não me soa de fácil assimilação o novo disco de maria bethânia, “que falta você me faz – músicas de vinicius de moraes” (biscoito fino, fevereiro de 2005).

{mas, ó, como anda abundante a carreira de maria bethânia desde que ela rompeu com o esquemão das multinacionais de música!! é um disco atrás do outro, e de nenhum deles qualquer um de nós poderia dizer, esnobando, que “é ruim”.}

é que por mais corpulento e importante que seja o legado de pai vinicius, ainda torço o nariz nas 100 mil vezes que tenho de ouvir “gente humilde”, nas 200 mil vezes que tenho de ouvir “minha namorada”, nas 300 mil vezes que tenho de ouvir “a felicidade”…

{mas, ó, como é acachapante a releitura da explosiva intérprete para a batida “a felicidade”, aquela canção aparentemente inevitável daquela frase tão linda quanto bocó, “tristeza não tem fim/ felicidade, sim”.}

ok, eu poderia abrir novos colchetes para dizer que, em 2005, maria bethânia ainda é a maior cantora brasileira viva – porque soma dons de cantar com dons estéticos, políticos, ideológicos, posturais etc. etc. etc. mas não quero falar obviedades e redundâncias. chega de colchetes.

nas fímbrias de suas pequenas qualidades (um pandeiro de samba baiano aqui, uma canção recolhida do anonimato ali), “que falta você me faz” me soa meio chato de ouvir. mas sua chatice (ou sua virtude) é valor secundário, não tem assim muito a ver com o que há de central no fato de o disco existir, no fato de bethânia andar tão produtiva.

o que mais me atordoa em bethânia e em “que falta você me faz” é a falta que nara leão me faz, é a falta que nara leão faz a maria bethânia, é a falta que nara leão faz ao brasil.

há tempos tenho a impressão de que tudo que maria bethânia faz é feito para agradar, honrar e emocionar nara leão – e não importa que nara leão tenha morrido jovem demais em 1989; isso é o de menos.

em 1965, no espetáculo musical de tez cepecista “opinião”, nara interpretava (e era) a dondoca que amalgamava arquétipos com o retirante nordestino joão do vale e o sambista de morro zé keti. cantava, com sua voz pequena e quase suave (quase, porque andava muito brava, a ponto de enfurecer com sua vozinha mínima os generais ditatoriais), músicas fortes e agressivas como a panfletária “carcará”.

pois então nara ficou doente e precisou de substituta. e indicou a semi-anônima bethânia para o “opinião”. provavelmente embebida na angústia da influência de nara, bethânia a contrariou e cantou “carcará” trovejando, prenhe de raiva. a dondoca carioca (nascida por acaso no espírito santo, terra de roberto carlos) cedia lugar à interiorana chucra, o rio de janeiro cedia vez à bahia e ao brasil todo. e a vida de bethânia nunca mais foi a mesma. agora ela era uma estrela.

vinicius, sim, vinicius… mas, para lembrar como bethânia não respira sem suspirar nara leão, é melhor pensar em roberto carlos. em 1993, em “as canções que você fez pra mim” (polygram/philips, 1993), maria enfrentou preconceitos de monta e dedicou disco inteiro (e algo cafonoso) à obra romântica de roberto (& erasmo). ora, fazia-o à sua moda, mas ainda assim reproduzia (homenageava) o que nara havia feito 15 anos antes, em “e que tudo mais vá pro inferno…” (phonogram/philips, 1978).

na primeira ocasião, nara rompera tabus na mpb, tratando com desmedido carinho o repertório dito “cafona” de (erasmo &) roberto – “cavalgada”, “proposta”, “o divã”, “a cigana” etc. bethânia apreendeu isso de nara em 1978 e desde sempre, desde que a madrinha, em 1968, aceitara e abrigara sob suas asas os ainda duvidosos cafonas-chiques tropicalistas (dos quais bethânia sempre quis se diferenciar).

