ei, vamos brincar de ciclo de debates? vamos debater um pouquinho mais sobre a matéria (carne, osso, sangue música & outras coisinhas mais) de que somos constituídos?

começo a republicar a partir deste momento uma seqüência de reportagens que, aqui na intimidade da redação, acabamos tratando como “série jabá” (não são necessariamente reportagens sobre jabá, mas sim sobre indústria cultural, sobre modelos viciados e arcaicos, sobre crise de formatos, sobre necessidade de mudança de modelos, formatos, hábitos, crenças, crendices – algo que podemos, se a comunidade topar, chamar “carinhosamente” de… “série jabá”).

são gotas num oceano nada pacífico que a imprensa e a mídia não sabem, não conseguem, não querem, não gostam de visitar [porque seria autocrítica, será? não se usa vestir autocrítica no lado de baixo (de cima, de frente, de lado, de costas) do equador?]. mas o oceano é revolto, e isso é de conhecimento de todos, porque afinal de contas todos somos peixes fazendo “glup” na violência das ondas deste enorme oceano planetário também conhecido como “o baile todo”. pois então.

série jabá, volume i, “carta capital” 365, 26 de outubro de 2005. quem na face do planeta conseguiria sobreviver sem jabazinho, caixinha 2, mensalinho, suborninho, chantaginha, favorzinho, esmolinha, troca-troca, esse pinga-pinga nosso de cada dia que de gotinha em gotinha transborda um marzão?

COMO VIVER SEM JABÁ
A Ipanema FM, que diz não depender de “ajuda”, revela por contraste como funcionam os conluios entre rádios e gravadoras

Por Pedro Alexandre Sanches

Perante os gravadores ligados, dez entre dez militantes da indústria musical brasileira soletram a mesma cantilena, pronunciando cada letra com ênfase nervosa: o jabaculê não existe, não existe, não existe. De gravador ainda ligado, CartaCapital resolveu subverter a ordem dos fatores e mudar o foco da questão: seria possível sobreviver de música no Brasil sem apelar para o “artifício” do jabá?

A resposta “sim” foi ouvida lá no extremo sul do país, em Porto Alegre (RS). É onde funciona a Rádio Ipanema FM, que, segundo seu atual diretor de programação, Eduardo Santos, sobrevive e vai bem, obrigada, sem depender de conchavos com gravadoras. “A Ipanema funciona de modo completamente diferente do das outras rádios. O que a gente vende é intervalo comercial, não espaço musical”, ele afirma.

Traduzindo em palavras que jamais são pronunciadas por executivos de gravadora, radialistas e comunicadores de tevê, o que ele quer dizer é que a Ipanema costuma bloquear a invasão promíscua de sua programação musical por material de propaganda enrustido. É nisso que, note bem, a Ipanema seria “completamente diferente das outras”.

Eis aí o tal jabá. É a negociação de espaços editoriais (que supostamente seriam reservados ao livre arbítrio do gosto de cada disc-jóquei) para que as rádios amplifiquem a veiculação de produtos musicais que as gravadoras querem, precisam “estourar” na parada de sucessos.

Do conluio, gravadoras de um lado e rádios do outro se acostumaram a impingir aos ouvintes a (falsa) impressão de que estão ouvindo a música “x” exclusivamente porque ela é ótima, o autor é excelente, o intérprete é talentoso…

Numa entrevista à Folha de S.Paulo em 2003, o executivo aposentado André Midani, ex-presidente das multinacionais Philips e Warner, assumiu que praticara o jabá naquelas casas, disse que acredita que nos últimos anos o esquema “piorou” e lembrou que as negociações costumavam acontecer em formatos variados, “dinheiro, drogas, prostitutas”.

Gravadores ligados, os dez entre dez militantes citados no início refutam o termo “jabá”, em favor de outros como “projetos de marketing” ou “verba de promoção”, que viriam com nota fiscal, oficializados por contratos comerciais. Mas Eduardo Santos pergunta: “Por que uma rádio tocaria cem vezes por dia a mesma música, se não existe jabá? Se isso é promoção, é a promoção da estupidez nacional”.

Ele reporta outro fator distintivo da rádio em que trabalha: “Algumas gravadoras ainda nos enviam CDs, mas a maioria nem manda mais. A gente compra, gasta uns R$ 500 por mês em disco. Mesmo quando mandavam milhares de CDs, eram singles promocionais, as músicas que chamamos ‘as confirmadas’. Se tocássemos essas seria o fim, nossos ouvintes não aceitariam”.

Traduzindo. No mercado fonográfico como está constituído hoje, as gravadoras produzem álbuns de artistas e elegem neles uma música que deverá ser veiculada no rádio e na tevê e que, por isso, recebe o nome mimoso de “música de trabalho”. Os singles com as “confirmadas” direcionariam a liberdade de escolha nas rádios. A dúvida: por que não se ouvem radialistas reclamando da imposição arbitrária de “músicas de trabalho” por gravadoras?

