“Não vejo nada que não tenha desabado/ nem mesmo entendo como estou de pé/ olhando um outro num espelho pendurado/ que reconheço, mas não sei quem é.” As palavras inicias de Avante, novo CD do músico pernambucano Siba, 42 anos, emolduram um cenário algo apocalíptico. A canção se chama “Preparando o Salto” e anuncia um tempo de mudanças para o ex-líder dos grupos Mestre Ambrósio e Fuloresta do Samba.

Distanciando-se pela primeira vez das pesquisas sobre tradições nordestinas dos trabalhos anteriores, Siba posa na capa com uma guitarra em punho. O álbum mira de volta os tempos de adolescência, quando a paixão pelo rock’n’roll ainda sobrepujava o fascínio pelo maracatu.

“Com 15 anos, eu só gostava do rock. Quando percebi que tinha uma coisa contraditória nisso, pensei: porra, só rock?”,  lembra, sentado numa mesa de padaria à beira da avenida Sumaré, em São Paulo, para onde se mudou há quase um ano, após uma longa temporada vivendo junto aos maracatus rurais de Nazaré da Mata, na zona da mata pernambucana, e uma volta à Recife natal.

Na procura pela diversidade, encontrou a música africana, que ajudou a moldar a musicalidade do Mestre Ambrósio e é referência forte em Avante. De algum modo, a rota nova o reaproxima do manguebit dos anos 1990, movimento do qual o Mestre Ambrósio participou de modo colateraL.

Ao longo da entrevista, Siba falou dos cruzamentos entre música congolesa e brega nordestino em “Avante” refletiu sobre as tensões entre “tradição” e “modernidade” e se posicionou sobre a polêmica aberta no final e 2011 pelo matogrossene Pablo Capilé. Gestor do coletivo Fora do Eixo, Capilé endereçou críticas ácidas à música pernambucana atual, citando um suposto isolamento cultural do estado, capitaneada segundo ele pela geração manguebit. Leia os principais trechos a seguir.

Pedro Alexandre Sanches: Dizem que o mundo vai acabar em 2012, e seu disco tem uns versos meio pré-apocalípticos, “Canoa Furada”. Tem alguma coisa a ver?

Siba: Não, com o calendário maia, não (risos)… Acho que de alguma forma acabei o mundo para fazer esse disco. “Cantando Ciranda na Beira do Mar” é meio trágica, poesia épica, em que tudo termina no aniquilamento total. “Preparando o Salto” é bem pessoal, tem a ver com um momento de crise profunda, radical, de você olhar no espelho e perguntar “que porra é essa?, quem sou eu?”. Em Nazaré da Mata eu estava vivendo o oposto, a unidade total, num lugar minúsculo, uma inteireza entre o que eu fazia, onde eu morava, em que eu acreditava. Foi uma experiência longa, durou 11 anos, e depois a vida se tornou mais complexa que aquilo. Essa estrutura de vida e trabalho foi desajustando e pedindo outra resposta. Foi quando escutei O Método Túfo de Experiências (2005), do Cidadão Instigado, que bateu muito forte. Outra necessidade que eu tinha era de romper com a banda, eu estava muito dependente.

PAS: Trocar a rabeca pela guitarra tem a ver com isso?

S: A guitarra foi meu primeiro instrumento. Eu tocava até o Mestre Ambrósio. Todos os discos tinham uma ou duas faixas com guitarra, mas já era um instrumento secundário. Eu tocava no show, mas não ligava, não estudava, estava fora do meu processo criativo. Minha relação com música mudou naquele período em Nazaré, alén de cantadores de viola e maracatu, eu só conseguia ouvir jazz. A única coisa que nunca parei de ouvir foi Motörhead, que me serve quando estou com raiva, quando estou feliz… Não tem como tirar a coisa que está dentro de você, né? Por dois anos, dos 16 aos 17 anos não ouvia mais nada além de Jimi Hendrix.

PAS: O novo CD tem algo equivalente, algo que você estivesse ouvindo muito pra conceber?

S: Tem uma coisa que foi determinante: uma descoberta tardia da música do Congo, com a série de discos Congotronics, do selo belga Crammed. São grupos da periferia da capital, Kinshasa, de favelas imensas, que não têm um puto e constroem instrumento, captador, caixa de som, amplificador, tudo à mão. É um pouco da música tradicional, das várias músicas tradicionais, porque são 200 etnias no país, misturadas em Kinshasa. É uma música extremamente eletrificada, no limite da explosão do volume dos aparelhos, distorção pura, rock puro. Sempre ouvi música africana, o processo da formação da música africana moderna, dos anos 1960 e 1970, foi meu modelo pra fazer o Mestre Ambrósio.

PAS: Como começou esse interesse?

S: Com a world music, nos anos 1980. Youssouf N’Dour, Mory Kanté e Salif Keitä começaram a vender discos na Europa e a ser mais ou menos distribuídos no Brasil. Eu vinha do rock, enchi o saco, comecei a ouvir jazz e música do mundo inteiro. E comecei a ouvir música de Guiné, Mali, Senegal, noroeste africano. Vi que era um processo muito recente, do final dos anos 1940 para 1960, relacionado à colonização, à existência dos países e das cidades e a independência nos anos 1960. Começaram a ir pras cidades, a construir as cidades. Passa a existir uma cidade, com uma informação cultural antiga., aparece instrumento ocidental, moderno, e logo, logo, logo, guitarra. Pegam sem nenhum pudor, discussão ou questionamento, e fazem uma música moderna, influenciada não pelo rock, mas pela música cubana. Por algum motivo que não sei explicar, nunca tinha olhado pra música congolesa.

PAS: O que explicaria esse foco na África? Corre no seu sangue, tem a ver com ancestralidade?

Passei um pedaço da minha vida buscando esse tipo de explicação e de lógica. Quando você vem do rock, traz essa contradição. Era brasileiro, nordestino, do Recife, e com 15 anos só gostava do rock. Quando percebi que tinha uma coisa contraditória nisso, ainda mais eu, que tinha uma origem regional, local e familiar rica de referências, pensei: porra, só rock? Fui procurar, e encontrei muita coisa, passei a me entender. Se você ouvir Kasai Allstars, Konono No 1, essas bandas do Congo de que falei, vai ver que tem muita ligação com Hendrix. Na África tem esse gosto por música com ruído, eles mexem nos instrumentos pra ter ruído. Se você for em Nazaré da Mata ver um ensaio de maracatu na rua, vê as mesmas coisas, o som no talo.

PAS: Sem conhecer os artistas do Congo, ouço o CD e escuto a chamada música brega brasileira. O que Fernando Catatau produz geralmente fica um pouco com essa cara, mas nesse caso não sei quanto é se ou dele.

S: Essa associação direta é uma injustiça com o Catatau, e comigo também. Tem uma coisa nesse disco que é difícil explicar. É eu dizer que esse disco começa com canção de violeiro. Só quem sabe é quem gosta de cantoria de viola, um subgênero dentro de cantoria de viola, imagina… Nego acha que é uma coisa igual, toda igual, cara cantando versos iguais, e é super-rico, tem uma estética toda própria, um pensamento complexo, difícil. É tocado com harmonia, não num acorde só, às vezes como uma valsa, às vezes meio abolerado, num jeito de tocar que a gente chama “chá com pão” (pronuncia “chá com pão” como onomatopeia), que nada mais é que o iê-iê-iê mal tocado, aquele iê-iê-iê meio tosco, que é a base do brega no Nordeste. Tem a ver com o brega, lógico, mas é outro caminho.

PAS: Os artistas bregas não teriam talvez a mesma origem dos cantadores?

S: Exatamente, a influência dos Beatles, aquele roquinho com esse ritmo chá com pão. Eu devia ter inventado isso, chá com pão, como um gênero de ritmo. Explicava o disco.

PAS: De certo modo, você continua pesquisando tradições...

S: Sempre tentei explicar a tradição como isso, a linhagem de alguma coisa que se constrói com o tempo. Não como coisa a defender ou que represente uma bandeira sei lá de quê, seja política, de nacionalidade, regional. Tradição é uma coisa que um grupo de pessoas cultivou por um tempo, e aí vira uma diversidade. Nesse sentido, o rock’n’roll é tão tradição quanto o maracatu. Tradição é uma coisa que não fui eu exatamente que inventei, estou pegando e mais gente pegou, vem de mais atrás. E, claro, ouvi bastante brega a minha vida inteira, está na minha ecologia auditiva como criança do Recife. Em Nazaré, tinha um bar na esquina da minha casa que no sábado tocava brega a noite inteira.

PAS: Quando só ouvia jazz, você estava negando isso?

S: Na verdade, nunca soou mal nos meus ouvidos, não. Tenho certa resistência com esse brega do subúrbio do Recife de hoje, que tem uma temática muito filha da puta com a mulher. Com isso no meio é meio difícil pra mim, mas a música brega em si sempre me soou legal. Sou um fã incondicional de Joelma da Banda Calypso. Acho ela demais.

PAS: Você já explicou o disco inteiro sem citar nenhuma vez o termo manguebit. Em algum lugar ele está também, ou não?

S: Lógico, eu venho disso, né? O termo foi muito cobrado, muito usado. Botaram um nome lá atrás, esse nome foi servindo, depois deixou de servir. Aí vem a cobrança de o nome servir, vem mais gente depois, uns reverenciam e outros negam. Cada vez mais o troço vai abrindo, ficando complicado, e o nome vai ficando menor e mais reduzido. Mas, claro, nos anos 1990 aquela mensagem foi importante, pioneira. Está presente em todo o jeito de funcionar isso que a gente chama hoje de música independente, de música que está fora do mainstream. Aquela lógica está aqui, não é que a gente inventou, mas a gente intuiu, e ela só se desenvolveu com a internet. Fiz parte, e continuo, me sinto ainda parte da mesma turma, do mesmo jeito.

PAS: Talvez na minha cabeça eu visse Mestre Ambrósio como o canto mais tradicionalista do manguebit.

S: Todo mundo entendia o Mestre Ambrósio assim. É o estereótipo, o senso comum de que guitarra e eletrônico é moderno e acústico é tradicional e passado. Eu já sei que é impossível lutar contra isso. Falo porque sou obrigado, porque trabalho e lido com essa questão. Mas, quando fizemos um grupo que começou elétrico e foi ficando cada vez mais acústico, era nossa posição mais punk-rock. Certa ou errada a nossa leitura, foi o que a gente fez, e o que impulsionou foi uma energia de atualidade, não uma energia de retomada de nada. Não era nem um pouco tradicional, era uma banda de rock, só que com rabeca e zabumba. No Brasil tem esse negócio da bandeira, cultura popular, defesa das raízes, identidade nacional, que é antigo pra caralho, na minha concepção.

Nos anos 1990, aquele discurso do manguebit, de retomada das raízes, modernização, parabólica na lama, funcionou, embora eu não concordasse totalmente com a formulação. Era a resposta para o momento. Mas não quer dizer que nada disso seja verdade. A cultura não tem fronteira, depende muito mais de como você amarra a sua convicção e o seu tempo. Pode fazer rock onde for, mas pra fazer rock puro em algum lugar tem que constuir algo que se justifique, senão você vai estar fazendo um roquinho, na minha opinião.

PAS: Como você recebeu a provocação lançada a Pernambuco pelo Pablo Capilé?

S: Ele lançou uma provocação que acho genuína, que deveria ser escutada e discutida em Pernambuco, mas foi infeliz no formato agressivo. Da forma como fez, impossibilitou o diálogo. Se vier esse diálogo não vai ser via ele, nem tão cedo. Pernambuco enquanto identidade cultural não me interessa. Já sou de lá, não tenho que defender. Mas, me colocando dentro do time dos atingidos, sinto nos meus amigos e em mim uma busca mais estética que de um coletivo político que vá viabilizar sei lá o quê. Nosso foco é mais esse, isso traz vantagens e também desvantagens. Nesse sentido, a crítica dele podia ter sido ouvida. Mas não vai ser, não dessa forma.

PAS: Tirando o osso do que ele falou, é algo que você também disse há pouco, em outras palavras: essa geração fora-do-eixo está botando em prática tudo o que o mangue propôs como programa. O mangue em si não se isolou, não acabou prisioneiro do conceito que criou?

S: Não cabe a mim ficar avaliando. A proposta política do mangue realmente se mantém dessa forma, e nesse sentido está feito, foi feito lá atrás. E aí talvez falte uma outra proposta estética, que venha se contrapor, e acho que é isso que faz as pessoas se ressentirem tanto. Venho desse lance que é entendido como um coletivo, anos 1990, manguebit. A coletividade disso é muito relativa. Sempre disse que o que entendo como mangue era dividir o tempo e o espaço e uma certa sintonia de ideias, nada mais do que isso. Nunca me sentei pra discutir isso com Chico Science, Fred Zeroquatro, nem ninguém. A gente estava junto, mas ao mesmo tempo era cada um por si. Não acredito nessa coletividade de movimento. Venho de um que parece isso, mas nunca foi. Hoje está tudo tão fragmentado, tem gente boa em tanto lugar, que não tem mais a nova onda. A nova onda são centenas agora, e cabe a cada um tentar achar o que é.

