O gênero que provoca tanto amor quanto ódio renasce sob a forma de passinhos de jovens conectados dos morros, onde a dança ganha contornos antropofágicos e funde frevo com samba.

À sua maneira, no seu ritmo, o funk carioca volta a brilhar na cena musical brasileira, gostem ou não. Os funkeiros MC Federado & os Leleks (“Ah Lelek Lek Lek Lek Lek”) e Naldo (“Amor de Chocolate”) são a melhor prova do que estamos falando. Com sucessos-chicletes, esses músicos já arrebataram mais de 15 milhões de acessos no YouTube, cada um, superando os colegas paulistas com seu funk ostentação, assim como os (apadrinhados-das-gravadoras) sertanejos universitários. Se esse gênero representa, para você, a imbecilização do Brasil, lamentamos dizer que esse texto não vai lhe agradar.

O funk carioca renasce não por suas melodias, não por suas composições, mas pela dança. Os Leleks comporam o “Passinho do Volante”, a música-coreografia que está por trás de “Ah Lelek Lek Lek Lek Lek”. Tudo aconteceu por acaso, quando MC Federado, nascido Paulo Victor Conceição da Silva, e seus amigos (um lavador de carro, um mototáxi e um barbeiro) inventavam uma dança do passinho num baile funk. O sucesso instantâneo da performance motivou-os a gravar um videoclipe, feito com uma câmera digital e um tablet. O custo da produção ficou em 70 reais. O jogador Neymar, sempre ele, deu o empurrãozinho que faltava, ao comemorar um gol com a dança dos jovens da comunidade de Coronel Leôncio, de Niterói.

Com mais recursos, o ex-engraxate Naldo faz sucesso há dois verões com músicas nas quais a dança é seu grande diferencial. Em vez de apenas top models e garotas robustas de shorts colantes, Ronaldo Jorge da Silva grava clipes com bailarinos homens da companhia de dança Intrépida Trupe. São os B-boys, que também sobem ao palco de seus shows fazendo performances pop, bem no estilo dança de rua. Suas letras tratam da sexualidade, mas em quase nada se parecem com o funk carioca do passado. Naldo começou a dançar por causa de uma tragédia, o assassinato de Lula, seu irmão mais velho. Para superar a perda, decidiu atender a uma vontade de Lula, que adorava dançar. Matriculou-se então num curso de dança e noutro de acrobracia.

Essa nova geração do funk carioca revela que é hora de virar a página. Criminalizado pela polícia e hostilizado por parte da sociedade, os pancadões (ou proibidões) ganharam toda sorte de preconceitos. Havia algo de seminal nas músicas e nos bailes funks, que reuniam, nos anos 2000, milhares de jovens em festas a perder de vista nas comunidades. Em vez de compreender, os encontros de galeras foram sendo estereotipados e estigmatizados por quem não freqüentavam esses bailes e, aos poucos, tornaram-se “locais onde o sexo com menores rolava solto”. Poucos gêneros musicais seriam capazes de suportar esse tipo de campanha negativa.

Mas o funk carioca sobreviveu, como tem acontecido desde o princípio. No começo dos anos 1980, o Rio cria sua corruptela do Miami bass, ou som de Miami, preservando a dança acelerada e as músicas com conteúdo sexual explícito que reinavam nos Estados Unidos. Na década seguinte, o funk invade os apês da burguesia carioca com músicos como DJ Marlboro, Claudinho & Bochecha e Cidinho & Doca (“Rap da Felicidade”: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é/ E poder me orgulhar/ E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”).

A novidade, que não é tão nova assim e nomes como MC Federado & os Leleks e Naldo vêm incorporando abertamente, atende pelo nome de passinho. A dança é uma febre nas comunidades cariocas. A melhor tradução para o sucesso desse fenômeno ocorreu com a projeção de “A Batalha do Passinho – O Filme”, do cineasta Emílio Domingos. Foi no domingo dia 25 de fevereiro, no Morro da Providência, zona portuária do Rio. Mais de 400 pessoas assistiram, em primeira mão, ao documentário que já acumula prêmios, como o de melhor filme na Première Brasil – Mostra Novos Rumos do Festival do Rio de 2012. Mas o que é, afinal, o passinho?

Wallace Ferreira - Fotos João Xavi
“O passinho é uma nova fase do funk, em que se valoriza a dança. E é uma dança muito antropofágica, porque absorve outros gêneros, como o frevo, o samba, o break, o kuduro, a vogue dance, a mímica, o molejo do carioca”, explica Domingos. “Os dançarinos viraram o corpo do funk. A música é uma coreografia nova atrás de outra, nunca uma batalha é igual a outra.” Em 2011, durante uma edição do concurso conhecido como A Batalha do Passinho, o cineasta foi convidado para participar como jurado. O evento, que foi criado por Julio Ludemir e Rafael Nike, reúne centenas de dançarinos e ajudou na popularização do estilo. Ao ver a dimensão da arte produzida ali, Domingos abdicou da função e, literalmente, tratou de documentar as disputas.