foi muito por causa de nara que maria se fez porta-voz de não-unanimidades como raul seixas (cantou “gita” em 1975), gonzaguinha (em 1976 e sempre desde então), adelino moreira (“negue”, 1978), rita lee (& roberto de carvalho) (“baila comigo” e “shangrilá”, 1982), almir sater & renato teixeira (“tocando em frente”, 1990), até o relicário caubói-mauricinho de zezé di camargo (“é o amor”, 1999).

e aí o vinicius, o vinicius. surge desse mesmo gêiser de enfrentamento o melhor da loa de bethânia a vinicius (algo que nara nunca fez propriamente, apesar de ser a mulher de origem da bossa nova e de ter gravado sempre e sempre as bossas de vinicius).

pois em “que falta você me faz” aparece em cachoeira o parceiro tom jobim (menos, graças a deus, “garota de ipanema”), mas aparecem também parceiros, ops, secundários, como adoniran barbosa (na linda e triste “bom-dia, tristeza”), carlos lyra (em “você e eu”, transtornada em algo alegríssimo), jards macalé (sim, macalé, aquele mesmo que foi banido pelo tropicalismo e baniu de sua vida o tropicalismo), baden powell (vibrante & cafoninha, o afro-samba “samba da bênção” parece sob medida para os carinhos & o rugido de bethânia).

o massapê, em suma, é de diversidade. bethânia não elege corriola, não cai no truque de que vinicius é só tom (& vinicius), de que não há vinicius sem tom. “é melhor ser alegre que ser triste”, relampeja maria, explicitando o vinicius (& baden) de “samba da bênção” que era contra o (tom &) vinicius de “a felicidade”, explicitando o anti-vinicius em vinicius. (só faltava ela receber a anti-bethânia e cantar “a coruja”, que elis regina ensombreceu em 1980 em “a arca de noé”, um quitute “vinicius para crianças”.)

por essas & outras, o momento mais especial do disco pode ser “tarde em itapoã”, samba jóia bem baiano de vinicius & toquinho. ei. samba jóia foi apelido dado ao sambão mais cafona que vicejou nos anos 70, sob antonio carlos & jocafi, benito di paula, os originais do samba, tom & dito… e todo mundo parece querer relevar e esquecer, mas o poeta sofisticado & distinto diplomata & co-autor do monolito “chega de saudade” também fez, sim, samba jóia, sob a fórmula toquinho & vinicius (saudades, ó, da “tonga da mironga do kabuletê”… alô, marília medalha…). bethânia arrasaria quarteirão se rezasse um disco de sambão jóia para o velho poeta -mas, não, ela quer drenar a diversidade em vinicius; não provoca maremoto, mas ao menos sopra brisa. e derruba mais alguns fiapos de preconceito.

{chega de vinicius, agora.} ainda há mais de nara em “que falta você me faz”. nos pandeiros, pratos, afoxés, ganzás, tamborins, moringas e timbaus do disco, maria reelabora o rosário que vem avolumando ao longo de “maricotinha” (bmg, 2001), “brasileirinho” (quitanda, 2003), o tributo a rosinha de valença “namorando a rosa” (quitanda, 2004): o mergulho não narcisista no lago espelhado; a entrega total de si mesma ao brasil profundo, ao brasil interior; o vislumbre da imagem limpa do rosto sem maquiagem no espelho brasil.

ainda ali mora nara leão, brasileira aguerrida, deserdada e desertada (alô, rosinha, essa menina…) que em tempos imemoriais dedicou um disco inteiro a canções interioranas e/ou infanto-juvenis feito “atirei um pau no gato”, “fiz a cama na varanda”, “casinha pequenina”, “a saudade mata gente”… chamava-se “meu primeiro amor” (phonogram/philips, 1975) (depois bethânia também quis cantar a canção-título pescada em cascatinha & inhana)… era feito por nara para ninar suas crianças (& sua mãe & seu pai)…

{nara, em 1975, já se desencantava aos poucos com a música sob a maldição da ditadura. “que falta você me faz” é meloso & importante. nara leão raramente foi ouvida em toda sua imensidão e grandeza. maria bethânia não teve filhos. nara leão, rosinha de valença e vinicius de moraes hoje são filhos de maria maricotinha bethânia.}

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