Contrariando o Fitzgerald.

O segundo ato desta vida americana começa com o acachapante encontro de nosso protagonista com a santa-mariense Inah: o primeiro grande amor, musa inaugural de uma futura legião delas.

Mas como é que um membro da mais fina estirpe boêmia porto-alegrense foi parar na interiorana e recatada Santa Maria da Boca do Monte, a quase 300 quilômetros de distância?!?!

Pois então.

Santa Maria, 1926. Notem o engarrafamento... de cavalos

Ainda no quartel, o rapazote vencera a edição de 1933 do Concurso Oficial de Carnaval promovido pela prefeitura de Porto Alegre. Ganhara justamente com aquela primeira marchinha de que falamos: “Carnaval”, defendida pelo cordão carnavalesco Os Picaretas.

Só que aí, no meio da comemoração, terça-feira gorda com o sol a pino, o já cabo Lupicínio passa na frente do quartel: bêbado, fantasiado, abraçado no amigo Nuno Roland cantando “A Jardineira” (esse último detalhe é licença poética). Detalhe: estava, teoricamente, de serviço. Tomaram a pior punição possível: transferência para Santa Maria.

Nuno Roland ainda bem jovem, mas em foto tirada já no Rio

Tiro pela culatra: aos 18 anos, o soldadito descobre o amor. Amam-se loucamente, Lupicínio e Inah, na bucólica cidadezinha.

Esfumaça a tela e passam-se rapidamente três anos: a família da moça não aguenta mais a boemia incorrigível do pretendente (sabe lá o que era ser boêmio na Santa Maria dos anos 1930). Pra piorar, Lupi ganha mais um concurso de carnaval, desta vez local, mas com a mesma marchinha. E pior ainda: agora era o crooner do jazz do Batalhão. Aquilo não ia dar boa coisa. Os pais metem tanta pressão em Inah que a moça lhe intima a casar. Lupi, num ato de sensatez, diz que não. Ela, ofendidíssima, decide que vai casar, sim senhor!

Com ele ou sem ele.

E Inah casou-se.

Com outro.

Aí, debaixo do primeiro e espetacular descorno, Lupi dá baixa e decide voltar pra capital.

O ano era 1935, e a boemia porto-alegrense lhe recebe de braços e pernas abertos. Reencontra as saudosas companheiras da noite e os velhos amigos do Conjunto Catão, onde reassume, com aquele estilo de dizer o samba que lhe granjeia o apelido de “Mário Reis. Ataca também no efêmero Jazz Silencioso, do maestro Décio Pereira, e o pai entra em surto: logo agora que o guri parecia endireitar!

Pede socorro a André da Rocha, já então reitor da Universidade de Porto Alegre (futura UFRGS), que mais uma vez não lhe falta, arrumando um emprego mais do que moleza pro rapaz: bedel – algo entre inspetor e porteiro – da faculdade de direito. A ideia de seu Francisco era que o filho repetisse sua sina: funcionário público da portaria de uma escola durante o dia e músico só nas horas vagas.

Busto do André da Rocha que hoje mora no saguão da faculdade de direito da UFRGS, da qual foi fundador. Nascido no Rio Grande do Norte e formado pela escola de direito do Recife, o cara chegou ao estado em 1890, aos 30 anos, e morreu em Porto Alegre, em 1942, depois de ter sido chefe de polícia, catedrático, procurador-geral e presidente do superior tribunal - além de grandão da maçonaria

No começo, até deu certo. Com a canção “Triste História” ganha o primeiro prêmio de mais um concurso promovido pela prefeitura – este pra comemorar 100 anos da Revolução Farroupilha. Junto, dois contos de réis! O samba, feito nas regras da arte dos anos 1930, é a primeira parceria com quem melhor o traduzirá ao longo da vida: o cantor, compositor, pianista e violonista Alcides Gonçalves, já uma estrela local (detalhe: o próprio Alcides confessaria, anos mais tarde, que nessa música Lupi fez tudo. Ele só cantou).

No ano seguinte, mais uma vitória carnavalesca, num concurso da Rádio Gaúcha: a marcha “Quando Eu For Bem Velhinho” – que teve uma mãozinha de Octavio Dutra na harmonia  – foi interpretada pelo amigo Johnson e, quatro carnavais mais tarde, faria algum sucesso nacional na voz de Newton Teixeira.

