É sério mesmo que querem expor um senhor de 82 anos nos tribunais como se ele fosse um caloteiro descumpridor de compromissos agendados? Mesmo ele sendo o inventor da bossa nova? 

Duas notícias bombásticas relacionadas a João Gilberto furaram esta mesma semana em que ele completou 82 anos de idade. Apareceram primeiro, se não estou equivocado, no jornal O Estado de São Paulo, ambas assinadas pelo jornalista Julio Maria.

A primeira deu conta de que o músico baiano perdeu para a gravadora multinacional inglesa EMI a “guarda” dos discos Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (196o) e João Gilberto (1961), marcos inaugurais não apenas sua carreira como de todo o movimento cultural da bossa nova. Trata-se de uma disputa judicial que se arrasta há décadas e mantém fora de catálogo (a não ser no ilimitado “mercado” dos downloads ditos “ilegais”) aqueles que são provavelmente os três álbuns mais importantes de toda a bossa nova. No início do mês, a batalha parecia ter sido decidida em favor de João, mas um desembargador pleno de argumentos esquisitões cassou a liminar segundo a qual o artista prevalecia sobre a gravadora.

A segunda notícia documenta a corrida judicial movida contra João por representantes da casa privada de shows Via Funchal e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, órgão público da prefeitura carioca. Eles pleiteiam ressarcimento por shows que João programou e não realizou nos últimos tempos, em valores estimados de R$ 900 mil e R$ 570 mil, respectivamente, segundo a reportagem do Estadão. As falas do médico sobre a gripe do artista são de causar vontade de chorar em espíritos de aço.

Economias capitalistas à parte, parece que o noticiário e os personagens nele envolvidos endoidaram de vez. É custoso puxar pela montanha de clichês que forram como um envelope de plástico-bolha as lendas de João Gilberto e da bossa nova. Ele é o papa do movimento, o “mito”, o artista cujos fio de voz e batida de violão viraram de pontacabeça a história da música brasileira. Ela (a bossa nova) escapuliu do mesmo Rio de Janeiro que hoje põe advogados no encalço de João e ganhou o mundo como o principal cartão de visita musical-artístico-cultural brasileiro fora daqui. Cantadas por gente como (só para ficar nos mais óbvios) Ella Fitzgerald e Frank Sinatra, as músicas lançadas primeiro por João encantaram corações e produziram milionários no Brasil e no planeta Terra.

Esses mesmos chavões se tornam agora o estorvo que turva a compreensão do significado da escalada de máquinas poderosas (multi)nacionais como EMI, Via Funchal e a prefeitura do Rio por sobre os ombros de João Gilberto. Experimente esquecer por um minuto queele é o “mito” fundador da bossa nova, revolucionário da cultura e criador de antipatias por seus, digamos, excessos, manias, obsessões e subjetividades.

Experimente pensar no “mito” como se fosse seu pai velhinho (o meu, por exemplo, morreu neste ano, aos 83 anos, consumido pelo Mal de Alzheimer). Ou seu avô cansadinho, paradinho, desejoso a esta altura de só ver a vida passar pela janela. Ou até, se você for jovem demais, a bisavó caduquinha, vivendo seus últimos dias em cima da Terra. É sério que é nesse cara que essa gente está querendo colar a pecha de caloteiro, embusteiro ou faltador de compromissos? Como berrariam os chorumeiros da reaçaria, cadê os governos?, que fim levaram os banqueiros bilionários?, onde está a nata da música “popular” brasileira?, quedê o Lobão?, para acudir João Gilberto?

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

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