(…continuação deste tópico e deste.)

Era uma vez a MPB. Ela não existiu desde sempre, desde que o Brasil é Brasil. Foi sigla criada em meados dos anos 1960, designando “música popular brasileira”, no contexto dos ultracompetitivos festivais da canção das TVs Excelsior, Record e Globo. Era música muitas vezes politizada (à época a frase “protesto é chato” ainda não era lida como verdade absoluta), criada por artistas universitários e consumida em larga escala por público universitário.

(O circo foi atividade exercida em grande escala por gente nômade, errante, de pouca escolaridade – até que artistas como Cascatinha & Inhana, caipiras e circenses, passassem a insistir para que as gerações seguintes se escolarizassem até a universidade. O circo à moda antiga foi, com isso, se dissolvendo – será?)

Com o tempo, a MPB aprisionou o “P” da sigla num quadrado restrito, confinado – foram deixando de ser aceitos no clube seleto da “MPB” artistas de subgêneros muito mais populares que a MPBossa de apartamento, como “cafonas”, caipiras, sertanejos, “bregas”, sambistas, pagodeiros, axezeiros, funkeiros, rappers etc. etc. etc.

(Em 2011, o circo está vivo nas apresentações d’O Teatro Mágico – será?)

Não é de hoje que esse paredão ameaça ruir, e é nesse contexto que foram surgindo variedades musicais como “forró universitário”, “sertanejo universitário”, “pagode universitário”… – como se o adjetivo fosse necessário para abrir cadeados para que consumidores das classes médias para cima pudessem se divertir à vontade, sem padecer de pesos maiores em sua consciência emepebista, ou classista, ou universitária, ou…

(Fernando Anitelli, d’O Teatro Mágico, cursou a faculdade de comunicação social, com habilitação em publicidade.)

O Teatro Mágico é contemporâneo de todos esses fenômenos “universitários”. Testemunhar seu êxito me causa ganas de querer defini-lo como um grupo de “MPB universitária”, mesmo com a redundância que significa justapor esses dois termos. Eu sei, no entanto, que Fernando Anitelli nutre franca antipatia pela comparação.

“Tudo que hoje tem o rótulo ‘universitário’ eu acho uma bosta”, ele se revolve. “Forró universitário?, de que se trata isso? Não é que o estilo é diferente. O forró continua o mesmo, e às vezes mal tocado, plástico. ‘Forró universitário’ é uma marca, quer dizer que vai ter burgueses de classe média numa baladinha de uma galerinha cheirosinha. É a balada, não é mais a música. É uma estética de balada.”

(Universitários e não-universitários vão ao circo, a um pós-circo, por causa d’O Teatro Mágico. O circo vive, transformado, nos espetáculos de diversão “universitária” movidos a forró, sertanejo, pagode etc. – será?)

A distinção existe, mas deixa descoberto o mistério da trupe TM. Que público peculiar é o desse grupo, que, em pleno 2011,

a) aprecia os posicionamentos à esquerda expressos em letra, música e gesto,

b) canta de cor versos poéticos por vezes rebuscados, outras rocambolescos,

c) nutre entusiasmo pelos jogos de palavras, aliterações e trocadilhos das letras de Fernando & cia.,

d) encanta-se com a mistura música-CIRCO-teatro-etc. que sobe ao palco com a trupe,

e) sente plena afinidade com o espírito crítico não raro afiado e ácido e áspero do “palhaço” lá no alto,

f) (……………………….)?

(Aproveito a oportunidade e proponho uma interação à fã e ao fã do grupo que lê esta série de reportagens, na caixa de comentários de FAROFAFÁ: quem é você?, quem são vocês?)

“O personagem tira a individualidade”, Fernando tateia uma possível explicação. “Quem está ali não é o Fernando Anitelli, carequinha, semigordo, de barba. O personagem pode ser qualquer um.” Sem obter uma explicação decisiva, ele se aproxima, aqui, da síntese já mencionada no primeiro capítulo desta reportagem: O Teatro Mágico é igual ao seu público, e vice-versa. Ninguém ali é especial, todos aqui somos especiais em nossas banalidades particulares.

(A partir das sucessivas diásporas, em especial a dos bancos universitários, descendentes de circenses se espalharam pelo Brasil em diversas profissões. São, como sempre foram, músicos, atores, produtores teatrais, radialistas, jornalistas, locutores esportivos, diretores de TV, dançarinas do Faustão e do Gugu, comediantes stand-up, cineastas, drag queens, webdesigners, videomakers etc. etc. etc.)

“O artista tem uma responsabilidade social, isso é inevitável”, afirma Fernando, a respeito do engajamento político de seu grupo. “Você ficar duas horas num microfone falando absolutamente nada? Não dá. Pra falar de música livre, é porque sinto na pele quanto isso me dói”, diz, estabelecendo uma linha divisória com as ondas de “(……………) universitário” e se reaproximando, por vias tortas, de uma mãe-MPB engajada que, como o circo, já não existe mais.