Em 1943, mais um fato curioso envolveria a imbatível “Carnaval”. Fato que diz muito da personalidade de seu autor, e lembrado por ele mesmo numa das crônicas escritas na década de 1960 para a edição gaúcha do jornal Última Hora: “(Eu) fazia parte de uma comissão que julgava músicas carnavalescas, me apareceu novamente a marchinha, desta vez cantada pelo grupo Democratas e como sendo de autoria de outros dois compositores. Eu não falei nada aos outros membros da comissão e a música novamente venceu. Deixei os meninos receberem o prêmio e até convidei-os para tomarem uma cerveja comigo”.

Sente a turma de Alcides em 1935, na inauguração da Rádio Farroupilha: ele é do chão, à esquerda. A seu lado, o gordo Paulo Coelho. E aí quem? Carmen Miranda. Achou pouco? Na ponta direita, ao alto, cara de poucos amigos, lord Mário Reis. E atrás de Carmen, com cara de "filma eu, tio!", Marino dos Santos. Os outros são também integrantes da orquestra de Paulo

Distraídos, chegamos a 1936. E então o primeiro grande momento: o parceiro Alcides grava pela poderosa RCA Victor um 78 rpm só com músicas da dupla. De um lado, “Triste História. Do outro, “Pergunta a Meus Tamancos”. Não foi lá um estouro, ficou entre os cem discos mais tocados do ano (“Pergunta” em 64º lugar e “Triste” em 78º). Além disso, era um disco!!! Isso, numa época em que quase nenhum gaúcho tinha acesso ao mundo das gravações – a pioneira Casa A Electrica tinha fechado havia mais de uma década e, para lançar um bolachão, só saindo do estado, e a convite.

O curioso é que Lupicínio tinha então apenas 22 anos, mas já soava como um compositor maduro. Se essas duas primeiras canções são ainda bastante ligadas à tradição do samba, pelo menos três das maiores pepitas do seu tesouro já estavam então compostas, esperando uma chance de serem levadas ao disco: “Nervos de Aço”, “Zé Ponte” e “(Xote da) Felicidade“. Todas feitas lá pelos seus 18 anos, todas para Inah.

*        *        *

Alcides Gonçalves nasceu no dia 1º de outubro de 1908. Em Pelotas (243 km ao sul de Porto Alegre) e, como bem lembra seu biógrafo Marcello Campos, no mesmíssimo dia em que foi lançado o Ford T, o primeiro automóvel efetivamente popular.

A família se mudou pra capital gaúcha quando ele tinha apenas nove anos, em 1917. Dez anos depois, o cara era um profissional, estreando em grande estilo: acompanhado pelo jovem prodígio do piano Paulo Coelho, com quem seguiria até a morte de Paulo. Juntos, eram estrelas reluzindo nas melhores casas com música da cidade, como o chiquérrimo Café Colombo ou o Bar Americano.

Em 1935, quando começa a parceria de verdade com Lupi (e direto com a vencedora “Pergunte aos Meus Tamancos”), andava na casa dos 27 anos – o parceiro tinha 21. Alcides não só era mais velho como também muito mais experiente: já tinha feito de tudo, até tocar em navio junto com seu irmão Antoninho Gonçalves em troca de cama, comida e gorjetas. E, ao contrário de Lupicínio, era um nome de sucesso, recém contratado pela estreante Rádio Farroupilha em duas funções: artista solo e crooner do grupo de Paulo. Seu passe fora comprado diretamente da Gaúcha, onde estava desde a inauguração, em 1927.

Alcides, década de 1930, em momentos ‘fotos para fãs’

Alcides, década de 1930, em momentos ‘fotos para fãs’

Além de cantor, foi fazendo também nome como pianista e violonista. E efetivamente, era bom nas três coisas. Não por acaso: tinha estudado música com o maestro Roberto Eggers e vinha de uma família prodigiosa, onde quase todo mundo tocava ou cantava, a começar pelo pai, trombonista amador. Os Irmãos Gonçalves fizeram parte essencial da história da música da cidade – e era ele o primogênito dos nove: seis músicos e três… mulheres (aí não pegava bem).

