FAROFAFÁ republica abaixo – sem pedir autorização – uma carta que biógrafo de Clarice LispectorBenjamin Moser, endereçouCaetano Veloso por intermédio da Folha de São Paulo de 9 de outubro de 2013. Há elementos contundentes para a formação de opinião pública quanto ao debate em torno da circulação de biografias no Brasil e da mal-apelidade Lei Roberto Carlos. Os grifos no texto de Moser são nossos.

Adicionamos, porém, um adendo: uma carta de teor semelhante poderia – deveria – ser endereçada ao ídolo nacional quase sempre intocável Chico Buarque, alçado em anos recentes a uma condição de troglodita censurador muito mais próxima à de Roberto que à de Caetano. FAROFAFÁ não só desafia como convida biógrafos e outros cidadãos que têm penado nas mãos do coronel Chico a darem seus depoimentos. Nossas portas virtuais estão abertas para o debate livre e franco.

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Abaixo, a belíssima carta de Benjamin Moser:

 

“Caro Caetano,

Nos EUA, quando eu era menino, havia uma campanha para prevenir acidentes na estrada. O slogan rezava: ‘Amigos não deixam amigos bêbados dirigir’. Lembrei disso ao ler suas declarações e as de Paula Lavigne sobre biografias no Brasil. Fiquei tão chocado que me sinto obrigado a lhe dizer: amigo, pelo amor de Deus, não dirija.

Nós nos conhecemos há muitos anos, desde que ajudei a editar seu Verdade Tropical nos EUA. Depois, você foi maravilhoso quando lancei no Brasil a minha biografia de Clarice Lispector, escrevendo artigos e ajudando com o alcance que só você possui. Admiro você, de todo o meu coração.

E é como amigo e também biógrafo que te escrevo hoje. Sei que você sabe da importância de biografias para a divulgação de obras e a preservação da memória; e sei que você sabe quão onerosos são os obstáculos à difusão da cultura brasileira dentro do próprio Brasil, sem falar do exterior.

Fico constrangido em dizer que achei as declarações suas e da Paula, exigindo censura prévia de biografias, escandalosas, indignas de uma pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil. Para o bem dessa mesma cultura, preciso dizer por quê.

Primeiro, achei esquisitíssimo músicos dizerem que biógrafos querem ficar com ‘fortunas’. Caetano, como dizem no Brasil: fala sério. Ofereço o meu exemplo. A biografia de Clarice ficou nas listas de mais vendidos em todo o Brasil.

Mas, para chegar lá, o que foi preciso? Andei por cinco anos pela Ucrânia, pela Europa, pelos EUA, pesquisando nos arquivos e fazendo 257 entrevistas. Comprei centenas de livros. Visitei o Brasil 12 vezes.

Fiquei contente com as vendas, mas você acha que fiquei rico, depois de cinco anos de tais despesas? Faça o cálculo. A única coisa que ganhei foi a satisfação de ver o meu trabalho ajudar a pôr Clarice Lispector no lugar que merece.

Tive várias vantagens desde o início. Tive o apoio da família da Clarice. Publico em língua inglesa, em outro país.Tenho a sorte de ter dinheiro próprio. Imagine quantos escritores no Brasil reúnem essas condições: ninguém.

Mas a minha maior vantagem foi simplesmente ignorância.

Não fazia ideia das condições em que trabalham escritores e jornalistas brasileiros. Não sabia quanto não se pode dizer, num clima de medo que lembra a época de Machado de Assis, em que nada podia ofender a ‘Corte’.

Aprendi, por exemplo, que era considerado ‘corajoso’ escrever uma coisa que todo mundo no Brasil sabe há quase um século, que Mário de Andrade era gay. Aprendi que era até inusitado chamar uma cadeira de Sergio Bernardes de feia.

Aprendi o quanto ganham escritores, jornalistas e editores no Brasil, e quanto os seus empregos são inseguros, e como são amedrontados por ações jurídicas, como essas com que a Paula, tão bregamente, anda ameaçando.

É um tipo de censura que você talvez não reonheça por não ser a de sua época. Não obriga artistas a deixarem o país, não manda policiais aos teatros para bater nos atores. Mas que é censura, é. E muito mais eficaz do que a que existia na ditadura. Naquela época, as obras eram censuradas, mas existiam. Hoje, nem chegam a existir.

Você já parou para pensar em quantas biografias o Brasil não tem? Para só falarmos da área literária, as biografias de Mário de Andrade, de João Guimarães Rosa, de Cecília Meirelles, cadê? Onde é que ficou Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre? Você nunca se perguntou por que nunca foram feitas?

Eu queria fazer. Mas não vou. Porque o clima no Brasil, financeiro e jurídico, torna esses empreendimentos quase impossíveis. Quantos escritores brasileiros estão impedidos de escrever sobre a história do seu país, justamente por atitudes como as suas?

Por isso, também, essas declarações, de que o biógrafo faz isso só por amor ao lucro, ficam tão pouco elegantes na boca de Paula Lavigne. Toda a discussão fica em torno de nossas supostas ‘fortunas’.

