De tempos em tempos, me acostumei a ver um personagem sair das sombras para pedir “controle de qualidade” na minha atuação como repórter.
Geralmente, é o próprio protagonista da reportagem que pede intervenção no ato jornalístico.

Tempos atrás, devido a uma reportagem sobre uma espécie de “salário-aposentadoria” que inventavam somente para ele, um ex-chefão de uma conhecida rede de TV pública pediu minha interdição ao jornal para o qual trabalho. Não conseguindo, mandou colocar meu nome numa lista negra (sei disso porque os produtores dos programas me contaram).
Um aristocrático secretário de Cultura confidenciou a subordinados que me considerava seu “desafeto” (curioso: para ser desafeto, primeiro não precisa ter tido algum afeto antes?).
Caetano Veloso chegou a reclamar que, fosse num jornal de primeiro mundo, não me deixariam escrever com tanta liberdade.

Outras reportagens que fiz, apesar de mais impactantes pelo que desencadearam, não suscitaram tais reações.
Por exemplo: quando revelei, inquirindo o secretário-executivo do Ministério da Cultura à época, o subsídio fabuloso para o Cirque du Soleil (O Estado de S.Paulo, pág. D1, 24 de abril de 2006), não houve tentativa de retaliação.
Ou quando revelei que as redes sociais estavam em pé de guerra contra a atual ministra, Ana de Hollanda, por esta ter suprimido o selo do Creative Commons do site do ministério, também não desencaixotaram os tacapes.
Ou quando revelei que a ministra-cantora nomeara um diretor de sua gravadora como representante do ministério em São Paulo.

Como não me tornei repórter para colher sorrisos e tapinhas nas costas, sigo meu caminho. A verdade vai se estabelecendo com seu timing de enxadrista.

Dessa vez, porém, há uma novidade: é um personagem gravitacional, uma espécie de testa-de-ferro, que vem me atacar.
Reclama de algum tipo de intenção subliminar e de editorialização na minha reportagem de 18/11, na qual informo que a Biblioteca Nacional (ligada ao MinC) subsidiaria tradução do livro Leite Derramado, de Chico Buarque, irmão da ministra. Após minha reportagem, o MinC suspendeu a bolsa e encaminhou a decisão para a Comissão de Ética da presidência.

Bom, os fatos são esses, não tenho como alterar a realidade para agradar a fulano ou sicrano.
Claro que há uma razoável discussão de fundo no caso. O Ministério da Cultura acha mesmo fundamental subsidiar livro que dará lucro à centenária e bem-sucedida Éditions Gallimard, da França? Chico Buarque necessitaria mesmo desse subsídio? E Edney Silvestre? E Luís Fernando Veríssimo?

É uma política de Estado inovadora traduzir Jorge Amado e Drummond em línguas estrangeiras? Justo os que são historicamente mais traduzidos?
O governo considera que “política do livro e literatura” resume-se apenas em desonerar editoras e dar-lhes vantagens? Um mercado que faturou R$ 4,5 bilhões em 2010? Que faz fortunas enquanto autores do porte de um Roberto Piva se obrigam a recorrer a “vaquinhas” de amigos para sobreviver? E cujo preço de livro é um dos mais caros do mundo?

A parte “editorializada” da minha reportagem viria de onde? Do fato de eu registrar que cresce o descontentamento com a ministra Ana de Hollanda? Que artistas que antes apoiavam o governo, como José Celso Martinez Correa e José de Abreu, desembarcaram do apoio e agora criticam abertamente a gestão?
Bom, “editorializado” seria se eu negasse o óbvio.

Mas como o articulista chegou perto da calúnia, chamei sua atenção educadamente no blog dele ontem.
Ele replicou e logo tive a impressão que seria um debate estéril, quando ele invocou o tal “controle de qualidade” para o jornalismo.
Esse tal controle, obviamente, garantiria que as teses “do bem” do articulista fossem sempre vencedoras, sempre sobrepujassem as teses “do mal” de gente como este repórter.

Respondo aqui porque considero obrigação combater esse tipo de ambição totalitária. Mesmo vindo de um personagem subalterno.

Caro sr. articulista: o sr. não tem a mínima ideia do tamanho da luta que é para manter a independência no meio jornalístico.
Fosse minimamente esclarecido, o sr. não propagandearia a necessidade da submissão total do repórter ao interesse hierárquico ou governamental ou empresarial.
No jornalismo de cabresto que o sr. apregoa, certamente haverá sempre um líder supremo ao qual todos deveriam curvar-se.
Uma consciência iluminada.

Vou lhe dizer uma coisa: não existe tal consciência. Existe a dedicação de um profissional ao seu métier. Existe um cabo-de-guerra permanentemente em tensão, e o repórter é a parte mais frágil nesse equilíbrio de forças.
Agarre-se ao seu poderoso de plantão, mas lembre-se: deste lado aqui não se trata de corroborar o poder, mas de questioná-lo e enfrentá-lo quando necessário. Em todas as suas formas, inclusive as mais rasteiras.

PUBLICIDADE
AnteriorAfinal, somos todos bregas?
PróximoUma lobotomia para Perry Farrell
Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

3 COMENTÁRIOS

  1. é verdade: as políticas para o livro e leitura estão se voltando cada vez mais para a indústria editorial. espantoso: parece que há um núcleo neoliberal dentro do governo eleito justamente para ser uma alternativa ao neoliberalismo. os escritores precisam perder o medo de retaliações e precisam começar a falar. salve o jornalismo independente dentro da old big mídia. salve jotabê.

  2. É incrível mas em nosso país nunca se atenta para o novo, e quado falo do novo, refiro-me a produção atual tão desastida tanto pelos medias quanto pelo estado, o que é lamentável, miopia cultural.

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome