constatar que até hoje, quatro décadas e meia depois da conversão do iê-iê-iê em romantismo popular brasileiro, nossas gravadoras multinacionais jamais promoveram uma reedição consistente da obra monumental de Odair José, ao mesmo um dissidente da jovem guarda e um formulador do pop romântico brasileiro à moda dos anos 1970. Não é ~privilégio~ de Odair: com a persistente exceção do selo Discobertas de Marcelo Fróes, ninguém nos círculos oficiais da cultura e do jornalismo do Brasil gosta de reolhar, quanto mais reouvir o relicário dito “cafona” da MPB.

Dona do acervo CBS e do passe de Roberto Carlos, a Sony jamais reeditou dignamente os dois primeiros álbuns de Odair, lançados naquela seara em 1970 e 1971. A Universal, ex-Philips/Phonogram/Polydor/PolyGram, esperou até 2013 pra reeditar, numa caixinha que agora vem à tona, os quatro primeiros entre cinco álbuns lançados pelo cantor e compositor goiano a partir de 1972 sob a administração (inclusive artística) do então homem-forte da indústria musical multinacional André Midani.

odair - em alta

Procure esquecer o nome hediondo e a diagramação xumbrega: o caixote Quatro Tons de Odair José contém um quarteto de clássicos da MPB dos anos 1970: Assim Sou Eu… (1972), Odair José ou Eu Ainda Te Amo… (1973), Lembranças (1974) e Odair (1975).

odair jose - em alta

Devemos ao historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo, a partir da edição do livro Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar (Record, 2002), a ressignificação da obra de Odair (e de outros artistas ditos “cafonas” no contexto da depois crescentemente elitizada MPB). Roberto Carlos e Chico Buarque demonstram detestar Araújo, por conta de Roberto Carlos em Detalhes (2006), no caso do primeiro, e de Eu Não Sou Cachorro, Não, no caso de Chico. Há muito caroço no fundo da panela desse angu.

O que Paulo Cesar dizia em Eu Não Sou Cachorro, Não pode ser verificado enfim (e com boa qualidade sonora) nas reedições da Universal. Os discos de Odair eram musicalmente fortes, devido ao talento pop do artista, mas também às equipes musicais que ele reunia para gravá-los.

José Roberto BertramiAlex Malheiros Ivan Conti (o Mamão), hoje respeitados planeta afora sob o codinome-em-trio Azymuth, estão presentes no núcleo sonoro da fase Philips de Odair. Algumas das guitarras presentes nos discos pertencem ao punho do soulman baiano Hyldon, autor do hit samba-soul “Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapé)” (1975). Luiz Claudio Ramos, que fazia arranjos e tocava violões para o cantor, iria se celebrizar décadas à frente como maestro do já citado Chico Buarque.

Odair gosta de citar a influência beatle e do country-rock norte-americano da época em seu som, mas as peças que jogava no tabuleiro da MPB o colocavam numa confluência bem mais original (e talvez eventualmente desarmônica) e brasileira, entre o romantismo de Roberto, Jerry Adriani Wanderley Cardoso, o rock’n’roll de Raul SeixasErasmo Carlos Rita Lee, a MPB de Caetano Veloso, Gal CostaElis Regina Wanderléa (em Maravilhosa) e o samba-funk/samba-soul/samba-rock/samba-jazz de Tim MaiaLuiz MelodiaJorge BenWilson Simonal e turma. Não sem conflitos, disputas e puxadas de tapete, todos (exceto os românticos) compunham o elenco reunido por Midani na Philips.

As muitas vezes sensacionais letras de Odair e parceiros estão destrinchadas no primeiro livro de Paulo Cesar de Araújo. Não tentarei aqui uma ressíntese, mas poderia citar o sucesso radiofônico daqueles tempos às pencas, rebobinando de”Ela Voltou Diferente” e “Dê um Chega na Tristeza” (de 1975) para “A Noite Mais Linda do Mundo (Felicidade)“, “Alegria Triste” (1974), “Que Saudade de Você“, “Cadê Você?”, “Revista Proibida”, “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)“,  “E Ninguém Liga pra Mim”, “Os Anjos”, “Eu, Você e a Praça”, “Deixe Essa Vergonha de Lado” (1973), “Assim Sou Eu…”, “Vida Que Não Para”, “Eu Queria Ser John Lennon” e “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha” (1972). Quem foi ser humano no Brasil dos anos 1970 conhece muitas dessas melodias, mesmo que não goste de assumi-lo.