Antoninho Gonçalves (1915-1983), era companheiro de jazz do Paulo Coelho, onde esde 1938 (há quem diga 1936) atuava como pioneiro num instrumento que era novidade no mundo todo: a guitarra elétrica – então chamada de violão elétrico, já que o Brasil é o único lugar onde violão não se chama guitar, guitarra ou alguma variação disso.

A dele fora importada diretamente dos Estados Unidos, quando, que se saiba, só havia outras duas em todo o País, nas mãos dos cariocas Henrique Brito (ex-Bando dos Tangarás, teve a primeira, em 1932) e Josué de Barros. Antoninho começara com Paulo no violão, quando eram a atração do mítico cabaré e cassino Clube dos Caçadores.

Na década de 1940, de volta ao violão, vai liderar o Antoninho Gonçalves e Seu Regional, contratado da Rádio Difusora, cujo vocalista e pandeirista era outro dos irmãos, Oscar Gonçalves (1910-1979), respeitado ponta-esquerda goleador do time do Renner e também crooner da Orquestra Ernani-Marino – futuramente, também da orquestra de Herbert Gehr, no American Boate.

Na mesma emissora, tocava jazz (na guitarra) com Os Malucos do Ritmo – primeiro grupo local a se dedicar ao gênero, fundado em 1946 pelo trompetista Ernani Oliveira.

Paralelo, seguia no jazz do Café 17, um grupo de oito figuras que tinha alguns dos melhores músicos dessa geração – e que, apesar do nome, praticamente não tocava jazz (mais sobre isso no capítulo sobre a “Era dos Jazz”). Nos anos de 1950, se transfere para o jazz do Indiana, o último café com música ao vivo da capital. Morreu em 24 de fevereiro de 1983.

Espetacular foto da Orquestra de Paulo Coelho em Buenos Aires, 1938. Os cinco do meio, na frente: Marino dos Santos, Horacina Corrêa, Antoninho Gonçalves, Alcides, Ernani Oliveira. Ao piano, Paulo. Na percussão, ao seu lado e atrás dele, Walter e Juvenal Gonçalves

Outros dois irmãos, Walter Gonçalves (1916-1947) e Juvenal Gonçalves (1918-1955), começaram também com Paulo, tocando percussão. E o naipe de percussão da família se completava com o caçula e também baterista Osmar Gonçalves (1922-1977).

Anos mais tarde, Juvenal e Walter também passariam pra bateria. Juvenal chega a ser o titular do instrumento na prestigiosa Grande Orquestra da Farroupilha e morre jovem  – como vários dos irmãos, de câncer.

Por sua vez, Oscar Gonçalves sempre foi um bom cantor, mas viveu à sombra do irmão mais famoso. Nos anos 1930, ele e Alcides foram crooners da Orquestra Rojabá. Em 1948, é contratado para dois grupos na Rádio Difusora, ambos ao lado de Antoninho: o já citado regional, e a orquestra da casa – versão mansa e ampliada d’Os Malucos do Ritmo. Nos anos de 1950, estava à frente da Orquestra Herbert Gehr, e seguiu na ativa até meados da década de 60, como cantor do American Boate, uma das casas noturnas mais chiques da história do ramo em Porto Alegre. Morreu no dia 30 de junho de 1979.

Oscar, de olhos fechados. O cara do violão do meio (parece, mas não é uma guitarra) é Antoninho

Já a vida de Walter Gonçalves dava um filme.

Depois de fazer seu nome com Paulo Coelho, tocando pandeiro e tamborim, tentava a vida no Rio quando deu uma sorte bárbara. O pianista e bandleader americano Eddie Duchin chegava com sua big-band para uma temporada brasileira, quando o baterista do grupo mal desembarca e resolve que não vai ficar. O ano era 1943, e Eddie era tão popular que, anos depois, teria um filme sobre sua vida: a cinebiografia Melodia Imortal (The Eddie Duchin Story).

Eddie Duchin em pleno Copacabana Palace, 1943

Em pânico, o americano sai à cata de um substituto, e começa a procurar justamente pelo endereço mais chique do Rio: o Copacabana Palace. Pois quem estava lá, empunhando as baquetas na orquestra de Simon Bountman? Walter Gonçalves. Pelo jeito, se saindo muito bem, já que foi contratado na hora.

