O Romântico Pingo de Ouro do Brasil, como era chamado por Chacrinha, é o intérprete de uma das canções mais icônicas de nossa música popular, aquela que nos sugere: tem dor que só se cura em mesa de bar. Se ali ele podia beber uma cerveja para esquecer, agora, com a saúde fragilizada, resta-lhe cantar – o que continua a fazer com frequência. Sentado, o terno escuro e a gravata colorida, ele continua, em seus boleros, a evocar o cabaré, a mulher triste, o casamento tristemente fissurado pela presença do Outro.

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Dagmar está cansada, mas precisa acompanhar mais uma entrevista de uma jornalista interessada na carreira de seu maior cliente. Na sala onde um ventilador não consegue dar conta do calor, ela, aborrecida, ouve as mesmas perguntas de sempre: quando ele começou a cantar? Que músicas marcaram mais a carreira dele? Que cantores o influenciaram? Quando lançou o primeiro disco? As respostas, como não poderia deixar de ser, também são as mesmas: aos 15 anos; “Entre Espumas” e “Nunca Mais Brigarei Contigo”; Waldick Soriano; 1963.

Dagmar está cansada e não esconde a impaciência. “Vocês vão demorar muito? Roberto não tem a tarde inteira.” A pouca disposição se explica: a produtora desenvolveu certa intolerância com aqueles que chegam, entre ansiosos e deslumbrados, ao lar modesto do homem que há algumas décadas figurava como um dos mais importantes cantores do Brasil. Há poucos meses, ela passou horas com uma equipe carioca que anunciou com pompa e circunstância a realização de um filme sobre a “autêntica música brega brasileira”. Semanas depois, mais dois jornalistas estiveram toda a tarde radiografando a vida do cantor.

Já naquele dia, a casa era novamente visitada por outra dupla, que chegou, conversou, fotografou, mudou os móveis do lugar, fez Roberto relembrar novamente o passado (mais uma vez, ele chorou). Como os entrevistadores anteriores, tomaram um café e foram embora. E aí tudo voltou ao silêncio. E é na verdade dele que Dagmar está cansada.

Voz que passou por rádios como a Excelsior, Nacional e Mayrink Veiga, 80 discos gravados, seis deles recebendo o ouro, Roberto Müller, 74 anos, não se apresenta há seis anos na capital pernambucana, local que ele escolheu para viver há três décadas. Não canta, note-se, na mesma cidade que há alguns anos vem sedimentando em todo o país um lugar de destaque na produção musical do “brega”, inclusive com a enorme adesão de um público jovem e de classe média.

“Deixa isso pra lá, não tem nada não”, diz o cantor, tentando aquietar a agonia de Dagmar, refratária ao que lhe parece ser outra falsa atenção. Müller não: em vez de se aborrecer por ter que repetir sua história – a infância no Piauí, os concursos cujo grande prêmio era uma caixa de Melhoral, o tempo que ele vendeu laranja na beira da praia, a época em que cantou nos cabarés de Angola – fica tranquilo. Diz tudo de novo.

Sua calma, note-se, não significa subserviência ao interesse midiático: ela está baseada nos vários anos em que o artista lidou cotidianamente com gravadoras, turnês, fãs, aqueles anos em que fez parte de uma imensa engrenagem musical-industrial.

Essa engrenagem foi dissolvida com fenômenos como a popularização de downloads, a distribuição de discos e vídeos no circuito alternativo e a baixa no preço dos computadores, uma mudança radical que inclui fortemente o senhor José Ribamar da Silva, nome de batismo do intérprete e compositor. Apesar de não constar mais no catálogo de suas antigas gravadoras (CBS, atual Sony, e as extintas Copacabana e Polydisc), ele continua a ter sua obra circulando nas coletâneas vendidas nas carrocinhas de CDs, no YouTube, nos bares, nas festas de cidades do interior.

É uma realidade de mão dupla: se, por um lado, o intenso e não autorizado compartilhamento de suas músicas deixa de render o dinheiro relativo a direitos autorais, essa distribuição não gerenciada permite que sua música volte a ser ouvida por quem não possuía mais seus discos e, mais ainda, termina alcançando novos ouvintes. No entanto, a popularidade que Müller desfruta em espaços como o YouTube (vide as quase 20 mil visualizações da música “Me Arrependo”, as mais de 45 mil de “Fruto Amargo”, as mais de 27 mil em “Vida de Cão sem Dono”) não é refletida na sua agenda de shows: podem surgir três em um mês, pode não aparecer nenhum. E aí vem o silêncio, aquele do qual Dagmar está cansada.

“O pessoal chega oferecendo qualquer coisa, R$ 500, R$ 1.000”, diz ele, que, em respeito tanto à sua carreira quanto à dos colegas cantores, diz não para as pouco vantajosas propostas locais. Esse não o mantém distante do público do lugar onde vive e onde é bastante consumido, mas não o afasta de cidades como as modestas Maraial (Mata Sul de Pernambuco), Pilõezinhos (Paraíba), Barras e Uruçuí (Piauí).