Tristíssima e fortemente robertocarlista na forma, “Deixe Essa Vergonha de Lado” (1973) tratava de uma babá que tinha vergonha de contar ao namorado sua profissão. Rendeu a Odair o epíteto um tanto preconceituoso de “terror das empregadas”, pregado por Rita Lee, inclusive em forma de música (“Arrombou a Festa“, de 1976, uma parceria com Paulo Coelho). O grosso preconceito brasileiro contra determinadas classes sociais surgia escamoteado em rusgas e “brincadeiras” – mas Odair estava falando muito a sério com seu público de domésticas, pedreiros, prostitutas, homossexuais pobres etc. Nossa resistência em revisitar as obras dos pares de Odair (e em ouvir os artistas populares de hoje em dia) prova cabalmente as teses de Paulo Cesar de Araújo. Nunca, até os dias de hoje, nos curamos dos nossos mais profundos e violentos preconceitos.

Do mesmo disco, “Eu, Você e a Praça” (acima) serviria como belo tapa de pelica nesses preconceitos, se por acaso quiséssemos espancar nossas fobias. Como sabe Zeca Baleiro, que a releu lindamente num tributo de 2006 a Odair (abaixo), trata-se de uma das grandes canções pop brasileiras de sua época, em letra, melodia, arranjo e o que mais você quiser. “Encostei o meu carro na praça/ e você, um tanto sem graça, sorriu pra mim/ sem querer eu olhei em seus olhos/ sem saber segurei suas mãos/ e começou assim/ um longo silêncio entre nós/ a sua presença calou minha voz/ tanta coisa eu tinha guardado pra lhe dizer/ mas não disse nada”, narra o romance popular vivido em praça pública.

O toque de Midas de Odair pode ser ouvido em duas canções do álbum de 1972, a candidamente confessional “Eu Queria Ser John Lennon” (“eu queria ser John Lennon um minuto só/ pra ficar no toca-disco e você me ouvir”, abaixo) e a luminosa “Vida Que Não Para”.

Essa última continha discurso e mensagem positivos que não pegavam nada bem entre a intelectualidade local (outra situação que provavelmente persiste até estes correntes anos 2010): “Você que pensa que o mundo é quadrado/ você que pensa que o amor não existe/ você que acha que anda tudo errado/ por causa disso é que está sempre triste”.

“Vida Que Não Para” (abaixo) merece a transcrição de mais alguns versos (que Diana, cantora pop e então esposa de Odair, regravaria deliciosamente em 1978): “Gente bem de vida/ povo da favela/ casa que não tem janela/ mundo sem prazer/ noite de agonia/ quem levou minha alegria?/ conte comigo/ sou seu amigo/ pode confiar em mim/ não tenha medo/ não faça segredo/ pois a vida não é assim”. Algum dia a MPB formalista perdoará o moço pobre de Goiás por ousar esfregar-lhe às fuças tais constatações?

Em Eu Não Sou Cachorro, Não, Paulo Cesar de Araújo investe com tudo na perseguição da Censura civil-militar dos anos de ditadura aos chamados “cafonas”, aqui incluídos Odair e suas “Pare de Tomar a Pílula” e a pós-psicodélica “Viagem” (1975).  Caetano gostou, mas Chico manifestou desagrado com a tese – como se só aos integrado ao cânone MPB pudessem caber os louros de perseguidos políticos pelos brucutus de 1964 etc. Curiosa, a esse respeito, é a admiração quase confessa de Odair José por Chico, presente explicitamente nas baladas “Cotidiano  Nº 3” (1974) e “Cotidiano 1975“, evidentes homenagens ao “Cotidiano” (1971) e à série de canções de açúcares e afetos de Chico ma virada dos anos 1960 para os 1970.

assim sou eu - em alta

O rififi Procure Saber, que dominou os assuntos nas últimas semanas e ainda nos impacta, tem sido conduzido como se fosse circunscrito ao quadrado Roberto-Chico-Caetano-Gilberto Gil. Ainda rudimentares, as reedições de obras “cafonas” da indústria de massa dos anos 1970 vêm a calhar para complicar e complementar a discussão. Ajudam, por exemplo,  na constatação de que os paxás da MPB sempre foram e continuam sendo a ponta de um gigantesco iceberg, esculpido em talento e genialidade, mas também em toneladas de crueldade e exclusão sociocultural.

Tanto mais cúmplices da exclusão somos quanto mais nos recusamos a reconhecer a existência de artesãos de ontem e de hoje como Odair José, Edi RockLuan SantanaThiaguinho e quem mais você quiser citar (ou excluir).

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(Ouça aqui, na RÁDIO FAROFA, uma compilação de músicas de e com Odair José.)

