Reedição de obras de início da carreira faz refletir sobre a trajetória da cantora paraense que fluiu, desde os anos 1970, da MPB ao romantismo ao choro farto no programa Ídolos.   

 

Aproveitando a presença simpática de Fafá de Belém no reality show musical Ídolos, da TV Record, a gravadora Universal reuniu numa caixinha, no final do ano passado, três discos dos primeiros anos da cantora, quando ela própria, muito jovem, perseguia a possibilidade de se tornar estrela no mercado musical brasileiro. A caixinha começa pelo segundo álbum de sua carreira, Água (1977), e continua com Banho de Cheiro (1978) e Estrela Radiante (1979). Eram os anos MPB da paraense, que tempos depois ficariam irremediavelmente para trás.

Por volta de 1985, quando estava recém-transformada em musa da campanha pelas eleições diretas e cantava o “Hino Nacional Brasileiro” em homenagem ao ex-futuro presidente Tancredo Neves (1910-1985), ela iniciou um afastamento do público que a sustentara até então. Fosse por razões musicais, mercadológicas ou políticas, ou por todas, distanciou-se da MPB de pegada universitária e se pôs a cantar lambadas paraenses, temas românticos açucarados e canções sertanejas. “Nuvem de Lágrimas” (1989), gravada em trio com Chitãozinho & Xororó, foi um dos ápices de período.

Mais ou menos na mesma época, a cantora tirou o “de Belém” de seu nome, e passou a se assinar simplesmente Fafá nas capas dos discos. Instalou-se uma rixa pouco compreensível para quem não viva no Norte – os paraenses não teriam gostado da supressão, aquela ingrata estaria renegando as origens. Embora a MPB seja mais calada em seus ódios, é curioso notar que a guinada popular de Fafá tornou-a figura até certo ponto à margem também daquela confraria supostamente elitizada, sofisticada, cheia de manias.

De repente, Fafá não era mais de Belém, nem da MPB, nem do Brasil, de um certo Brasil que parecia querer as Diretas Já, mas não queria suas “musas”.

Lembro que muito tempo depois, no início dos anos 2000, uma pessoa muito querida que trabalhava com Fafá me procurou (eu trabalhava na Folha de São Paulo), dando conta de que havia a intenção de reaproximar a artista de seu primeiro público, o emepebista. Em 2002, saíram dois álbuns simultâneos, O Canto das Águas (em que a artista se rebatizava Fafá de Belém do Pará) e Piano e Voz (que procurava conciliar repertório das, digamos, duas fafás). Cheguei a ouvi-los, mas não lhes dei ouvidos – afinal, eu fazia parte daquele público emepebista empedernido com alergia crônica de qualquer um que cantasse lambadas, bolerões ou sucessos de Leonardo.

O mundo dá voltas. Nestes primeiros anos 2000, o tecnobrega paraense, principalmente na figura amorosamente fafazeira de Gaby Amarantos, acendeu olhos e ouvidos para a colossal musicalidade do Pará. A série de shows Terruá Pará, a partir de 2006, reposicionou ouvidos do sudeste para a variedade desconcertante da música de lá – Fafá esteve na primeira edição, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, e lembro também que era possível detectar a torcedura de narizes pairando parada no ar. Os narizes torcidos, aliás, se dividiam irmanamente entre Fafá e Gaby, essa vestida como diabólica diva drag queen electro pós-indígena paraense.

Até por conta da reconquista da música do Pará pelos paraenses, nos últimos anos venho reouvindo com gosto os primeiros discos de Fafá. Não é nada difícil perceber que que o que os distinguia, por entre a afinidade com o clube da esquina de Milton Nascimento e já alguma afinidade com o romantismo, era justamente o orgulho paraense que atualmente Gaby continua e revigora. “Bom-Dia, Belém” (de Edyr Proença e Adalcinda), do LP de 1979, é uma comovente declaração de amor (“Belém, minha terra, meu rio, meu chão”) e saudade “da infância na grama dos campos tranquilos do meu Marajó”. Antes mesmo de tirar o “sobrenome” geográfico, ela já lamentava o que ia perder pouco adiante.

Desde o início, Fafá cantava, sob arranjos corpulentos, temas paraenses do erudito Waldemar Henrique (a faixa-título do LP de estreia, Tamba-Tajá, de 1976) e da dupla Paulo André e Ruy Barata, como os épicos “Indauê Tupã” e “Esse Rio É Minha Rua” (1976), “Pauapixuna” e “Foi Assim” (1977), “Banho de Cheiro” e “Baiuca’s Bar” (1978), “Pacará” (1979). Eram – são – clássicos da melhor música brasileira não-carioca-nem-baiana (não à toa, a jovem paraense também gostava de gravar temas mineiros, gaúchos, forró pernambucano de Luiz Gonzaga, cantiga sertaneja de Catulo da Paixão Cearense).

Olhando hoje para trás, entendo que era isso que Fafá estava querendo de volta em 2003, quando dedicou O Canto das Águas ao amor pela música paraense, num tempo em que isso ainda não era moda por aqui. Maior era a façanha de Fafá: desde 1976 ela era toda pulmões, apaixonada pela utopia de nos acordar para a incrível musicalidade indígena-caribenha dos povos da floresta amazônica.

Tantas rotações e translações depois, eis diante de nós aquele sorriso outra vez, agora repousado no rosto de uma serena senhora, a chorar copiosamente quando qualquer um dos calouros do Ídolos a fazia lembrar Belém, o Pará, o Brasil. Chorar com ela nos episódios doÍdolos foi para mim um reencontro, que a caixinha (perdoemos a Universal pelo título eleitoreiro) Três Tons de Fafá de Belém aprofunda e umedece. O amor de Fafá é sério, é sereno, é para valer.

Sobre as voltas que o mundo ainda não deu, não tenho conhecimento sobre reedições atuais da fase “brega” da artista. Mas também os ando ouvindo clandestinamente, e qualquer dia desses volto aqui para falar um pouco sobre esses discos. Afinal, fosse cantando Waldemar Henrique, Roberto Carlos ou Michael Sullivan & Paulo Massadas, tudo que Fafá nunca deixou de ser foi de Belém, do Pará, do Brasil.

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

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