PAS: Quando você começa o disco falando “não vejo nada que não tenha desabado”, dá pra pensar diretamente na indústria fonográfica. Você é um artista independente, não é de hoje. A “Canoa Furada” pode ser o Titanic…

S: Não foi isso que eu quis dizer, mas pode. A passagem do Mestre Ambrósio pela Sony foi conflituosa, mas, vendo hoje, a gravadora realmente investiu na banda. Fez um trabalho careta, formal, mas efetivo. Por um tempo fui, sim, de gravadora, e talvez por ter sido vi o quanto não funcionaria pra mim de forma alguma. Fui pra Nazaré da Mata e fiz tudo de outro jeito. Cada vez mais acredito muito num jeito solitário de trabalhar. Você tem que cuidar do seu lance mesmo, saber fazer o processo como um todo, agregar pessoas. Não tenho tanta eficiência assim como empresário e gerenciador, mas rola, funciona.

PAS: Qual foi o processo desse disco especificamente? Ele tem patrocínio da Petrobras.

S: É, mas o patrocínio veio do meio pro fim do processo. Acredito que você tem que fazer o disco sozinho – fazer seja lá o que for, hoje questiono muito ter que fazer um disco, mas seja lá o que for que você vai formatar pra representar o seu trabalho, tem que pensar de um jeito que consiga fazer só. Pensei um disco que eu ia bancar com minha pouca grana, de um jeito muito mais precário, ia ficar devendo e pagar depois. Depois, veio a Funarte e ajudou um pedaço, a Petrobras completou o processo, foi legal.

PAS: Ele está disponível para download na internet, foi você que jogou?

S: Não, vazou, uma semana antes de sair. Começou a ir pra imprensa, aí vazou.

PAS: Foi um jornalista?

(Silêncio.)

PAS: Você não faria isso, o próprio artista liberar seu disco?

S: Está lá no meu site, depois que vazou eu coloquei. Isso devia ser entendido como opção do artista, não uma obrigação. Estão chamando quem não libera de careta e reacionário, acho uma inversão de valores. O cara já é responsável por inventar, formatar, produzir e ainda tem que dar? Não, se ele não quer dar, ele não dê. Mas a lógica do compartilhamento é inerente à lógica da cultura, você não pode ir contra isso. Eu fazia isso com 12 anos, gravava fita cassete e dava pra meus amigos. É diferente de fazer dinheiro com o produto de alguém, copiado.

PAS: Não é esse o mundo que desabou?

S: Esse lado do mercado nunca me preocupou muito. Quando eu fui pra Nazaré da Mata, não tinha estratégia nenhuma, zero estratégia. Eu tinha R$ 30 mil, dez anos atrás, era o dinheiro que juntei em São Paulo, esses trocadinho. Fui pra Nazaré juntar os caras com quem eu mais queria tocar no mundo e ficar lá. Acreditei, como sempre, que o começo do artista é quando ele bota o cu na reta, a cabeça na guilhotina.

PAS: Você tem feito isso? Qual é o pescoço na guilhotina em “Avante”?

S: Tudo que fiz: inventar de tocar guitarra de novo, fazer um negócio elétrico que nego vai achar que é uma negação do passado. Tem uma parte do meu público que me vê como um defensor das raízes, da cultura popular e da identidade pernambucana e brasileira. Mas o que eu posso fazer? O risco não é necessariamente se negar, mas acho que o artista tem que achar onde é o ponto do risco dele e estar ali, seja onde for.

PAS: Talvez no passado tenha sido cômodo pra muitos artistas dizer “a gravadora não quer que eu mude”? Podia ser o medo dele próprios?

S: Lógico. Sofri um puta bloqueio nesse processo. Não estou mais em Nazaré e não canto mais maracatu como ofício primeiro, então sou o quê? Que artista sou eu? Eu estava frequentando o maracatu com menos intensidade, sem conseguir dar tudo de mim, me questionando severamente, “então não sou mais”. “Avante” tem a ver com o rompimento do bloqueio. É seguir, seguir em frente. É a possibilidade de seguir.

PAS: A letra de “Preparando o Salto” conta essa história?

S: Sim, é o momento em que percebo que recobrei a voz. E “Avante” é quando comecei de novo, fala de romper a barreira, voltar a ter uma voz.

PAS: Você já deu o salto? Ou continua preparando?

S: Não, o salto não precisa ser dado. É só você poder dar, eu acho. Não tem a ver com justamente saltar, mas ter coragem de preparar. Tem mais a ver com a beira do precipício do que com o salto em si. A cada minuto você salta. O salto é na cabeça.

Entrevista publicada originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.


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