Mais uma peculiaridade da Ipanema é que ela não está incluída nos sistemas de monitoramento de programação, que são contratados por gravadoras. “A informação que temos é que as gravadoras nos tiraram. Por que estamos fora das pesquisas de audiência?”, pergunta-cutuca o radialista.

Leiam-se as entrelinhas: são as pesquisas sobre as músicas mais tocadas nas rádios que confirmam ou não o “sucesso” das “confirmadas” das gravadoras. É de se supor que, uma vez que não segue o coro dos contentes, uma rádio como a Ipanema poderia “desvirtuar” o favoritismo “confirmado” das melhores bandas de todos os tempos da última semana. “Assim, a indústria fonográfica dita como vai ser a cultura do povo. Nós conseguimos atuar no mercado publicitário de modo que a rádio fatura tri-bem, sem estar no topo da audiência. Entre os jovens, a Ipanema fica entre a quarta e a quinta colocação. Quem está no topo da audiência é quem toca a mesma música cem vezes por dia”, insinua Santos.

Eis algumas das fórmulas “excêntricas” de sobrevivência da Ipanema: faz permutas com lojas de CDs que têm interesse em anunciar na emissora, mantém contato direto com selos estrangeiros, recebe e executa versões em MP3 de músicas que as próprias bandas mandam, investe em programação “não-confirmada”…

“Temos picos de audiência de 25 mil ouvintes por minuto. Os picos da Rádio Cidade (uma das líderes em Porto Alegre) chegam a 100 mil ouvintes por minuto, num programa de funk carioca”, compara. A Ipanema ganhou notoriedade nacional após se tornar uma das primeiras a transmitir pela internet (http://www2.uol.com.br/ipanema/). Em em setembro, segundo o diretor de programação, houve 1,5 milhão de acessos.

Outro profissional que tem avaliações cortantes sobre o funcionamento da indústria musical é o radialista Luiz Antônio Mello, hoje repórter cultural da Band News, que foi co-fundador da célebre experiência alternativa da Fluminense FM, a “Maldita”, nos anos 80.

“Hoje usam mil argumentações, tentam usar um verniz ético e fazem mau uso da palavra promoção. Não tolero jabazinho”, ele diz, confirmando pelo contra-exemplo a fragilidade da formulação “não existe jabá”.

Mello diz que, sim, é possível resistir. “Eu tenho respeito pela música e mais ainda pelo ouvinte. O cara está confiando em você pelo aval que você dá, você vai corromper isso? Não trabalho em rádio com jabá, boca de fumo, contrabando, puteiro. Tenho um nome bacana no mercado e me tratam com respeito.”

“O jabá virou um AI-5, ele fecha todas as portas. É ditadura. Começou no escalão de baixo, nos radialistas que ganhavam mal e queriam complementar o salário, e hoje já subiu o elevador social. Se o dono da rádio dissesse ‘eu quero esta rádio limpa’, pronto, acabou o jabá”, cutuca.

Denominando o meio de rádio como “o patinho feio da mídia” (“existem muitas rádios honestas, muitas”, sublinha), Mello procura unificar a questão: “O problema do Brasil é um só, e único. É a corrupção, em todas as escalas e indústrias. O raciocínio é do tipo ‘se Brasília está o que está, por que não eu?'”.

O posicionamento dos artistas, geralmente silenciosos diante ao tema-tabu, é motivo de controvérsia. A radialista e pesquisadora gaúcha Kátia Suman, que prepara dissertação de mestrado em torno do tema jabá, coloca logo o ministro da Cultura no centro da roda: “No jornal Zero Hora, Gilberto Gil disse recentemente que a promoção musical com verbas de marketing é ‘absolutamente legítima’. A fala do ministro está na contramão do movimento que rola nos Estados Unidos. Enquanto lá o assunto rende processos nos tribunais contra as gravadoras, aqui o próprio ministro da Cultura reconhece como legítimo o procedimento”.

Para Eduardo Santos, “os próprios artistas são coniventes. Neguinho mesmo diz que se não paga jabá não toca. Fica só o Lobão protestando, ninguém falar porque é difícil provar qualquer coisa”. Decifrando, trata-se aqui de um fantasma costurado entre o lucro que o jabá traz aos próprios artistas (especialmente os do “primeiro time”) e o medo de que a atitude tipo Lobão redunde em imagem “queimada”, represália, isolamento.

Ainda assim, Luiz Antônio Mello defende que um movimento de combate teria de começar a partir deles, dos artistas – mas não necessariamente dos medalhões. “80% dos artistas não tocam nas rádios. Esses é que deveriam pressionar, se reunir, dar nomes, fazer uma denúncia formal, ir ao ministério.”

Enquanto isso não acontece, Mello oferece outro contra-exemplo: conta como costuma dar sua colaboração por dentro, olhando para sua própria profissão de modo localizado e limitado, mas sincero e irreverente. “Se você está numa pizzaria com um colega radialista jabazeiro, você mete o pau no jabá, deixa o cara constrangido de tal maneira que não é possível. Ele começa a implicar, diz ‘você é idealista’. Eu respondo ‘não, idealista não, você é que é ladrão'”, ri, o gravador ligado e rodando feliz.

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