Roberto Carlos, nos shows, faz as vezes de engraçado, bonzinho, bonachão e romântico ao quadrado. É difícil imaginar que alguém, aos 72 anos, possa derreter tantos corações, mas o “Rei”, com a música “Esse Cara Sou Eu”, prova que sim: uma unanimidade nos palcos. Fora deles, contudo, o cantor e compositor tem outra imagem, e ela não é indestrutível. A dúvida que fica: será que as próximas semanas, ou dias, podem revelar um Roberto Carlos que pouco conhecemos?

Caetano Veloso abriu o jogo da discórdia entre o grupo de contrários às biografias não-autorizadas. Em uma coluna em O Globo no domingo, 3, foi cristalino: “Eu próprio, em minhas afirmações mais definidoras, disse que os artigos 20 e 21 do Código Civil não eram bons e mereciam uma reescritura. Atribuí a Roberto Carlos o fato de ter sido obrigado a chegar até ali. Eu, que sempre me posicionara contra a exigência de aprovação prévia para biografias”.

O cantor baiano faz uma defesa explícita da empresária Paula Lavigne, sua ex-mulher, e do Procure Saber, atacados pelo advogado Antonio CarlosKakayde Almeida Castro em outra entrevista no mesmo jornal, que sugeriu o desmantelamento da associação. Caetano rasga o verbo. “Kakay é advogado de RC, não fala oficialmente pela associação. E RC só apareceu agora, quando da mudança de tom. Apanhamos muito da mídia e das redes, ele vem de Rei.”

Kakay é conhecido em Brasília como o advogado que resolve o problema dos poderosos. Defende políticos de amplo espectro ideológico, de José Dirceu, a Demóstenes Torres e Antonio Carlos Magalhães. No julgamento do mensalão, conseguiu a extraordinária absolvição do publicitário Duda Mendonça, que admitiu ter recebido dinheiro de caixa 2 por pagamentos da campanha política de Lula, em 2002. Tentar descobrir as razões do racha no Procure Saber é o que vai alimentar os próximos capítulos desse noticiário. O que se lerá a seguir são algumas hipóteses.

O papel de RC na criação do sistema Ecad

Jornal O Estado de S.Paulo, 30-5-1967
Jornal O Estado de S.Paulo, 30-5-1967

Na virada entre os anos 1960 e 1970, o ídolo egressi do iê-iê-iê tinha duas preocupações: fazer deslanchar sua trajetória cinematográfica, que acompanhava os bons ventos da carreira musical, e influenciar na questão de direitos autorais. Em 1967, quando filmou em>Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, a imprensa registrava sua atuação política junto dos militares. “A revisão do Código de Direito do Autor foi um dos pedidos que o cantor Roberto Carlos fez ao ministro de Justiça no encontro que tiveram há alguns dias”, escreveu o Estadão. O ministro Gama e Silva havia nomeado uma comissão para formular uma nova lei em que o autor de “Eu Sou Terrível” tinha muito interesse.

Jornal O Estado de S.Paulo, 19-2-1976
Jornal O Estado de S.Paulo, 19-2-1976

Em 14 de dezembro de 1973, o general Emílio Garrastazu Médici promulgou a Lei 5.988, que regulava os direitos autorais no país e só foi revogada em 1998, pela Lei 9.610, em vigor até hoje. Em fevereiro de 1976, o mesmo jornal paulista noticiou que Roberto Carlos havia sido empossado como membro do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), presidido pelo advogado Carlos Alberto Direito , que em 2007 se tornou ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e morreu dois anos depois.

O conselho era uma exigência da lei de Médici e teve vigência até 1983. As duas notícias indicam que Roberto sempre atuou nos bastidores, utilizando de sua imagem pública para influenciar nos temas em que ele tinha maior interesse.

RC, sempre entre os cinco maiores do Ecad

É julho de 2013 e lá está, mais uma vez, Roberto Carlos entre os autores com maiores rendimentos pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). No ranking de autores com maior rendimento em rádios, aparece em todas as regiões brasileiros: em 1º no Nordeste, 3º no Sudeste, 4º no Norte, e 5º no Sul Centro-Oeste. Pegue um mês anterior aleatório e as posições não se alteram muito. Os sertanejos ocupam cada vez mais espaço, mas o cantor e compositor de Cachoeiro de Itapemirim (ES) nunca perde a majestade.

