A exclusão social brasileira é retrabalhada e transformada em poesia por Emicida em “Crisântemo”, clipe gravado e lançado na Ocupação Mauá, no centro de São Paulo.    

 

Uma voz feminina em off surge inesperadamente na segunda metade do novo videoclipe de Emicida, “Crisântemo”. Epa, eu conheço essa voz.

Quem recita um texto escrito de próprio punho é Jacira Roque de Oliveira, mãe do rapper, de quem eu ouvira falar desde a primeira vez que o entrevistei e que conheci pessoalmente já na segunda. Desde aquele dia, na primeira sede da produtora independente Laboratório Fantasma, haviam me impressionado as obras de arte inspiradas no candomblé que vi na parede – eram de Jacira.

Agora me impressiona a sua voz, misturada aos tambores candomblezeiros que povoam o forte e triste rap autobiográfico que narra a perda precoce do pai no seio da família Emicida. “Nem deu tempo pra dizer ‘pai'”, emite o rapper, antes que a mãe possa contar sua versão da história.

 

 

“Seu Zé é a representação do Estado no Jardim Fontales”, recita Jacira, para gelar o meu sangue. “Justo eu, que me criei sem pai.” “Perder o pai já é uma tragédia. Perdê-lo na infância é sentir saudade não do que viveu, mas do que poderia ter vivido.” “Ele não vai voltar.” “Quando o pai (engole em seco) morre, a gente perde a mãe também. Eu já sabia o que era isso. Como pode alguém morrer no mesmo dia em que nasceu?”

Jacira interpreta Emicida e os outros filhos (entre eles Evandro, o Fióti, caçula que hoje atua como produtor ao lado do irmão). Emicida interpreta os irmãos e a mãe. Todos se intepretam e se interpenetram (perdi a mãe antes do pai, Jacira, e é igual você falou: parece que, quando a gente perde um, perde o outro também).

Emicida gravou e lançou “Crisântemo” na Ocupação Mauá, num bolsão pobre em frente ao luxuoso edifício da Estação da Luz. Quis mostrar sua obra primeiro para os moradores – moradores – de lá, mas trouxe a imprensa para testemunhar o (des)encontro. Logo à entrada, jornalistas de classe média (ou maior) tínhamos que atravessar as inscrições de siglas provavelmente desconhecidas por nós e anônimas para os veículos em que trabalhamos: MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), MMRC (Movimento de Moradia da Região Central), ASTC-SP (?), FLM (Frente de Luta por Moradia). Lá dentro, crianças moradoras – moradoras – do local recebiam pipoca e refrigerante de graça, antes que começasse a sessão.

 

“Ah, agora que estava ficando bom…”, lamentou uma moradora – moradora -, assim que se passaram os 5 minutos e 39 segundos do clipe. Emicida e Fióti deram entrevistas. E eu trocava mais ou menos as seguintes palavras com Jacira:

Eu: É sua voz.

Ela: Não fala da minha voz… Eu não gosto da minha voz.

Eu: É linda.

Ela: Você gosta? Quando eu ouço acho tão feia a minha voz… Parece que tenho uma batata quente na boca…

Eu: O texto é seu?

Ela: É meu. Leandro (Emicida) me ligou e falou: “Mãe, eu quero que você faça uma participação falando do dia da morte do pai. Fiz um primeiro texto cheio de poesia, de enfeite, de firula, aí falei: não foi nada disso, conte o que aconteceu! Não estava dentro da realidade. Aí parei, concentrei, e isso veio em cinco minutos. Mostrei pra ele, que falou: “É isso mesmo”.

Eu: Aí gravou no estúdio?

Ela: Fomos lá pro estúdio, falei do jeito mesmo que estava no texto. Fui lendo.

Eu: Como este espaço da Ocupação Mauá se conecta com a história de vocês?

Ela: Naquele período, a gente vivia isso. Eu morava numa casa que tinha muito mofo, é uma coisa que eu não gosto de lembrar. Eu não gosto de lembrar. Era a nossa situação, eu com quatro filhos, uma situação que não tinha saída. Na verdade, mesmo quando Miguel ainda era vivo isso já era uma incógnita, porque ele não tinha uma perspectiva legal de vida. Era muito difícil. Os meninos me falaram: “Mãe, a senhora vai ver o clipe? Ficou pesado”. Ih, meu filho, foi pesado há 20 anos. Hoje, não mais. Casei com uma pessoa de quem gostava muito, mas conforme vai conhecendo você vai ficando magoada… Passou, foi uma parte da minha vida que passou, e hoje estou numa outra posição. Eu odeio mofo. Me dá uma sensação horrível. O mofo pode sair. Pode melhorar. Precisa de luta. Eu continuo brigando ainda, como o pessoal que está aqui, que está brigando por sair daqui ou por melhorar a forma de viver. Escolher aqui para fazer o clipe e escolher pessoas daqui foi muito bem pensado.

Eu: Colocar sua voz nele é uma grande homenagem dos seus filhos a você, não?

Ela: É verdade. É verdade. Quando vou ouvir a música e chega na minha voz, acho muito pesado. Eu tiro. Eu não me aceito. Não sei se é a voz ou se é reviver a história. A gente sai da miséria, vem outro grupo e ocupa. É uma história de destruição que leva várias gerações até situar num lugar que a gente tem de direito.

Eu: Com a sua família está acontecendo…

Ela: Com a minha está acontecendo, por um lado. Mas a gente vê que não é tudo, não é com todo mundo.

Agradeci a rápida entrevista, senti saudades da minha mãe, dei um beijo no rosto de Jacira e me fui, passando de novo pelas siglas: MSTC, MMRC, ASTC, FLM… Pensei na ausência do meu pai, que, diferente de meninos como Leandro e Evandro, só recentemente eu perdi.

Saí pensando nessa palavra bonita, crisântemo (é uma flor, disse o Emicida), e pensando que, sim, a nossa vida é só um detalhe. Mas, ah, acontece tanta coisa dentro dela.

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil. Foto principal de Thiago Coelho, do show de Emicida na Virada Cultural.)

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