Filho do breve e intenso compositor Taiguara (1945-1996), Lenine Guarani estreia em disco aos 24 anos e homenageia o pai com a faixa-título “Menino da Silva”, de 1970.

 

Ele se chama Lenine Guarani. Nasceu em 24 de agosto (de 1988), o mesmo dia do suicídio do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), que sucumbiu ao golpismo atávico da elite brasileira (quase) sempre no comando.

Carioca radicado em São Paulo, Lenine Guarani estreia na música com um lindo CD denominado Menino da Silva, lançado pelo histórico selo Kuarup. Ele carrega em si muitos símbolos, além desses da data de morte de Getúlio, da referência nominal ao revolucionário soviético Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924) e do sobrenome de extração indígena, tupi-guarani, índia latino-americana-brasileira.

Lenine é, também, filho caçula de Taiguara (1945-1996), músico brasileiro que nasceu em Montevidéu, no Uruguai, durante uma temporada de shows de seu pai, o maestro e bandeonista Ubirajara Silva. Taiguara foi um ícone da canção de protesto conforme inaugurada em terras brasileiras na década de 1960. Mas foi um ícone que não pôde exercer em plenitude a militância político-poético-musical que gostaria de exercer.

Cantor de festivais dos anos 1960 e autor de momentos grandes da música brasileira como o pan-americano Imyra, Tayra, Ipy (1976), Taiguara foi um dos autores mais censurados daquele período. Mais audaz temática que musicalmente, teve a história colhida pela antipatia silenciosa e insidiosa dos meios de comunicação pelos que pratica(va)m militância demais, esquerdismo demais, alguma coisa demais.

Guarani, o filho de Taiguara, também possui esse algo a mais. Também soa musicalmente sereno, delicado (talvez até mais que o pai), também parece poética e politicamente interessado em algo mais que apenas o tchu, o tchá, o tchutchatchá.

As canções autorais do jovem Lenine passam rápidas, como leve promessa. São três nesse disco de estreia, “Como Vai o Amor”, “PQP” (composta com Marcos Alma) e “Tristeza É Vagar”. “Como vai o amor/ tanto cala, veio a dor/ quando se arrasta se enche de mágoa, tristeza e rancor”, ele nos faz suspeitar na primeira faixa do CD.

À parte o lado autoral, Guarani é um emepebista com qualidades de intérprete, de voz calma e moderna como a de Taiguara não soava nos anos pós-bossa nova. Semissertanejo, preza e retoma a música semiparticipante e semiurbana de seu pai (autor, neste CD, das belas “Samba do Amor” e “O Olhar”, ambas de 1994, e da faixa-título de 1970, mui simbolicamente denominada “Menino da Silva”), de Chico Buarque (“Agora Falando Sério”, de 1970), de Vinicius de Moraes e Toquinho (“O Velho e a Flor”, 1971). Semiurbano, preza e retoma a música de festival semiparticipante e semissertaneja de Edu Lobo e Capinan (“Ponteio”, 1967), de Dori Caymmi e Nelson Motta (“O Cantador”, 1967).

Inerte à chata treta eterna entre emepebistas e tropicalistas, Guarani exalta a música de protesto sem ter que, por isso, negar a tropicália. Na bela, nordestina e sertaneja “Catavento”, de seus parceiros Bruno Piazza e Camila Wittmann, cita um trecho extraído do Gilberto Gil pós-tropicalista (em parceria com Dominguinhos), de “Lamento Sertanejo” (1975): “Sou como rés desgarrada/ nessa multidão boiada caminhando a esmo”.

Tal trecho semissertanejo, semiproletário, ata-se com a canção final do CD, composta pelo pai Taiguara que se foi cedo e semirresolvido demais. “E eu, que vivia cantando, uma vez chorei tanto e não quis esquecer/ fui lá na origem do mal e encontrei afinal como, quando e porquê/ nasce a exploração, cresce a acumulação e o peão reproduz/ sou feito meu pai, mas meu sonho não vai se acabar nessa cruz”, canta esse novo “Menino da Silva”, sonhando com igualdade social, com aquilo que Taiguara não teve nem obteve. Assim termina o disco do filho: emocionante à beça.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Emocionante Pedro! Sei que a irmã do Lenine, chamada Imyra, mora hoje nos EUA e está tentando relançar esse disco tão simbólico do pai deles aqui. Ela entrou em contato comigo pelas redes sociais quando escrevi um texto sobre o disco. Acho que vale a pena bater um papo com ela.
    Abraços

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