Lá pelos idos de 1996, meus alunos de teatro, todos crianças e pré-adolescentes, queriam porque queriam encenar um espetáculo famoso.

Eu bem tentava dissuadi-los da ideia, mas qual o quê! Estava num beco sem saída. Na aula de artes, eu,  como professora de uma escola particular da pequena cidade de Agudos, no interior de São Paulo, próxima a Bauru, pensava no que eles poderiam encenar.

Tentei fazer com que pensassem em algo que nós mesmos pudéssemos escrever. Uma fábula, por exemplo, utilizando tantas ideias prontas que Esopo nos deixou, sem precisar pagar direitos autorais.

Ledo engano, doce ilusão. Eles escolheram e ponto final: Os Saltimbancos, com a assinatura do famoso Chico Buarque de Hollanda.

Fui às pesquisas e me lembrei que tinha um texto dele trancafiado num de meus armários com textos teatrais e um disco de vinil lançado em 1977, que guardo até hoje, mesmo não tendo assistido ao espetáculo da época. Sabemos que foi um grande sucesso no Rio de Janeiro.

saltimbancos caneco
As famílias Buarque de Hollanda, Leão e MPB 4, misturadas, em foto da contracapa do disco de 1977

Os Saltimbancos era um musical infantil com letras do italiano Sergio Bardotti e música do argentino Luis Enríquez Bacalov, que ganhou versão em português e músicas adicionais de Chico Buarque. Era inspirado no conto Os Músicos de Bremen, recolhido pelos Irmãos Grimm e adaptado por Bardotti como uma alegoria política, na qual o burro representaria a inteligência; a galinha, a classe operária; o cachorro, os militares; e a gata, os artistas. O barão, inimigo dos animais, é a personificação da elite, ou dos “detentores do meio de produção”, conforme pesquisa feita na época por mim.

Na verdade, era um espetáculo nem tão infantil assim para a época que foi apresentado, sob regime militar, uma ditadura bastante forte no Brasil. Mas feito assim, como um espetáculo infantil, foi fácil driblar a censura.

As crianças e eu ouvimos o disoc e nos deliciamos.  Elas ficaram apaixonadas e eu mais ainda com a ideia de montarmos Os Saltimbancos.

A primeira coisa que pensei foi no tão famigerado direito autoral. Pensei que, como era coisa de escola, com crianças, nem iam perceber. Mas recebi um telefonema do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e  outro da Sbat (Sociedade Brasileira de Autores).

Perguntavam se eu estava pretendendo montar Os Saltimbancos, pois os  direitos autorais tanto das músicas como do texto eram protegidos pela lei do direito autoral. Eu sabia disso. Era profissional de teatro já havia alguns anos e conhecia todas as normas.

Respondi que pretendia sim, pois meus alunos, crianças e adolescentes, escolheram o texto. Eles me deram o valor a ser pago. Desculpem-me os que me leem, mas não tenho ideia do quanto seria no dinheiro de hoje, mas era uma  grana surreal. Algo que jamais uma professora teria para investir, mesmo que a escola inteira fosse vendida para saldar a dívida.

Mas como a Sbat e o Ecad souberam da nossa intenção de montar a peça? Eu morava numa pequena cidade do interior de São Paulo. A pessoa que me ligou da Sbat deu uma risadinha e me disse: “Coisa de autor preocupado com sua obra. Eles descobrem até quando você respira”.

Fiquei indignada e tentei conversar no Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos), que é o sindicato da categoria. Pedi um tempo para as crianças, expliquei a elas o que estava acontecendo e disse que iria pensar numa forma de montar o espetáculo.

Os-Saltimbancos_grouponComo que uma pessoa que escreve no texto “musical infantil – adaptação de Chico Buarque” e no disco “tradução e adaptação de Chico Buarque – fábula musical inspirada no conto dos Irmãos Grimm” pode se dar ao luxo de querer direito autoral sobre aquilo que ele não escreveu , que é adaptação da adaptação de um conto recolhido pelos Irmãos Grimm, sei lá de onde?

A partir dali, passei a fazer a adaptação da adaptação da adaptação do conto recolhido pelos Irmãos Grimm. Hoje sou dramaturga e só trabalho com meus próprios textos, todos eles registrados, mas sempre entregues aos grupos de alunos e artistas que queiram encenar meus trabalhos. Isso me enche de orgulho.

 

(Madê Corrêa é dramaturga e professora de teatro.)

 

DI04129-1Nota de FAROFAFÁ 1: em 1981, quatro anos após a montagem original de Os Saltimbancos, foi produzida uma adptação cinematográfica do musical, protagonizada pelo quarteto humorístico Os Trapalhões e com participação ativa de Chico Buarque, inclusive na composição de canções inéditas – o nome do músico consta da capa da trilha sonora (foto à esq.). O filme circula comercialmente em DVD da Europa Filmes.

 

Nota de FAROFAFÁ 2: são conhecidos (e mal noticiados pela mídia tradicional) dezenas de episódios de censura comercial a livros, espetáculos, montagens e adaptações de obras de Chico e de outros integrantes do grupo Procure Saber. Convidamos todos que tenham histórias dessa natureza para contar a participar desse mutirão de levantamento histórico.

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7 COMENTÁRIOS

  1. Mas reclamar um direito não é censura. Ela quiz usar a peça que foi sucesso, então deu trabalho a alguém. Sem muito esforço ela fez o mesmo, só com um nome diferente. Não é copiando que nos desenvolvemos, é criando.

  2. PQP! Se fosse uma peça comercial, em um teatro, cobrando ingresso, aí sim eu entenderia.
    Mas proibir uma montagem com crianças, um uma escolinha, no interior, que só os pais,família, e amigos vão assistir é ser MUITO espírito de porco! O Chico é mercenário desse jeito? Não sabia
    que ele fazia parte deste “procure saber” com minúsculas. Porque da Lavigne e do Caretano vc
    já pode esperar uma coisa destas.

  3. Só acho necessário não banalizar o termo “censura”. Este termo deve ser resguardado para situações em que a liberdade de expressão está em jogo, e esse não foi caso. Impedir que alguém reproduza uma obra disponível para o grande público não fere a liberdade de expressão de ninguém.
    Podemos até dizer que o valor cobrado pelo autor é abusivo, mas em contrapartida cada um que dê o devido valor ao seu próprio trabalho.
    Quanto à atitude de liberar o seu trabalho para uso livre, eu acho realmente adimirável. Mas não acho certo condenar aqueles que esperam lucrar com o seu trabalho.

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