foto: nilton fukuda/ae

não vi o jogo, naqueles 90 minutos eu tomava um magnífico vinho e lia a biografia nova do mick jagger.



adoro futebol, sou santista fanático, vocês que me conhecem já sabem de tudo isso.


mas ontem resolvi testar meu espírito de neutralidade, já que não aderi a nenhum dos dois principais argumentos dos que fomos excluídos dessa final.


argumento 1.  “vou torcer para o boca, corinthians nem f…. o boca é o brasil na libertadores. etc etc etc”


argumento 2.  “argentino nunca! tiro até foto com o maluf, mas torcer para argentino jamais! brasil antes de tudo! etc etc etc”


pensei: e se eu não ceder à tentação de envenenar meu coração dessa vez?


não vendo o jogo, não caio nessa esparrela de me ver torcendo por um ou por outro (ou contra um e contra outro.)


detesto também aquele discurso polyano-civilizatório: “mais importante é o futebol, quem ama o futebol não pode se furtar a esse espetáculo, é preciso ser superior!”


uma ova. eu já não tinha visto também o primeiro jogo, portanto nem cultivei alguma ansiedade.


a tv deixou de funcionar assim que o max foi expulso da sala após dar um soco no jorginho.

mas é claro que ninguém escapa incólume a um lance épico como esse corinthians X boca.


os rojões cantavam os gols, as buzinas e o surdo da escola de samba na rua ribombavam na cabeça e nem a janela anti-ruído adiantou.


teve um momento em que eu antecipava o tamanho do rojão pelo sibilar do projétil no ar.


minha gata abacaxi tinha aquele olhar de pedido de clemência do gato de shrek.


os cães que não acharam abrigo ganiam como se pressentissem um tsunami nas filipinas.






vou narrar então esse jogo que não vi, mas ouvi pelos barulhos da rua.






a euforia dos motoqueiros, das buzinas e do “vai corinthians” dominou a noite até as 21h45, quando o jogo começou.


aí, um silêncio sepulcral tomou conta da rua.


todo o barulho e a autoconfiança sumiu quando a bola rolou.


de vez em quando, um torcedor da torcida do contra saía à janela e berrava “booooca”.


algumas das respostas que sobrevinham são impublicáveis.


eu imaginava que aquilo fora resultado de uma jogada de perigo perto da área.






teve um momento em que ouvi fogos lá para os lados do butantã, e imaginei que tinha sido gol do boca.


porque, se fosse do corinthians, as explosões teriam sido dentro da minha sala, praticamente.


eu aprendi a distinguir as comemorações pelos seus efeitos.


larguei a biografia quando mick e keith ainda estavam em dartford, na escola primária.






quando saiu o primeiro gol do corinthians, houve mais do que comemoração, houve desabafo.


“torce contra agora, filhodaputa!”, berrou um vizinho pela janela.


“chupa, porquinho de merda!”, berrou outro vizinho.


“bambi do caralho!”.


“nós somos um bando de loucos!”.


a escola de samba que se instalou na rua atacou de novo.






eu fui à janela e vi um casal de vizinhos se abraçando, ambos com a camisa do corinthians.


um carro com um samba-enredo subia e descia a rua, com o som no toco.


outro apartamento tinha as caixas de som colocadas para fora da janela, e tocava o hino do corinthians.






estranhamente, também quando saiu o segundo gol ninguém berrou simplesmente “GOOOOL”.

parecia básico demais, óbvio demais.


os berros que saíam eram desabafos, eram sinais limítrofes entre alívio e desafio. o “vai corinthians” pontuava toda a marcação das baterias antiaéreas.


um escapamento de motocicleta grande, aberto, parecia rodar em círculos pela praça na esquina de cima. a motocicleta ia e vinha, e o som aumentava e diminuía.


os homens cantavam em sincronia fina, eram coros ensaiados durante anos de prática, ninguém errava um compasso.


as mulheres que eu ouvia berravam mais esparsamente, eram gritos histéricos e desconectados – típicos de uma adesão compulsória, de ocasião.






os corinthianos, após o jogo, dividiram-se em os que passaram a noite acordados e os que se se juntaram a eles nas primeiras horas da manhã.


não houve noite, houve um continuum.


pela manhã, meu vizinho, corintiano não-doente, estava na garagem com uma lata de thinner tirando uma tinta que manchou suas rodas.
cumprimentei-o e ele sorriu com cara de insone. acho que não teve tempo de desabafar.

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