A maioria dos dançarinos são homens que começaram a fazer as suas danças para atrair a atenção das garotas nos bailes. Rebolar faz parte da brincadeira, um jeito de chamar a atenção da plateia feminina. Mas as mulheres também criaram seus próprios passinhos, assim como há homossexuais que, pela dança, se tornaram exímios dançarinos sem precisar ocultar sua sexualidade. Muitos aprenderam a dançar sem nunca ter ido a uma festa funk. São filhos de funkeiros, cresceram com os pais e até os avós freqüentando bailes em que hoje são atração.

Os bailes funks, vitimados pela criminalização que acaba por criminalizar as pessoas também, ainda lutam para sobreviver. Com a ocupação de morros pelo Exército para a instalação de unidades pacificadoras, as UPPs, essas festas foram proibidas sob a alegação de promoverem o tráfico de drogas. Além disso, uma resolução de 2007 do governo estadual, que dá poder à Polícia Militar de autorizar a realização dos bailes, pôs em risco a vida de artistas e profissionais do funk carioca. É nessa realidade conflagrada que o gênero vem renascendo.

Emílio Domingos (esq.), Anderson Santana, Julio Borgerth Lobato e Paulo Castiglione
Além de ser apaixonado pela música e pela cultura, o cineasta decidiu produzir esse documentário para satisfazer sua curiosidade pessoal pela cultura urbana e também oferecer respostas a muitos que têm vergonha de dizer que gostam de funk, muito embora se esbaldem na pista de festas privadas. “São garotos das favelas que não têm problema de autoafirmação, nem de auto-estima. Eles administram e cultuam a sua própria popularidade”, acrescenta o cineasta, que acompanhou a explosão do passinho desde o princípio, no ano de 2008. Esses jovens, que não são Portinaris, nem Guimarães Rosa, trataram de aproveitar os “inegáveis progressos econômicos e sociais” do país (vide a pensata do jornalista Mino Carta) e partiram para produzir avanços culturais que dizem respeito a eles e às comunidades em que vivem. Usaram a internet para aprender estilos musicais, do Brasil e de fora, e divulgar, sobretudo no YouTube, e simultaneamente divulgar seus novos passos de dança. Criaram algo novo, que supera a fase anterior do funk, tão defenestrada pela elite cultural brasileira. “O próximo passo é eles conseguiram viver disso, que é o desafio de qualquer artista, viver de sua própria arte”, diz Domingos.

O cineasta produziu o documentário de forma independente, sem ter conseguido qualquer tipo de ajuda financeira. Cientista social formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Emílio Domingos é pesquisador do programa “Esquenta” da TV Globo, e tem os dois pés fincados na música brasileira contemporânea. Seu primeiro longa-metragem, o documentário “L.A.P.A” (2008), ganhou o prêmio de melhor filme pelo Júri Popular no Festival Câmera Mundo, na Holanda, e fala da cena do hip hop no boêmio bairro da Lapa. Domingos já trabalhou em filmes como “Mistério do Samba”, “Viva São João” e “Pierre Verger”, e dirigiu videoclipes para o rapper BNegão e o premiado cantor e compositor Lucas Santtana.

Domingos faz questão de ressaltar que a exibição de “A Batalha do Passinho – O Filme” no Morro da Providência teve um quê de simbólico. O cineasta explica: em 1897, o governo brasileiro prometeu aos soldados cariocas uma casa, caso eles vencessem a Guerra dos Canudos. Ao retornarem, viram a promessa virar pó e decidiram ocupar o morro, que ganhou o nome em função da providência que tomaram. Logo passou a ser conhecido também como Morro da Favela, mesmo nome adotado em Canudos, numa alusão a uma planta conhecida favela. “Fiz questão de exibir o documentário porque também filmei lá.” Há três semanas, o filme havia sido exibido na Pavuna, para cerca de 350 pessoas. Esse segundo longa-metragem do autor deve entrar em circuito a partir de abril.

O documentário seria um curta-metragem, mas Domingos foi entrevistando um personagem aqui, outro acolá e de repente se viu diante de uma história extraordinária. No filme, está presente o ajudante de obras Gualter Rocha, o Gambá, jovem conhecido como “O Rei do Passinho”, brutalmente assassinado no réveillon de 2012. O cineasta já mantinha contato com ele pelos chats do Facebook, uma das formas mais intensas e fáceis de comunicação com esses jovens. Na vez de filmar a participação de Gambá, o que seriam alguns minutos viraram um dia inteiro. Na avant prèmiere na Pavuna, o jovem era ovacionado pelo público. “Ele era único, carismático, roubava a cena, um Charles Chaplin da dança. Ele não tinha medo de improvisar, era um artista com estilo”, lamenta Domingos. “Morreu cedo, muito cedo.”

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