Se é verdade que grandes gênios musicais rebobinam o tempo de modo a inventar seus precursores, então o carioca Tom Jobim é o inventor do paraense Billy Blanco, que morreu hoje, aos 87 anos de idade. Tom e Billy foram parceiros musicais entre 1954 e 1955, quando ainda não existia bossa nova. Billy já havia lançado a pândega “Estatuto de Gafieira” (1954), em gravação hoje esquecida da futura rainha caipira Inezita Barroso; Tom era um ilustre desconhecido.

O efeito da parceria foi imediato, com o sucesso de “Teresa da Praia” (1954), interpretada em dupla por Lúcio Alves e Dick Farney, que a partir de 1958 seriam (re)inventados como precursores pelo baiano João Gilberto., pai avassalador da voz aveludada que Lúcio e Dick já possuíam meia década antes.

Em 1955, Billy e Tom lançaram no espaço sideral um punhado de sambas que versavam sobre o Rio de Janeiro e sobre o próprio samba, alguns deles incritos numa temática que a seguir desapareceria (quase) completamente da poética de Jobim. “Morro, se na roupa és malvestido/ Deus te fez o escolhido pra fazer samba melhor”, tateava “O Morro”, gravado por Nora Ney. “Barracão não conhece cobertor/ de dentro dele chove de verdade/ dá licença, meu senhor, dá licença de passar/ o samba que é verdadeiro, que nasce do alto, que desce do morro pra vir no asfalto chorar tanta dor, ai, ai, ai”, lamuriava “Descendo o Morro”, na voz trovejante de Jorge Goulart.

As parcerias com Tom fomentaram a veia social de Billy, que faria a glória de suas melhores composições e o empurraria para um quase-anonimato quando ele passasse a ser caracterizado mais como “precursor da bossa nova” que como ele mesmo. Encerrada a ligação musical com Tom, a tendência se consolidaria a partir de 1956, com “Mocinho Bonito” e “Pano Legal”, canções de sátira social à moda do que fizera o carioca Noel Rosa, morto 19 anos antes.

“Pano Legal” apareceu em 1956 na interpretação da mais marcante intérprete de Billy, a jovem Dolores Duran, em voz de gostoso suingue e versos demolidores que zombavam de um convescote da alta sociedade: “Eu vi muita grã-fina bonita rebolando/ sambando, sambando/ não sabia que as distintas eram assim/ se eu soubesse também como era o ambiente/ decente/ jogava um pano legal por cima de mim”. Nem é preciso dizer, mas “Pano Legal” provavelmente não existiria se não houvesse existido, 26 anos antes, o clássico “Com Que Roupa?”, de Noel.

“Mocinho bonito/ perfeito improviso do falso grã-fino/ no corpo é atleta, no crânio é menino que além do ABC nada mais aprendeu”, cantavam em 1957 a paulista Isaura Garcia, em versão mais conservadora, e a carioca Doris Monteiro, em interpretação mais moderna. Era o paraense acariocado tirando um barato na cara de um playboy praieiro que poderia ser um dos garotões que logo a seguir descobririam em João Gilberto a pedra filosofal, ou poderia ser quem sabe o próprio Tom Jobim…

Em 1957 uma música de Billy protagonizaria um caso peculiar de censura em período pré-militar, segundo a Emciclopédia da Música Brasileira (Art Editora, 1998). A gravação do conjunto vocal Os Cariocas para “Não Vou pra Brasília” teria sido vetada por dizer o contrário do que o presidente Juscelino Kubitschek gostaria que se falasse a respeito da construção da nova capital federal. “Eu não sou índio nem nada/ não tenho orelha furada, nem uso argola pendurada no nariz/ não uso tanga de pena e a minha pele é morena do sol da praia onde nasci e me criei feliz/ não vou, não vou pra Brasília, nem eu nem minha família/ mesmo que seja pra ficar cheio da grana”, proclamavam os versos desobedientes de um (não) índio paraense então travestido de garoto de praia carioca.

Outro standard de cutucar feridas profundas é “A Banca do Distinto”, lançada por Isaura Garcia em 1959, e que ganharia sentido dobrado em 1963, quando gravado por Elza Soares, nascida e criada em morros cariocas que Blanco, Jobim e Isaura conheciam mais à distância: “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho/ pra que tanta pose, doutor?/ pra que este orgulho?”. Racismo era um dos temas ali intrometidos, e definitivamente não havia clima para que ele fosse adaptado ao teorema de amor-sorriso-flor que já tomava a música brasileira de assalto naquele 1959, envelopado no álbum Chega de Saudade, de João Gilberto.