Terminada a temporada carioca de Eddie, fica o convite pra se juntar à trupe. Walter amarelou. Mas, poucos meses depois, um motivo mais forte o leva a mudar de ideia: loiraça, corista e americana, ela se chamava Billee Lee Grant, e teve uma rápida e avassaladora passagem pelo Copa. Depois de um curto romance com Walter, a moça volta pra sua terra. Aí ele resolve apostar no convite de Eddie. Estava tão descornado que o próprio diretor do cassino, impressionado com o efeito devastador da loira sobre o coração do moreno, lhe dá de presente 15 contos de réis pra passagem – só de ida.

Foi, viu, e venceu: casou com a blondie e ainda assumiu de baterista na orquestra de Duchin. Conto de fadas total. Foi se dando tão bem que conseguiu montar sua própria Walter Gonsalves and His South American Orchestra.

Melhor que isso, só se trouxesse seus irmãos pra perto. E foi o que fez: tudo armado, contratos assinados, passagens compradas, planos internacionais para os Gonçalves Brothers… E aí ele morre.

De uma grave e fulminante doença renal (ou câncer, não há certeza) e praticamente na véspera dos irmãos embarcarem. Dia 22 de setembro de 1947, chega um telegrama com a notícia.

Tinha  31 anos de idade.

(Só restou a sua bateria, mandada para Osmar, depois disputada por vários instrumentistas da cidade, principalmente por seus míticos “pratos turcos” – provavelmente Zildjian).

*        *        *

Na próxima coluna, segue a história de Alcides, e Lupi começa a chegar ao Brasil.

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Aqui pra ouvir “Pergunta aos meus Tamancos”, com o Alcides.

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Aqui o melhor de dois mundos: “Nervos de Aço” com o próprio Lupi e o sempre fabuloso Paulinho da Viola.  A gente até esquece a Xuxa e abstrai a Hebe.

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Aqui pra ver umas das grandes sequências de “Melodia Imortal”. Lá pro fim, o número musical. Nunca vi um ator (Tyrone Power, grande!) fingir tão espetacularmente bem que toca piano.

 

(Arthur de Faria, gaúcho de Porto Alegre, é pianista, compositor, produtor musical, arranjador e jornalista. Desde outubro de 2011, vem publicando em capítulos seu livro Uma História da Música de Porto Alegre, no site Sul21. Leia, em FAROFAFÁ, o primeiro capítulo da saga de Lupicínio Rodrigues.)

 

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3 COMENTÁRIOS

  1. Agradeço ao Paulo pela lembrança, com relação ao meu pai – Maurício Kotlhar, cujo instrumento – na Paulo Coelho e Sua Orquestra, era o sax-tenor (fabricado pela Cohn). Ele foi um musico ativo no cenário portoalegrense. Aos treze anos já tocava profissionalmente o violino, executando a trilha sonora em várias salas da Capital, no tempo do cinema mudo. Foi aluno de Olga Fossatti (tia de Radamés Gnatalli, a quem deu aulas de piano). Aos dezessete anos passou a tocar clarinete e, em seguida, aderiu ao saxofone, como integrante da Orquestra de Ruy Silva. Este grupo acabou fundindo-se com a orquestra de Paulo Coelho, aonde meu pai assumiu como 1o. saxofone. Ao formar-se em Medicina acabou deixando a música como profissão.
    Telmo Kotlhr

  2. Agradeço ao Paulo pela lembrança, com relação ao meu pai – Maurício Kotlhar, cujo instrumento – na Paulo Coelho e Sua Orquestra, era o sax-tenor (fabricado pela Cohn). Ele foi um musico ativo no cenário portoalegrense. Aos treze anos já tocava profissionalmente o violino, executando a trilha sonora em várias salas da Capital, no tempo do cinema mudo. Foi aluno de Olga Fossatti (tia de Radamés Gnatalli, a quem deu aulas de piano). Aos dezessete anos passou a tocar clarinete e, em seguida, aderiu ao saxofone, como integrante da Orquestra de Ruy Silva. Este grupo acabou fundindo-se com a orquestra de Paulo Coelho, aonde meu pai assumiu como 1o. saxofone. Ao formar-se em Medicina acabou deixando a música como profissão.
    Telmo Kotlhar

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