O ultimo quiproquó envolvendo direitos autorais tem como um de seus protagonistas a produtora Paula Lavigne, que anunciou recentemente estar à frente de uma associação (ainda não constituída juridicamente, a dar crédito às informações disponíveis) com o objetivo, entre outros, da defender membros da classe artística dos autores de biografias.

A associação, chamada Procure Saber, tem o apoio e a participação de personalidades muito conhecidas na música nacional, como Roberto Carlos, Djavan, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso (os três últimos, vale lembrar, obrigados a exilar-se durante o período agudo da ditadura).

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Mas o que isso significa? Por que agora? Quais os objetivos dessa associação? O que afinal está em jogo quando quando discutimos o direito (ou não)  de se escrever biografias?

Calma que eu explico.

Hoje, para se escrever uma biografia, é necessário que o biografado ou seus herdeiros concedam autorização para tal. Na prática, isso inviabiliza a biografia porque quase sempre uma das condições para conceder a autorização é o acesso ao conteúdo, geralmente com poder de veto sobre as passagens mais delicadas da vida do biografado. Muitos foram os autores prejudicados com essa atual conjuntura: Ruy Castro, à época da publicação da biografia de Garrincha (ótima por sinal), teve problemas sérios com os herdeiros, e é notória a questão da biografia de Roberto Carlos por Paulo Cesar de Araújo.

Os artigos 20 e 21 do Código Civil dizem:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Bom, mas o que isso significa? Significa que o Código Civil brasileiro diz que uma pessoa que se sinta ofendida em sua “honra, boa fama, respeitabilidade”, ou se a divulgação de escritos ou exposição de sua imagem estiver sendo utilizada para fins comerciais (vale dizer, a grande maioria delas), poderá proibir tais exposições. E isso porque, segundo o artigo 21, a vida privada da pessoa é inviolável.

Não precisamos ser juristas para ver que, na prática, o artigo 20 inviabiliza, ainda que por vias transversas, a produção de biografias que não sejam um arrazoado de elogios ao biografado – afinal, qual é a pessoa digna desse nome, que tenha vivido e tido uma vida interessante que não tenha uns pecadilhos que gostaria de esconder, produzindo uma versão mais bonita dos fatos? De perto ninguém é normal, já disse o próprio Caetano 😉

Por conta desse impasse, a Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), propôs perante o Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação intitulada Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), visando (como o próprio nome diz), declarar a inconstitucionalidade do alcance da norma disposta no artigo 20 em face de alguns princípios constitucionais, tendo como objetivo propiciar a publicação de biografias sem autorização do biografado.

E pode isso? Pode. O argumento da Anel, muito bem fundamentado, é que proibir biografias de pessoas públicas (e fique claro que pessoas públicas têm seu direito à privacidade restringido em função do papel que desempenham na sociedade, segundo as decisões de nossos tribunais) fere a Constituição quando essa protege a livre expressão de ideias.

No corpo da Adin, os autores citam o parecer do jurista Gustavo Tepedino, que explica a situação de maneira muito clara:

“Os arts. 20 e 21 do Código Civil, ao tutelarem a imagem, privacidade e a honra das pessoas, hão de ser interpretados em conformidade com a Constituição da República, de modo a não sacrificarem o direito fundamental à informação e às liberdades de expressão e de pensamento. Exclui-se, assim, por inconstitucional, qualquer interpretação daqueles dispositivos legais que proíba as obras biográficas, literárias ou audiovisuais de pessoas notórias sem prévia autorização dos biografados ou de seus familiares na hipótese de pessoa falecida. As biografias, com efeito, revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado, da memória e da identidade cultural da sociedade”. (grifos adicionados)

Então, em resumo, temos uma briga dentro da Constituição: precisamos harmonizar o artigo que nos garante a privacidade com o artigo que garante a livre expressão de ideias.

Como fazemos isso? Existe uma regra clara? Na verdade, quando esse tipo de conflito normativo ocorre, há que se fazer um balanceamento, há que se sopesar os valores ali garantidos, de forma que se consiga achar qual princípio deve prevalecer sobre o outro naquela situação.

Na mencionada Adin há um belo histórico acerca das formas de se solucionar esse impasse (a partir do item 29). Grosso modo, para a Anel, a liberdade de expressão é um princípio tão importante que quando em conflito com os demais, deve prevalecer.

A Adin também menciona legislação de outros países, como por exemplo o Código Português, que permite a publicação de biografias sem autorização do biografado ou seus herdeiros.

Já dá para perceber por que Paula Lavigne e alguns artistas estão preocupados. Mas não é só isso:  além dessa Adin, também existem no Congresso Nacional projetos de lei visando abolir a necessidade de autorização dos biografados.

Em outras palavras, a situação está bastante desfavorável (para dizer o mínimo) para aqueles que possam ser objeto de uma biografia: temos ao mesmo tempo uma ação no STF e projetos de lei encaminhados no sentido de abolir a autorização dos biografados e seus herdeiros para a produção de biografias.

É nesse contexto, nesse quadro de forças, que entra a Procure Saber, da qual Paula Lavigne é diretora: para poder intervir na Adin já distribuída, é preciso que exista uma associação cujos fins tenham pertinência com a matéria a ser discutida (como foi o caso da CNBB em alguns julgamentos recentes do STF, por exemplo). A partir do momento em que se tornar uma associação legalmente constituída, a Procure Saber poderá intervir no processo na condição de amicus curiae (literalmente, “amigo da corte”, pessoa interessada no julgamento do tema em análise).

Além disso, como associação, a Procure Saber e os artistas por trás dela poderiam articular melhor sua posição junto ao Congresso Nacional no sentido de se opor aos projetos de lei em trâmite.

Claro que a Procure Saber tem o direito de se organizar politicamente e discutir o tema – mas é um tanto quanto incômodo para a sociedade ver artistas defensores da liberdade de expressão e que sofreram na carne as imposições da ditadura defender esse tipo de obstrução ao trabalho dos biógrafos (basta lembrar que Chico Buarque assinou músicas com o pseudônimo de Julinho da Adelaide para não ser censurado).

Parece, com todo o respeito pela história dos artistas que encabeçam a Procure Saber (e por que não dizer, da própria Paula Lavigne, cujo talento como empresária é notório), que a ideia é usar a questão econômica como argumento para inviabilizar as biografias ou a ter direito de veto sobre seu conteúdo. Porque se a ideia fosse a remuneração pura e simples, a Procure Saber teria se posicionado de outra forma. A questão comercial é mencionada, mas muitas vezes fica claro, pelo tom das declarações,  o incômodo em ver biografias sem autorização sendo veiculadas.

Aliás, é uma grande curiosidade: o que diriam os representantes da Procure Saber se houvesse uma proposta alternativa segundo a qual todas as biografias seriam liberadas, desde que uma pequena porcentagem do  valor recebido pelo autor fosse destinado ao biografado e sua família? Se a Procure Saber não se coloca contra a liberdade de expressão, por que não deixa isso claro? Fico no aguardo de uma resposta 🙂

 

(Flávia Penido é advogada, especialista em direito tributário, atuante na área de direito digital e sócia da Penido Advogados – e tuiteira amiga @ladyrasta de FAROFAFÁ.)

 

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20 COMENTÁRIOS

  1. Chico Buarque disse sim;
    Caetano é da Elite Branca de São Paulo;
    Djavan Caetaneou;
    Roberto Carlos sempre foi o mesmo;
    Estou a pensar qual a cor da alma do Gil.

    • E o que te faz pensar, Fernando, que é só a exploração da “vida pessoal” que eles estão a fim de cercear? Esse é justamente o problema: vai tudo de roldão junto.