Você sabe que no Brasil existem leis contra a difamação; que um biógrafo, quando cita uma obra ainda com ‘copyright’, tem obrigação de pagar para tal uso. Não é diferente de você cantar uma música de Roberto Carlos. Essas proteções já existem, podem ser melhoradas, talvez. Mas estamos falando de uma coisa bem diferente da coisa que você está defendendo.

De qualquer forma, essas obsessões com ‘fortunas’ alheias fazem parte do Brasil do qual eu menos gosto. Une a tradicional inveja do vizinho com a moderna ênfase em dinheiro que transformou um livro, um disco, uma pintura em ‘produto cultural’.

Não é questão de dinheiro, Caetano. A questão é: que tipo de país você quer deixar para os seus filhos? Minha biografia foi elogiosa, porque acredito na grandeza de Clarice. Mas liberdade de expressão não existe para proteger elogios. Disso, todo mundo gosta. A diferença entre o jornalismo e a propaganda é que o jornalismo é crítico. Não existe só para difundir as opiniões dos mais poderosos. E essa liberdade ou é absoluta, ou não existe.

Imagino, e compreendo, que você pense que está defendendo o direito dos artistas à vida privada. Mas quem vai julgar quem é artista, o que é vida privada e o que é vida pública, sobre quem, e sobre o que se pode escrever e sobre quem e, sobre quem não? Você escreve em jornal, você, como o artista deve fazer, tem se metido no debate público. José Sarney, imortal da Academia Brasileira das Letras, escreve romances. Deve ser interditada também qualquer obra crítica sobre ele, sem autorização prévia?

Não pense, Caetano, que o seu passado de censurado e de exilado o proteja de você se converter em outra coisa. Lembre que o Sarney, quando foi eleito governador do Maranhão, chegou numa onda de aprovação da esquerda. Glauber Rocha, também amigo seu, foi lá filmar aquela nova aurora.

Não seja um velho coronel, Caetano. Volte para o lado do bem. Um abraçaço do seu amigo,

Benjamin Moser

 

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29 COMENTÁRIOS

  1. Caetano já banca o coronel há muito tempo, esta sua atitude não está sendo contraditória com o seu presente. A carta é muito bonita e tal, mas parece desconhecer o Caetano de hoje…Outra coisa que eu não entendo, Pedro, é que existem biografias nada abonadoras do ACM, publicada com ele ainda vivo, e do José Sarney. Estes políticos desconheciam esta lei ou esta mesma lei não pode ser aplicada à eles?

  2. Discordo frontalmente da posição dos biógrafos nesse caso. Não se trata de censura não querer que um escritor publique um livro baseado na SUA VIDA sem o seu consentimento. A vida de cada um só pertence a si mesmo. A menos que algo da sua vida privada tenha tido consequências relevantes para a sociedade como um todo, não vejo motivo para torná-la pública. O que interessa saber da vida privada dos artistas? De que forma e em que grau isso afeta a sociedade, altera o rumo da coletividade? Só algo dessa natureza justificaria tornar público algo que é privado. O produto do artista, se ele publica, se torna de conhecimento público, ok, ELE quis assim. Mas a vida dele é algo completamente diferente.

    • A vida de uma celebridade NÃO pertence apenas a ela, e você sabe disso, Nathalia. Por esse argumento parcialíssimo nunca ninguém vai poder escrever um livro histórico contando que foi Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva ou Dilma Rousseff.

  3. Olha, eu não vejo muita relação entre a escrita acadêmica da História e a privacidade das pessoas. Por que a “celebridade” não tem direito mais a privacidade? O que torna ela celebridade? O que te dá o direito formal de escrever sobre particularidades da vida da pessoa, por exemplo, com quem ela transou, deixou de transar, se ele é gay ou não, se ele gosta de comer carne de porco. Não vejo a relevância de se invadir a privacidade das pessoas. Isso não te impede de escrever sobre a trajetória dela, isso não te impede de mostrar as relações que essa pessoa teve com grupos de poder ou coisa do gênero. Determinados aspectos da vida particular das pessoas, para mim, simplesmente não são assunto público, a não ser que ela queira.

    Com relação ao Chico eu queria entender a sua critica. Você acha que ele não pode por ele ser ele (o que construimos sobre a imagem dele socialmente) ou você acha que direitos autorais simplesmente não deveriam existir?

  4. Pedro, a vida de uma “celebridade” pertence SIM apenas a ela. O que não pertence somente a ela são os fatos de sua vida de interesse público. E o interesse público nesse caso pode ser medido pelo o que esse fato vai interferir ou alterar na sociedade de alguma forma. O seu pensamento corrobora a existência desses sites de fofoca que publicam fotos de um artista tomando sorvete no shopping como se isso fosse um fato público apenas por ele ser uma figura pública. Mesmo as figuras públicas têm vida privada e isso deve ser respeitado. Contar a trajetória política de um político, ou a trajetória musical de um músico é diferente de querer falar sobre acontecimentos da vida dos mesmos que nada tem a ver com a sociedade.

