juro que não sei direito o que saiu nos jornais sobre o novo show da maria bethânia, em termos de crítica. mas sei que tenho ouvido horrores sobre esse show. cada comentário é mais destruidor que o outro (pois é, o que se fala sobre a arte aqui no mundo real muitas vezes é muito mais cruel do que qualquer crítica pregada em jornal… mas, como não vem a público, são os “pas” da vida que levam toda a fama de “maus”, me engana que eu gosto…). pois dezenas, quase centenas de pessoas me disseram que a coisa desta vez era medonha, horrenda, hedionda, terrível.

pois bem, se está todo mundo xingando eu também quero xingar!, hehehehe. lá fui eu sábado passado para minha sessão de “tempo tempo tempo tempo”, pronto para ouvir e ver músicas “erradas”, cenários despencando, dona maria caindo da escadinha (com bia lessa na direção sempre há escadinha), a decadência bonita da baiana, enfim…

de fato, fiquei um tanto impassível diante do show (já tenho um bom número de espetáculos de bethânia no currículo, vai ficando difícil encontrar pontos de escora para a surpresa após tantas e tantas bethânias). não me emocionei, a não ser nas passagens de “usina de prata” e do pedido de bênção de “samba da bênção”, que ela termina trovejando “a bênção a cada um dos senhores, a bênção, porque eu tô só começando” – ah, se todos fossem iguais a essa quase sessentona que guarda o despudor de se dizer mais moça que uma menina!…

mas, espera aí, o que é que há de tão horrível no tal show, meu deus??? eu fiquei esperando o fiasco até o fim, e… ele não veio. sei lá se ela consertou alguns dos “defeitos de fabricação” insistentemente apontados (aliás, será que ela ouviu falar deles?), mas tudo isso me leva a me perguntar, imediatamente, o que bethânia faz para, aos quase 60, ainda escandalizar tanta gente? hum-rum, vamos palpitar.

a) segundo o falatório, o cenário (de daniela thomas) é um dos tratores da repulsa a “tempo tempo tempo tempo”. ali, não acontece muita coisa além de um constante vaivém de formas geométricas, quadrados e retângulos que sobem e descem flutuando no palco ao sabor e ritmo do curso musical do show. mas é tão evidente o propósito: maria enrodilha seu show numa homenagem simbólica a vinicius de moraes, um poeta modernista, mas também aos 40 anos de sua própria (e modernista) carreira. sóbrias e racionais, aquelas formas que vão e vêm não são mais nem menos que a poesia de vinicius (ou mesmo a de ferreira gullar, outro mito para a intérprete que tanto ama poesia) e que a atividade política (mais até que o vozeirão) de bethânia. podemos, tranqüilamente, bradar contra o modernismo anacrônico do show – mas aí a questão está na arte heróica pré-tropicalista/pré-pós-modernista e na própria bethânia, nunca no show de bethânia. o show é bethânia como bethânia sempre foi, sublinhado e ressaltado pelo amadurecimento da mulher. não há retângulo de thomas que desvie a atenção desse foco.

b) o maestro jaime alem, obrigatoriedade de quem acompanha a música de bethânia há já muitos e muitos anos, também desperta manifestações de incômodo, com as quais até tendo a concordar. alem traz mesmice, vagareza, sofisticação superficial (alô, morelenbaum) e emepebice hippie ao universo da matrona. mas nada disso tampouco é novidade, e até acho que nesse show o cara rende dois momentos elevadíssimos (e espelhados um com o outro, no roteiro do show): os arranjos de “oração ao tempo” (1979), de caetano veloso, e de “usina de prata” (1976), de rosinha de valença (sugiro, aqui, visita a outro tópico deste blog, publicado dia 2 de fevereiro, dia de festa no mar; chama-se “dois mil e quatro 3, a terceira margem: rosinha, essa menina”).

c) evidentemente, houve quem se escandalizasse com a presença, no show, do iê-iê-iê “vem quente que eu estou fervendo”, lançado por erasmo carlos em 1967. pois me escandalizo muito mais com o fato de o programa chiquitíssimo do show creditar o rock à dupla erasmo-roberto carlos, e não a seus verdadeiros autores, carlos imperial e eduardo araujo (soterrar quem já está soterrado é um pouco meio muito, né não?) o mesmo furor horrorizado ouvi ser causado pela cafoníssima “gita”, que bethânia já cantava em 1975, quando o hit de raul seixas era recém-nascido – e, mais engraçado, num show em dupla com o sisudo chico buarque. no mais, o que há de novo no flerte com o rock e no flerte com o cafona, se bethânia já causou ondas intermitentes de repulsa (minha inclusive) ao gravar zezé di camargo & luciano, roberto & erasmo etc. etc. etc.? além de não haver nada de surpreendente na conversão pseudo-erasmiana de maria, também “vem quente que eu estou fervendo” integra um bloco divertidíssimo do show, de umas tantas canções que falam, sempre, sobre brigas de casal. é só ver os títulos e a seqüência montado: “soneto de separação”, “olhos nos olhos” (“quero ver como suporta me ver tão feliz”…), “você vai ficar na saudade” (de benito di paula!, mais escândalo), “volta por cima”, enfim os versos-mito “se você quer brigar/ e acha que com isso estou sofrendo/ se enganou, meu bem/ pode vir quente que eu estou fervendo” (nem sei ao certo por que, mas me lembrei do mano caetano veloso e de paula lavigne, o tempo todo, nesse bloco).