 

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14 COMENTÁRIOS

  1. Pedro e pessoal – que escreve e acompanha o blog e site,

    Preciso, urgentemente, dizer o seguinte: muito obrigado. Sempre admirei a obra de Odair José – e, claro, sempre fui considerado um jovem de 20 e poucos anos (agora vinte e muitos…) totalmente equivocado. Daí que, sim, eu poderia gostar das (excelentes, por sinal) obras de Milton, Chico Buarque, Caetano e que tais – mas jamais deveria, segundo as regras dos bons costumes da MPB, dizer que também amo as canções do Fagner (Manera Fru Fru, Manera é um disco mais do que sensacional, assim como outros primores da obra dele). do Belchior, do Odair José, Ednardo e tantos outros bons e fundamentais de nossa música.

    Mais uma vez, e quantas forem necessárias, muito obrigado.

    • Uma vastíssima obra de quem não tem nada a ver com “sertanojo universotário” ou similares de um suposto “forró”, igualmente lixo, uma afronta aos grandes nomes da música de sanfona, pandeiro, triângulo, zabumba… Bom, mas isso é pra quem tem talento. Odair José ter sido assessorado por Azimuth já diz tudo.

  2. è impressionante o preconceito contra os músicos populares. Muitas pessoaszombam do trabalho de artistas como Odair José, José Augusto Amado Batista e muitos outros, mas trancados no quarto em casa, ouve estes artistas, e até sabem cantar todas as suas músicas.
    Sempre fui amante do velho e bom Rock n roll, mas nunca deixei de ouvir estes cantores populares.

  3. Não li o livro de Paulo César Araújo, mas uma coisa é ser censurado pela ditadura civil-militar por causa de temas de liberação de costumes da vida afetiva/sexual, ou seja, assuntos comportamentais, outra é ser perseguido por causa do conteúdo político engajado e subversivo.

    Admito que gostei dos “covers metabregas” do Tributo a Odair José, com rearranjos interessantes. Hoje em dia, esse tipo de brega de raiz soa mais sincero, explícito, coisa de artesanato modesto mesmo; não o vejo como o problema. Preocupante é o domínio das várias tendências neobregas que lotam o mercado nos últimos tempos. O espaço ocupado por axé music, breganejo, forró eletrônico etc.

  4. A turma do Ceará sempre tiveram status de MPB.Quanto a Odair josé,Diana e congêneres,sempre foram ignorados pela crítica especializada.Eu passei minha infância e adolescência só ouvindo os “ignorados”.Há um paradoxo aí,os artistas populares sempre foram discriminados pela alta cultura,mas sempre tiveram mais espaço nas rádios que os medalhões da MPB.

  5. Aos “experts”:
    Era LIXO puro então e no que me concerne…ainda o é…cheira pior devido a tentativa de vender mediocridade popularesca como forma cultural…..Nulidade musico/pseudo social !!!!!

  6. Ps…sem esquecer que com suas (ele e os demais de seu time)posturas covardes e pseudo apoliticas contribuiram para o emburrecimento de uma sociedade e em ocultar os cadaveres da ditadura…bando de esbirros !

  7. Pedro, gosto muito dos seus artigos no farofafá. Li os livros sobre Roberto Carlos e os músicos cafonas de Paulo Cesar, também, gostei. Agora, achar que Chico Buarque, detesta e tem preconceito, com a tese desenvilvida no livro é, no mínimo, precipitar um julgamento que nunca ficou claro no livro “Eu não sou cachorro, não. Reitero é uma precipitação. Abraços.

  8. O interessante nestas tentativas de “ressureição”do lixo é a desfaçatez em tentar atribuir uma estetica em quem jamais a teve:deve ser devido a existencia de arquivos de audio e video que não estão dando lucro a ninguem…assim como foi tentado com o simonal por seus filhos e demais interessados em lucrar; uma vergonha que este LIXO esteja sendo “empurrado”da maneira que está !!!!

    • Incrível como o ser humano precisa de tão pouco pra ser idiota, amiguinho, compre ou baixe esse box, ouça sem preconceitos, ai você vai entender que o único LIXO a vir à tona é o da sua ignorância musical.

  9. adoro todas as musicas de Odair jose estou esperando o seu dvd que ele veio gravar em Curitiba por favor me avisem quando estiver pronto obrigada

  10. Para quem critica a boa música do ODAIR JOSÉ (já conversei com ele),aqui vai um trecho de uma linda canção do Odair : “Não precisa dizer nada pra não se arrepender…Tem certos momentos da vida que o silêncio é melhor…”

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