“Eu acho que O Teatro Mágico faz parte da renovação da MPB, da música popular brasileira”, opina o coprodutor Daniel Santiago, com a autoridade de integrante do conjunto do virtuoso bandolinista Hamilton de Hollanda e de alguém que ouve, volta e meia, a mesma provocação de Fernando: “O Daniel faz pagode instrumental.”

Daniel prossegue: “Assim como numa época o clube da esquina e a tropicália tiveram papel de comunicação, de proposta de som, neste momento O Teatro Mágico faz parte desse grupo de trabalhos, que fazem música popular brasileira contemporânea. Ele não está dentro de uma linha de som de gravadora, que traz várias bandas no mesmo estilo. No mesmo disco você tem rock, funk, balada, uma característica que tinham os discos antigos do clube da esquina,e da tropicália.”

Será?

(Orlando Silva, Roberto Carlos e Odair José, entre inúmeros outros músicos POPULARES brasileiros, tocaram e cantaram em circos, para sobreviver e se divertir. Hoje, quase não há circos que abriguem artistas como Aviões do Forró, Victor & Leo, Raça Negra, Paula FernandesMarcelo Jeneci ou O Teatro Mágico – será?)

Com 18 anos de profissão no jornalismo, posso dizer que sou do tempo em que reportagens e críticas faziam todos os esforços ao alcance por empilhar respostas, respostas, respostas. Respostas sobre tudo, se possível definitivas. Os jornalistas não sabíamos responder por nós mesmos, mas fingíamos saber responder pelos outros, tudo pelos outros (era mentira).

(“Eu Não Sei na Verdade Quem Eu Sou” é o nome de uma canção de A Sociedade do Espetáculo.)

Percebo, afinal, que termino esta pequena-grande série sobre O Teatro Mágico empilhando perguntas, perguntas, perguntas, ao mesmo tempo que convidando o respeitável público a oferecer respostas, caso as possua (assim aprendi com os Anitelli e sua trupe, e/ou com os antepassados circenses que não conheci). Não sei as respostas, e você, sabe?

O quê?

Quem?

Onde?

Quando?

Por quê?

Será?

 

(…continua, qualquer dia, qualquer hora…)

 

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5 COMENTÁRIOS

  1. Um vinho com 18 anos de profissão! =]
    Como ousa me encher de perguntas assim e me deixar pensando depois de ler tudo isso?
    Vc veio para confundir ou para explicar?
    Seu Pedro, o senhor é muito sabido e é um prazer muito grande ler o senhor.

  2. Respondendo a uma das perguntas levantada nesta série de reportagens. A que público O Teatro Mágico pertence? Sou fã d’O Teatro Mágico, conheço a trupe desde 2005, sempre tive maior orgulho em dizer que o TM surgiu no mundo mágico de “Os” (Osasco) como diz Anitelli. Mas sem ao menos perceber, ou não? O TM faz parte deste seleto grupo de universitários… embora num estilo renovador. Um dia mostrei alguns vídeos do TM aos meus pais, eles se encantaram com as performances e vestias da trupe, mas não entenderam muito bem as letras das músicas, foi quando me dei conta que O Teatro Mágico não é para todos os públicos. Suas músicas são cheias de simbolismos e colocações verbais complexas, com grandes influências da Literatura e grandes nomes da MPB, que muitos poucos tem conhecimento para então fazer entender algumas músicas do TM. Ainda bem que a sociedade brasileira tem avançado neste sentido e cada mais pessoas conseguem entender os protestos e mágia d’O Teatro Mágico.

  3. Excelente o texto, faz pensar. Acho que a reformulação na indústria fonográfica abriu novos espaços e o TM explora um certo nicho de mercado do “cult” de classe média muito bem. O valor enquanto mercadoria está justamente nessa aura de diferente, de alternativo, de erudição. Não é menos mercadoria que as músicas de gravadora, é só uma inserção diferente no mercado, e que é tendência inclusive mundialmente (há toda uma euforia sobre os modelos abertos de mercado inclusive do tecnobrega nesse sentido). É agradável a um certo público que quer se identificar como crítico mas que só vai a protestos de twitter, que tem preconceito contra tudo o que é popular no momento, porque o que foi popular um dia e virou folclore, é lindo… acho que os caras podem até ser críticos, mas acho que o tipo de subjetividade que eles alcançam é a de uma fruição estéril, posuda. Feito as críticas da MPB, sofisticadíssimas. Tão geniais que não movem ninguém a fazer nada senão contemplar a tristeza do mundo no sofá. Isso limpa algumas consciências. Bom nicho de mercado, desde que não tome grandes proporções, porque a graça é gostar de algo que não é qualquer um que alcança, que só os sensíveis e eruditos da classe média podem alcançar, qualquer coisa que alcance os pobres que esse tipo de público curte chamar de massa (afinal, essa gente nem individualidade tem, né?) faz essa platéia sair correndo e fazer campanha pra fone de ouvido ou morte de artistas no facebook… Funk pra eles só se for como folclore, com muita maquiagem e cor pra ficar se sentindo transgressor!

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