  5. Na constituição está escrito que todos têm direito à privacidade, não há nenhuma ressalva para “celebridades”. “Celebridades” não são seres de outro mundo, nem uma categoria especial de ser humano.

  6. Cara, como se pode escrever sobra a trajetória artística de uma pessoa sem falar da vida pessoal do artista retratado? Nos artistas não envoltos em cinismo a sua vida e a sua obra andam intercaladas…Quando aparece algum “biógrafo” dizendo que em seu livro só está retratando a carreira artística do biografado e não a sua vida “privada” é evidente que estamos diante de um charlatão! O que estes artistas censores querem é deixar suas histórias imaculadas como estão, não é questão de grana. Até parece que eles não são pessoas contraditórias como todo ser humano, fica aquela coisa unidimensional da “bondade” eterna…

  7. Segundo o jornalista pernambucano José Teles autor do Livro Do Frevo ao Mangue Beat, Caetano omite a informação em seu livro Livro Noite Tropicais, que o primeiro manifesto tropicalista foi feito aqui no Recife. Por que Caetano negou esta informação? Como se esquece de um fato deste em um livro intitulado Noites Tropicais? Será que um biógrafo relatando este fato seria processado por Caetano? Sinceramente, acho que se o manifesto tivesse sido feito sudeste ele teria relatado.

    • Mas, Fernando, concordo com sua crítica aos desequilíbrios Nordeste/Sudeste – mas culpar o Caetano por tudo pra mim entra naquelas que digo sempre, de que combater pessoas é muito mais obscurantista que combater ideias… Fico sinceramente agastado com a força que todo mundo faz pra definir ~bandidos~ e ~mocinhos~.

  8. Pedro,
    Adorei a sua carta, mas no que diz respeito a Maranhão 66 de Glauber Rocha, este é um filme prá lá de crítico, você não acha? Se não me falha a memória, o Mário Carneiro me contou que Glauber foi chamado para filmar a posse de Sarney para enaltecer o político, mas entregou um documentário ácido, cruel e ainda usou algumas das cenas no Terra em Transe, para figurar a posse de um político corrupto. Digo: Glauber nem de longe aprovou a posse de Sarney.
    Abraço

  9. Quando a pessoa se torna pública ela começa a fazer parte da história de seus país. Qualquer historiador poderá e deverá ter a liberdade de escrever sobre uma celebridade histórica, não importando o nível ou inserção social a que ela pertença, i.e., se é uma sub-celebridade ou não. Se a personalidade ainda estiver viva poderá processar o biógrafo se alguma inverdade ou calúnia tiver sido divulgada.
    Simples assim.

  10. Não sei se o Glauber apoiou a posse do Sarney ou não, mas que em um período da sua vida ele andou elogiando os militares é fato. É por isso que as biografias não chapa-brancas são necessárias! Uma biografia do Chico, do Caetano ou do Milton, por exemplo, obrigatoriamente terá de citar o show superfaturado com dinheiro público em Copacabana, não para desaboná-los, mas sim porque este triste fato faz parte da história deles. O que os artistas querem com essa discussão sobre biografias é deixarem suas histórias unidimensionais e sem zonas cinzentas e contraditórias…

  11. Sou contrário a qualquer biografia de figuras brasileiras a partir de agora. Não autorizadas ou chapas-brancas, comerciais ou gratuitas, não lerei nenhuma. Depois que só houver biografias de estrangeiros nas livrarias vão reclamar que ninguém valoriza a história e cultura brasileira. Aliás, pelo comportamento das mesmas nessa questão, acho que nem merecem ser biografadas mesmo.

    Sabe o que essas figuras merecem? Desprezo. Quando qualquer uma delas passar pela rua, aeroporto, qualquer lugar, as pessoas devem dar as costas para as mesmas, mostrando sua indignação. Também não comprem mais nada produzido por elas, não vão a shows, etc. Vamos torná-las pessoas impopulares.

  12. Se uma biografia só puder ser publicada com autorização da pessoa alvo, pra mim perde qualquer valor, será peça de ficção, chapa-branca. Pelo que tenho lido e ouvido, eles querem poder filtrar, excluir qualquer coisa que queira da obra que aborda sua vida, não só aspectos pessoais. É muito mais abrangente. Então, se um artista falou algo em público, se manisfestou sobre um assunto em determinado momento e anos depois, o biógrafo quiser registrar isso no livro, mas o artista achar que não é conveniente tocar no assunto agora ele vai poder fazer isso? Lembre-se, não estou falando de algo pessoal, mas algo público. E é muito comum as pessoas se arrependerem do que falaram ou fizeram, mudar de opinião. Mas o autor do livro não poderá fazer o registro temporal?
    quanto a questão de pagamento ou participação de lucros, acho uma atitude antipática alguém exigir isso de um biógrafo mas, se houver um acordo, uns 5% por cento do lucro com a obra, por exemplo, ok. E se o artista ou personalidade doar essa grana para uma entidade filantrópica ou causa social importante deixará claro que não há interesse puramente financeiro e fará um belo marketing pessoal. Se não, passará a imagem que ‘podem falar mal de mim, desde que me paguem’.

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