O grande parceiro de Roberto, Erasmo Carlos, surge em 2º no Nordeste, 6º no Sudeste e 10º no Norte. Caetano Veloso, 12º no Sudeste e 3º no Nordeste. Gilberto Gil, 11º no Nordeste. Djavan, 13º no Sudeste. Chico Buarque? Em julho, ele não apareceu na lista do Ecad. Assim como não deu as caras em um dia que começa a ganhar novos significados.

No dia 3, em Brasília, estavam lá Roberto, Erasmo, Caetano, Carlinhos Brown, Emicida, Otto, Gaby Amarantos, entre outros músicos, e a empresária Paula Lavigne, representante do Procure Saber.

Foto Agência Senado
Foto Agência Senado

A data é histórica pela aprovação do Projeto de Lei do Senado 129, de 2012, que representou “o golpe mais profundo e certeiro desferido até hoje pelos titulares de direitos autorais musicais sobre o Ecad”, conforme narramos aqui. Quem viu, pela TV, percebeu os senadores ouriçados com a presença do “Rei” Roberto Carlos entre eles. Podia ter ficado só nessa tietagem escancarada e engraçada, mas havia algo mais.

“Esse Cara Sou Eu”

Uma questão que intriga é o que fez um dos maiores arrecadadores de direitos autorais no Brasil, ontem, hoje e sempre, apoiar a derrocada de um sistema que sempre o protegeu e lhe ajudou a acumular fortuna. As razões pelas quais o “Rei” foi tão explícito e “engajado” em Brasília só poderiam vir à tona em uma biografia do próprio Roberto Carlos, que ele diz estar escrevendo, ou se outros integrantes do Procure Saber começarem a ser mais explícitos. Mas naquele 3 de julho Roberto Carlos teve um encontro reservado com a presidenta Dilma Rousseff. Falou de um assunto de seu interesse particular, provavelmente a manutenção da lei que regula biografias no país.

Foto Roberto Stuckert Filho/PR
Foto Roberto Stuckert Filho/PR

“Roberto era tido e sabido como o inimigo número um da invasão da privacidade. É notório que não era o meu caso, mas também ficou claro não ser o de Gil, Paulinha ou Djavan, por exemplo”, escreveu Caetano Veloso, no artigo do fim-de-semana. É uma pista que merece ser seguida.

Houve uma contrapartida de músicos não-convictos em relação às biografias não-autorizadas, mas absolutamente crentes de que era preciso acabar com a distorção do Ecad no Brasil? Estaria Roberto de um lado e integrantes mais progressistas do outro, ou seria mais complicado o mapa das discordâncias, como o artigo de Caetano parece insinuar ao citar o alinhamento de Roberto E Chico Buarque na questão das biografias?

Quanto A Roberto Carlos, será que ele só topou apoiar publicamente o PLS 129 se outros nomes de peso da MPB aderissem à sua cruzada pessoal contra as biografias não-autorizadas, que entrará em discussão no STF? Os protagonistas doo caso pesaram os prós e contras e se abraçaram nas duas causas, coletivamente? Teriam se arrependido, diante da forte reação às suas posições? Teria Roberto se arrependido, ou era isto mesmo que ele queria?

Com ou sem Ecad forte, Roberto Carlos continuará sendo um dos maiores arrecadadores de direitos autorais no Brasil. É justo, pelo conjunto de sua obra. A lei sobre esse assunto, que um dia ele ajudou a elaborar, já lhe foi muito benéfica. Mas o legado do ídolo é algo que poderia estar fugindo de seu controle, e a biografia de Paulo Cesar de Araújo, que ele barrou na Justiça, é prova disso. Não que ela maculasse sua imagem, mas não era exatamente a que ele gostaria que tivesse sido publicada, por motivos ainda hoje obscuros.

Uma questão que se pode formular é por que Gil e Caetano, apenas para citar os dois tropicalistas, aceitaram esse acordo? Não teriam eles, com as dezenas de músicos que se empenharam em atuar na quebra do monopólio do Ecad, força suficiente para aprovar o PLS 129 sem apoio do “Rei”?

A sensação, por ora, é de que alguém passou a perna no outro.

 

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3 COMENTÁRIOS

  1. O que eu concluo, após ler o texto, é que os artistas fizeram política, e não estão dando conta das consequências impostas pelas escolhas políticas. Esse suposto acordo lembra demais as alianças de esquerda com dinossauros da direita oligarca, com a bancada evangélica ou qualquer outra classe conservadora. Abriram mão de posições históricas por um objetivo comum. Talvez figuras como Caetano Veloso tenham aprendido uma coisa ou duas e sejam mais reticentes, a partir de agora, antes de tecer suas críticas enojadas sobre a classe política.

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