d) o roteiro muito picado de “tempo tempo tempo tempo” é outra fonte de desconforto – eu também me canso às vezes, mas, de novo, quando não foi picado um roteiro de bethânia, essa cantriz sempre tão influenciada pelo diretor teatral fauzi arap? fico pensando se a irritação, desta vez, tem algo a ver com a grande amplitude da revisão histórica que maria tenta fazer, numas de comemorar seus primeiros 40 anos de intérpretação. é difícil, para qualquer espectador, compactuar com ela a montanha russa que pula de caetano a carlos imperial, de tom jobim a benito di paula, de chico buarque a raul seixas, de vinicius de moraes a gonzaguinha. aos mais jovens, parecerá mesmo datado em demasia (e isso é mesmo, é, sim). aos mais véios de guerra, talvez cause a disritmia de um passeio amplo e despreconceituoso demais, que abarca (com igual paixão e sempre evocando implicitamente sua musa inspiradora nara leão) bossa nova, afro-samba, canção de protesto, jovem guarda, tropicália, clube da esquina, mpb engajada à moda de gonzaguinha, sambão jóia, música caipira (o passeio interior de um dos últimos blocos, o que inclui “usina de prata”, é para mim indiscutivelmente o mais atordoante do show), samba do recôncavo, rock’n’roll e muita, muita, muitíssima mpb. é compreensível que não dê para acompanhar, é referência demais para cada alma aprisionada em seus próprios cercados e preconceitos (acho que nenhum de nós está a salvo desse desconforto, certo?).

e) mas, e aí, o que há de novo no passeio malucão dos quarent’anos de palco de dona maria? algum dia foi diferente? essa dúvida me remete a outro ponto, que é irmão de minha não-emoção e me faz mais que tudo sair pensativo da encenação. não compositora, essa mulher se torna autora de tudo que canta, porque dá sua feição una a um espectro fenomental de músicas e músicos brasileiros [pausinha: ao não mencionar os nomes de autores das canções se eles não forem chico nem caetano, bethânia me lembra os funkeiros cariocas, que também escandalizam porque inserem em suas músicas, sem citar, trechos que vão de debbie harry a xuxa e de afrika bambaataa a jorge ben jor]. seu jardim de opções é enorme demais, e, ainda assim, conta uma história muito parcial da música popular brasileira. assim como cada espectador que sai do espetáculo com benito di paula, erasmo carlos e/ou gonzaguinha atravessados na garganta, bethânia constrói seu castelo tanto em cima de citações como de omissões. pois eu não me lembro, ao menos em sua obra recente, de ouvir qualquer lembrança explícita a elis regina, paulinho da viola, clara nunes, jorge ben jor, belchior, martinho da vila, joão bosco, aldir blanc, zé ramalho, gal costa, wilson simonal, jair rodrigues, elza soares, raimundo fagner, novos baianos, secos & molhados, mutantes, tim maia, tom zé, wanderléa, geraldo vandré etc. etc. etc. (estou ficando só nesses confins geracionais de sempre, cê tá entendendo?). como qualquer um de nós, nem tudo ela aceita, e eu fico curiosíssimo por entender qual é a dinâmica e o mecanismo das rejeições de bethânia, já que elas não são, nunca, facilmente decodificáveis. o bonito é que não parece ser simplesmente o jogo de simpatias e rivalidades que sempre move o estrelato mpb: bethânia tem voltado a interpretar jards macalé, notório adversário dos tropicalistas; mais ainda, é capaz de rememorar (e pedir a bênção explícita a) paulo vanzolini, mesmo que o irascível sambista paulista viva sempre a espezinhar a “destruição” que bethânia teria promovido em suas “volta por cima” e “ronda”. bethânia pede bênção, também pela destruições que edifica.

então, cadê o escândalo (alô, angela ro ro)? sei lá.

eta, ói nós aqui outra vez… ainda sendo os mesmos e vivendo como nossas mães…

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