Foi em 1960 que um samba de Billy ousou bater de frente com o que pregava o Brasil desenvolvimentista de JK e as novas bossas de Tom e João – e deu com os burros n’água. Num LP sugestivamente denominado Queixas, o vozeirão de Nelson Rodrigues portava a mensagem, batizada “Velha Bossa Nova”: “Bossa nova não é bem o que dizem por aí/ que o bastante é ser desafinado e trocar o dó por mi”. Não havia mais lugar confortável no Brasil para quem pensasse esse tipo de coisa, menos ainda para quem tivesse a petulância de dizê-lo em alto e bom som. Quem disse pagou o preço.

Por mais que fossem geniais (e eram) os sambas de cunho social de Billy, a bossa nova reinventou-o como compositor de… bossa nova. A introspecção marcaria os (poucos) sucessos que ele emplacaria anos 60 adentro em vozes como as de Maysa (“Samba Triste”, 1960, uma parceria com o afro-bossa-sambista Baden Powell), Elizeth Cardoso (“Balada da Solidão”, 1963), Wilson Simonal (“Lágrima Flor”, 1963), Alaíde Costa (“Encontro com a Saudade”, 1964, com Nilo Queiroz) e Jair Rodrigues (“Canto Chorado”, apresentado no festival Bienal do Samba, de 1968).

“O que dá pra rir dá pra chorar/ questão só de peso e medida”, constatava, desencantada, a letra de “Canto Chorado”. Nesse contexto cabia com folga também a versão bossa & fossa de “Esperança Perdida”, da leva de parcerias Billy-Tom em 1955, retomada em 1970 por João Gilberto, no disco exilado En México: “Eu pra você fui mais um/ você foi tudo pra mim”.

A veia crítica persistiria ao longo dos anos 60, mas só em regravações de Elza Soares (“Estatuto de Gafieira”, 1966), Moreira da Silva (“Pistão de Gafieira”, 1966), Marília Medalha (“A Banca do Distinto”) e Maria Bethânia (“Pano Legal”, 1968).

Afora regravações esporádicas de “A Banca do Distinto” e tentativas esparrsas, como a sinfonia “Paulistana” (lançada em LP homônimo em 1974), daí por diante sumiço seria o sobrenome de Billy Blanco.

 

A seguir, a lista de músicas incluídas na seleção à esquerda:

1. Lúcio Alves e Dick Farney, “Teresa da Praia” (1954)

2. Nora Ney, “O Morro” (1955)

3. Jorge Goulart, “Descendo o Morro” (1957)

4. Dolores Duran, “Pano Legal” (1956)

5. Isaura Garcia, “Mocinho Bonito” (1957)

6. Doris Monteiro, “Mocinho Bonito” (1957)

7. Silvio Caldas, “Viva Meu Samba” (1957) – O vozeirão de Silvio eterniza versos de samba-exaltação-ao-samba: “Violão, pandeiro/ tamborim na marcação e reco-reco/ meu samba/ viva meu samba verdadeiro, porque tem telecoteco”.

8. Elza Soares, “A Banca do Distinto” (1963)

9. Elza Soares, “Estatuto de Gafieira” (1966)

10. Dolores Duran, “Feiúra Não É Nada” (1957) – A abordagem misógina soa especialmente cruel na voz dolorida de Dolores: “Castiga um pano mais legal no couro/ castiga um pente que também ajuda/ castiga os dedos nos anéis de ouro/ castiga mesmo, que a coisa muda/ põe um decote melhorzinho no vestido/ tem fé em Deus que tua feiúra não é nada/ gente mais feia encontrou marido/ enquanto a bonitona ficou encalhada”.

11. Moreira da Silva, “Pistão de Gafieira” (1966)

12. Isaura Garcia, “Camelô” (1969) – Lançado originalmente por Dolores, em 1957, o samba trata de dois personagens de que a bossa nova não iria nem querer ouvir falar: o camelô e o político.

13. Nelson Gonçalves, “Velha Bossa Nova” (1960)

14. Maysa, “Samba Triste” (1960)

15. Wilson Simonal, “Lágrima Flor” (1963)

16. Os Originais do Samba, “Canto Chorado” (1968) – O grupo de samba acompanhou Jair Rodrigues na apresentação desse número na primeira (e única) Bienal do Samba. Nessa versão, cantam acompanhados por uma voz feminina não-creditada (alguém aí saberia dizer quem é?).

17. João Gilberto, “Esperança Perdida” (1970)

18. Maria Bethânia, “Pano Legal” (1968) – Em versão prototropicalista gravada ao vivo em “boite”, Bethânia funde a crítica social de Billy com a de “Café Soçaite”, de Miguel Gustavo.

19. Billy Blanco, “Não Vou pra Brasília” (1973) – O próprio autor interpreta a canção que desagradou a JK em 1957, em gravação televisiva de 1973, editada em CD pelo Sesc em 2000 (a faixa inclui trechos da entrevista de Billy a Fernando Faro, no programa MPB Especial).

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