Outro fator para o certo silêncio, Müller não tem dúvida, foi a publicação de sua morte em um livro didático (Educação sem Fronteiras) impresso em 2002 pela Secretaria de Educação do Piauí. Na página 14 da publicação, lê-se: “Ainda em 1963, Roberto Müller, um piauiense de Piracuruca, tornou-se sucesso nacional com a música ‘Entre Espumas’. Faleceu ainda jovem e é lembrado com carinho pela (sic) sua contribuição”. Quando descobriu a absurda informação, mostrada por um fã durante um show que ele realizava justamente em Teresina (PI), o livro já estava circulando havia quase cinco anos. Hoje Müller espera o resultado do processo que move contra o governo do Piauí. “Muita gente parou de me procurar porque achava que eu tinha morrido.”

Tal informação encontrou mais força no início de 2010, quando o artista sofreu um acidente vascular cerebral e passou semanas internado no Hospital da Restauração. Foi um período difícil: o AVC comprometeu uma das pernas e o cantor precisou usar, durante meses, cadeira de rodas. Os shows, é claro, foram suspensos. Hoje, Müller já consegue, apesar de certa dificuldade, andar. Melhor ainda: voltou a fazer shows e a encontrar um público cativo que nunca o esqueceu.

Realizar tais show não é tarefa simples: como invariavelmente precisa viajar, ele necessita da ajuda da onipresente Dagmar. Ela o ajuda a se locomover pelo espaço, às vezes árido, do palco, onde fios, cabos, pedestais de microfones e caixas de som servem como espécie de obstáculos para o cantor, que se submete semanalmente a sessões de fisioterapia.

Tudo isso, no entanto, não arrefece a vontade de Müller se apresentar: quem acompanha suas apresentações sabe que o cantor esmera-se para surgir bem para o público. Os ternos bem-passados e de cor escura são acompanhados por gravatas de cores fortes – amarelas, vermelhas – coordenadas com um lencinho. O bigode cheio faz par com a peruca negra que adotou há anos, dois acessórios estilísticos que estão mais relacionados a um segundo momento da carreira do cantor.

No início, quando se tornou conhecido como O Romântico Pingo de Ouro do Brasil, título conferido por Abelardo Barbosa, Chacrinha, o cabelo meio encaracolado e castanho era alisado para trás e o bigode era limado. Os ternos, no entanto, já faziam as vezes de armadura artística do homem baixinho e dono de voz potente que popularizou  no país o bolero, gênero colocado no mesmo balaio do brega. “Pois é, eu sou um cantor de bolero. Mas não me importo com esse rótulo de jeito nenhum.”

ROBERTO MULLER (Capa)Apesar das diferenças estilísticas, o Roberto que posava de galã em capas de discos (hoje vendidos como raridades nos sites de compra, venda e troca) continua a ser o homem romântico que canta frases como “sei que choras”, “se um dia tu voltares” e “me deixaste”.

Ouvidas há décadas nas popularíssimas rádios ou em programas de auditório transmitidos nacionalmente, elas são hoje proferidas pelo artista que canta sentado em cadeira de plástico posta no meio do palco. É ali, com movimentos contidos, às vezes iluminado precariamente, que ele, a despeito das limitações físicas, passa mais de uma hora cantando para uma plateia profundamente distinta daquela de décadas atrás. Brinca, elogia a noite e o público (“vocês são gente bacana”), vende os CDs e DVDs trazidos por Dagmar. “São apenas dez reais, minha gente”.

Vem “Talvez, Talvez, Talvez” (versão de “Quizás, Quizás, Quizás”), vem “Dama da Noite” (“do palacete, ela acabou no cabaré”), vem novamente “Entre Espumas”, porque Müller gosta de agradar. Quando o show termina, Dagmar está ao seu lado para ajudá-lo a caminhar pelo palco.

Roberto permanece tão arrumado e distinto quanto no começo do show. Tão arrumado e distinto como quando chegou ao Rio em 1963. Arrumado e distinto como no dia em que foi até a Rádio Mayrink Veiga e se apresentou no programa Pescando Estrelas, de Arnaldo Amaral. “Eu pedi para cantar lá. Disseram que eu podia ir no domingo pela manhã. Daquele dia em diante, graças a Deus, não deixei mais de cantar.” Dagmar ouve tudo com a mão encostada na testa. Sabe de tudo isso. Sabe que já começa outro silêncio. É dele que Dagmar está cansada.

 

(Fabiana Moraes é jornalista e socióloga, repórter especial do Jornal do Commercio (Recife), autora de reportagens especiais como “Ave Maria“, “A Vida é Nelson“, “O nascimento de Joicy” (Prêmio Esso de reportagem em 2011) e “Os sertões” (Esso de Jornalismo em 2009). Publicou, no formato livro-reportagem, Os Sertões (2011) e Nabuco em Pretos e Brancos (2012). A série “O clube dos corações partidos” foi publicada originalmente no Jornal do Commercio.)

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1 COMENTÁRIO

  1. Os meus olhos lacrimejam de emoção ao ver uma estrela em seus últimos tempos de luz, mas é a vida, com a juventude vai o sucesso, e o que FELIZMENTE nos resta é um bom trabalho jornalístico que nos traz a tona e não deixa cair no esquecimento o trabalho desse grande talento… Parabéns a talentosíssima jornalista que me fez transbordar de emoção melancólica com a verdade de seus relatos…. Obrigado pela oportunidade de ler essa matéria…

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