  2. Por contraditório, bastaria dizer que Caetano tem uma destacada coluna em “O Globo”, mesmo jornal que em editorial recente, admitiu ter dado suporte à Ditadura Militar no Brasil – e destaque-se, que ele já escrevia para o jornal muito antes da suposta mea culpa. Mas Caetano, não é de hoje, todos sabemos que fala, e fala mesmo – com posições que muitas das vezes, não passam de factoides. Minha estranheza se dá a partir da dúvida: o que os senadores e deputados temem que Roberto Carlos faça, caso contrariado? Digo… até onde se sabe, o único envolvimento político de Roberto com o Brasil, é o de ser ex-marido de uma malfadada atriz global, hoje, representante da TFP Fluminense – extensão da nobreza colonial provinciana e arcaica do estado do Rio de Janeiro, que se assemelha ao Tea Party. Eu realmente adoraria ver Roberto Carlos contrariado, para saber até onde vai a extensão da sua ira. Roberto para Presidente? Engraçado como essas movimentações no Brasil adquirem um aspecto burlesco mimetizando a nossa história colonial como Império decadente.

  3. De onde tiram a ideia absurda de que alguém é obrigado a autorizar a publicação de sua biografia?????!!!!!!!!!! Queria ver quem defende isso vendo sua vida pessoal, nos detalhes que o “biógrafo” decidir, ser publicada por aí sem a sua autorização!

  4. Não temos o hábito de vetar nenhum comentário na caixa de diálogo do FAROFAFÁ. Apenas para informação geral, acabo de deletar um comentário a esse texto assinado por alguém que se assina com o pseudônimo ~engraçadinho~ de ~Paula Tejando~.

    Mostra a cara, valentão!

  5. A verdade, é que Caetano, Gil, Chico, sempre foi produto da Globo e demais apêndices da mídia rasteira desse nosso Brasil maravilhoso. Vide os quantos programas que esses senhores fizeram para essa mais alienizante das tvs brasileiras.

  6. Dizer que é “direito da sociedade” e “exercício da liberdade de expressão” a divulgação de detalhes pessoais da vida de Caetano Veloso, Gilberto Gil ou de qualquer outro artista demonstra uma ingenuidade (no melhor das hipóteses!) e/ou um oportunismo.sem limites.
    Poderíamos até discutir se a vida pessoal dos agentes políticos tem alguma importância social; dos artistas, porém, os “autos” são sua obra, e “quod non est in actis non est in mundo”.

  7. Porque simplesmente não incluem um direito de resposta ao biografado no final da biografia? É só o biografado ter acesso ao material antes da impressão e colocar ali suas discordâncias… O que enriquecerá a biografia, pois dará ao leitor uma possibilidade maior de compreensão.

  8. E os autores das biografias não tem nenhum interesse econômico nisso? Afinal se aprovado, eles também lucram muito mais escrevendo qualquer coisa sobre pessoas públicas, e o povo não vai se importar muito com a veracidade dos fatos, afinal todo mundo adora uma fofoca.. opinião muito pouco imparcial essa sua, uma pena que qualquer um é formador de opinião hoje em dia..

  9. A questão da pessoa publica reside no que ela transmite como legado. O sr Cetano, Chico, vendiam que suas musicas eram para pessoas inteligentes, traziam um pouco de subliminaridade. etc. Influenciaram pessoas ecoando por rádios/ tvs suas ideias. Ao fim da obra resta-nos avaliar o quanto de verdades existe a respeito de seus pensamentos. Se no meio da biografia traz assuntos relevantes sobre comportamento (sem preconceitos) isto e importante também. Se não souber-mos o modo de pensar dos referenciais sua obra e morta. Não pode valer so para os outros. Lembre de Kant sobre a moral dentro de nos.

  10. Parece que o Lobão continua proibido de frequentar “as Cortes”! Seja a da Globo, a do Chico, do Caetano, dos comentaristas desse artigo, do (…) .Apesar de seu ótimo livro lançado pela Amazon!

    Américo Vieira

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